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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.67 no.2 Rio de Janeiro  2015

 

ARTIGOS

 

Luto e enfrentamento em famílias vitimadas por homicídio*

 

Grief and Coping in Families Victimized by Homicide

 

Dolor y afrontamiento en familias víctimas de homicidios

 

 

Daniela Fontoura DominguesI; Maria Auxiliadora DessenII; Elizabeth QueirozIII

IDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura. Universidade de Brasília (UnB). Brasília. Distrito Federal. Brasil
IIDoutorado em Psicologia Experimental. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil
IIIDocente. Instituto de Psicologia. Universidade de Brasília. (UnB). Brasília. Distrito Federal. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As mortes violentas são acontecimentos potencialmente deletérios que costumam exigir estratégias adaptativas dos familiares das vítimas. Este estudo apresenta os modos de enfrentamento utilizados por mães e irmãos de oito jovens que perderam a vida em razão de homicídio no Distrito Federal, nos primeiros 12 meses de luto. Oito genitoras e cinco irmãos responderam à Escala 'Modos de Enfrentamento de Problemas' (EMEP) e a uma entrevista semiestruturada com questões sobre enfrentamento. Os resultados apontam convergência entre os dois instrumentos quanto à principal estratégia adotada pelos participantes: práticas focalizadas na religiosidade e no pensamento fantasioso. As estratégias centradas no problema e a negação da morte também foram recursos adaptativos utilizados pelas famílias. Os resultados indicam a necessidade de construção de políticas destinadas a ampliar a rede social dessas famílias no contexto da perda.

Palavras-chave: Luto; Estratégias de enfrentamento; Homicídio juvenil; Família.


ABSTRACT

Violent deaths are potentially damaging events that often require adaptive strategies by the family of the victims. This study presents the coping strategies used during the first 12 months of mourning, by mothers and siblings of eight young men who lost their lives due to homicide in Brazil's Federal District. Eight mothers and five siblings answered the Ways of Coping Questionnaire (WAYS) and a semi-structured interview with questions about coping. The results show a convergence between the two instruments regarding the main strategy adopted by participants - i.e., practices focused on religiosity and wishful thinking. Problem-centered strategies and denial of death were other adaptive resources used by families. The results indicate the need to build policies in order to expand the social support network available to these families in the context of their loss.

Keywords: Grief; Coping Strategies; Youth Homicide; Family.


RESUMEN

Las muertes violentas son eventos potencialmente perjudiciales que requieren estrategias de adaptación de las familias de las víctimas. Este estudio presenta las estrategias de afrontamiento utilizadas por las madres y hermanos de los ocho jóvenes que perdieron la vida como resultado de homicidios en el Distrito Federal, en los 12 primeros meses de luto. Ocho madres y cinco hermanos respondieron a la Escala 'Modos de Afrontamiento' (EMEP) y a una entrevista semiestructurada con preguntas específicas acerca de afrontamiento. Los resultados indican convergencia entre los dos instrumentos en relación a la principal estrategia adoptada por los participantes: las prácticas centradas en la religiosidad y la ilusión. Las estrategias centradas en el problema y la denegación de la muerte también fueron los recursos adaptativos utilizados por los hogares. Los resultados indican la necesidad de construir políticas para ampliar la red de apoyo social de las familias en el contexto de la pérdida.

Palabras clave: Luto; Estrategias de afrontamiento; Homicidio juvenil; Familia.


 

 

As mortes decorrentes de situações de violência têm chamado a atenção nos últimos anos, sobretudo no que diz respeito aos homicídios de adolescentes e jovens no Brasil. Estima-se que 44% dos óbitos entre 12 e 18 anos de idade derivam desse tipo de crime, o que exige investimentos em programas preventivos e em políticas públicas (Melo & Cano, 2011). Os eventos têm impacto negativo de variada extensão e intensidade, em diferentes níveis e contextos. Tanto podem desencadear distúrbios emocionais nos sobreviventes (Raphael, Stevens, & Dunsmore, 2006) como promover a desintegração dos vínculos familiares e comunitários (Domingues, 2010), além de causar prejuízos ao desenvolvimento econômico e social do país.

Do ponto de vista intrapessoal, por exemplo, o processo de luto dos familiares costuma associar sentimentos de angústia, dor, estresse, desorientação e perplexidade frente às circunstâncias que envolvem as perdas (Currier & Neimeyer, 2006). Todavia, as reações e as consequências desses episódios são temas ainda insuficientemente explorados pela literatura (Sharpe & Boyas, 2011). Até o momento, poucos grupos de pesquisa têm investido em pesquisas longitudinais sobre a maneira como as pessoas enfrentam as perdas e como conseguem seguir adiante (Folkman, 2007).

De acordo com Lazarus e Folkman (1984), coping ou enfrentamento é definido como um conjunto de "esforços cognitivos e comportamentais em constante mudança, com o objetivo de manejar (minimizar, evitar ou tolerar) demandas específicas internas e/ou externas que são avaliadas como sobrecarga ou como excedendo os recursos pessoais" (p. 141). No entendimento das situações de sobrecarga, são salientados dois aspectos: a necessidade de estratégias para lidar com o evento estressor e as manifestações de ansiedade daí decorrentes (Lazarus, 1966).

As estratégias de enfrentamento são subdividas em duas categorias, conforme proposto por Lazarus e Folkman (1984). A primeira delas engloba as modificações da relação entre a pessoa e o ambiente, denominada enfrentamento centrado no problema, que tem por objetivo controlar ou alterar o problema provocador de tensão, permitindo que ocorram negociações e redefinição da situação. A segunda é destinada a adequar a resposta emocional ao problema e é chamada de enfrentamento centrado na emoção, cujas ações podem envolver distanciamento, esquiva, negação, uso de substâncias psicoativas, entre outras. Nessa categoria, as possibilidades de alteração dos aspectos ambientais encontram-se reduzidas, o que favorece o emprego de estratégias relativas ao nível somático. Ambas se influenciam reciprocamente, nas mais variadas situações (Savóia, 1999).

No entanto, a resposta ao estresse necessita da perspectiva processual para ser compreendida, pois, independentemente do motivo gerador de tensão, diversas reações fisiológicas ocorrem no indivíduo (Lipp, Pereira, & Sadir, 2005). Mais importante que o evento propriamente dito é a vulnerabilidade do organismo frente à situação estressora, tendo em vista a avaliação cognitiva realizada pelo próprio indivíduo (Lazarus & Folkman, 1984).

Essa avaliação é influenciada por fatores que vão desde a natureza do episódio até as limitações individuais, a disponibilidade de recursos, as habilidades sociais e o apoio disponível (Lazarus & Folkman, 1984; Savóia, 1999). Assim, "o evento em si, percebido pelos órgãos sensoriais, é interpretado de acordo com a história de vida do ser humano, de seus valores e de suas crenças" (Lipp et al., 2005, p. 30). Trata-se, portanto, de um processo dinâmico que engloba a interação do indivíduo com o seu contexto (Straub, 2005).

Em se tratando de luto, M. S. Stroebe, Hansson, W. Stroebe e Schut (2007) propõem que o enfrentamento reúne processos, estratégias e estilos que são direcionados a reduzir, administrar e tolerar as situações decorrentes do mesmo, com vistas a diminuir as manifestações indesejadas. Quando isso acontece, segundo os autores, pode-se afirmar que o enfrentamento foi consistente e que acarretou um resultado positivo para o indivíduo.

Nas investigações empíricas sobre o luto, alguns pesquisadores têm levado em consideração as características culturais e ambientais relacionadas aos óbitos. Os trabalhos sugerem que há relação entre a origem cultural e o contexto dos participantes e as estratégias de enfrentamento por eles adotadas (Laurie & Neimeyer, 2008; Sharpe, 2015; Sharpe & Boyas, 2011). O estudo efetuado por Laurie e Neimeyer (2008), por exemplo, avalia o processo de luto de afro-americanos e caucasianos que haviam perdido um ente nos últimos 24 meses, com base em suas diferenças étnicas e culturais. Distinções entre os dois grupos foram apontadas quanto às mudanças na identidade, nas relações interpessoais e na manutenção de laços afetivos com a pessoa que faleceu.

Os afrodescendentes experienciaram mais perdas por homicídio e mostraram-se mais conectados ao ente perdido, ao mesmo tempo em que manifestaram elevados índices de estresse psicológico e sofrimento na família. Laurie e Neimeyer (2008) ressaltaram que eles pouco utilizavam os recursos disponíveis na rede de saúde mental, quando comparados aos caucasianos. Tais diferenças podem estar relacionadas ao fato de a cultura africana supervalorizar valores e crenças embasadas nas demonstrações de força e coragem, desestimulando reações emotivas ou demasiadas expressões de tristeza, o que também ajudou a compreender a inabilidade dessas pessoas para compartilhar sua dor com indivíduos fora do contexto familiar. Pesquisa semelhante realizada por Sharpe e Boyas (2011), com parentes de vítimas de homicídio, aponta que o apoio na fé, a manutenção do elo com a pessoa que morreu e a ocultação dos sentimentos são modos preferenciais de enfrentamento utilizados por afrodescendentes.

Quanto às práticas relacionadas à religiosidade, Murphy (2006) argumenta que o exercício da fé e as crenças pessoais contribuem para a construção de um novo sentido para determinada experiência. Segundo o ponto de vista da autora, quando a experiência se refere à perda de um familiar ou de outro ente querido, tal estratégia pode ajudar o indivíduo a situar-se temporalmente no processo de luto sem ter que romper de forma abrupta e definitiva a conexão com a pessoa falecida. Além disso, a sensação de isolamento e solidão provocada pela perda pode contribuir para que os familiares busquem conforto e alívio na religião (Bussinger, 2010).

Considerando que as mortes violentas são acontecimentos potencialmente deletérios, que costumam exigir diferentes estratégias adaptativas dos familiares das vítimas, este estudo tem como objetivo descrever os modos de enfrentamento utilizados por mães e irmãos de jovens que perderam a vida em razão de homicídio por arma de fogo, nos primeiros 12 meses de luto.

 

Método

Oito famílias residentes em diferentes regiões administrativas do Distrito Federal participaram da pesquisa; todas tinham nível socioeconômico baixo e estavam vivenciando a perda de um jovem (filho/irmão) vitimado por homicídio por arma de fogo. A coleta de dados ocorreu entre o primeiro e o 12º mês após o episódio.

As famílias e os jovens vitimados

Em razão de circunstâncias ambientais implicadas nos homicídios, tais como tráfico de drogas e disputa entre gangues, algumas famílias do estudo foram indicadas por pessoas que pertenciam a organizações não governamentais (ONGs) e que atuavam na prevenção da violência no Distrito Federal. Outras foram selecionadas por profissionais das áreas do Direito e da Psicologia, compondo, portanto, uma amostra por conveniência.

Das 16 famílias convidadas, apenas oito aderiram à pesquisa. Dentre os motivos alegados para a recusa estava a falta de condições emocionais e psicológicas. Além disso, em virtude de alguns perpetradores dos homicídios não terem sido encarcerados até a época da realização do estudo, participantes que supostamente integrariam a amostra evitaram o contato com a pesquisadora, por temerem represálias.

De cada uma das oito famílias, participaram do estudo duas pessoas: uma do sistema parental (mãe: n=8) e outra do fraternal (irmão: n=5). As famílias em que o jovem falecido era o único filho (n=2) ou que o irmão não pôde participar (n=1) tiveram, exclusivamente, a adesão da genitora. A idade das mães variou entre 36 e 59 anos, sendo a média de 48,5 anos. Quanto à escolaridade, uma das mães não era alfabetizada, quatro não haviam completado o ensino fundamental e três haviam concluído o ensino médio. Quatro genitoras relataram exercer algum tipo de atividade remunerada, duas disseram exercer trabalhos domésticos (do lar), e outras duas afirmaram estar desempregadas.

Os irmãos dos jovens, por sua vez, tinham em média 14,2 anos de idade e os seguintes níveis de escolaridade: ensino médio em processo de conclusão (n=2), ensino médio concluído (n=2) e ensino superior incompleto (n=1). Dos cinco irmãos participantes, quatro eram do sexo feminino e apenas um do masculino.

Os jovens vitimados (J1, J2, J3, J4, J5, J6, J7 e J8) tinham em média 18,7 anos. A maior parte deles era do sexo masculino (n=7), de raça parda e não havia completado o ensino fundamental. Dois não possuíam "ocupação", e os demais frequentavam a escola ou desenvolviam atividade laboral esporádica. Dos 8 jovens, apenas um havia deixado dependentes (filhos), sendo esta a única vítima do sexo feminino (J6). O comportamento transgressor mostrou estar presente na trajetória da maioria deles (J3, J4, J5, J7 e J8), constituindo um provável fator de risco para mortes desse tipo.

Procedimentos para coleta de dados

A coleta de dados ocorreu na residência dos participantes, após aprovação do Comitê de Ética da Universidade de Brasília (UnB), e o projeto foi inscrito sob o número 179/2008. Todos os participantes foram previamente contactados e sondados sobre a possibilidade de aderirem à pesquisa, conforme rege o TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Especial cuidado foi tomado pela pesquisadora quanto à vulnerabilidade das famílias (período de luto inferior a um ano), de modo a evitar qualquer possibilidade de sofrimento adicional. Somente as famílias que entenderam a proposta como uma oportunidade de serem escutadas é que efetivamente participaram. O trabalho consistiu na aplicação de uma entrevista semiestruturada, com questões relativas ao processo de luto e enfrentamento, desenvolvida para este projeto, e de uma escala de enfrentamento intitulada Escala Modos de Enfrentamento de Problemas - EMEP (Gimenes & Queiroz, 1997). Além disso, um Questionário de Caracterização do Sistema Familiar (Dessen, 2009) foi aplicado, visando à coleta de informações sociodemográficas das famílias.

O roteiro de entrevista semiestruturada foi elaborado tanto para as mães quanto para os irmãos. Com o propósito de conhecer e descrever as principais estratégias de enfrentamento adotadas pelas famílias, foram incluídas questões como: as circunstâncias da perda, as dificuldades enfrentadas pela família, a ajuda recebida para lidar com a situação, os valores e as crenças sobre mortes por homicídio e os efeitos psicológicos e emocionais decorrentes dos episódios. As entrevistas, gravadas em áudio, tiveram a duração média de uma hora e foram digitalizadas para viabilizar o processo de escuta e transcrição. As verbalizações dos participantes foram submetidas à análise qualitativa, conforme os passos de construção de sistemas de categorias propostas por Dessen e Cerqueira-Silva (2009), tendo sido elaboradas três versões até a obtenção do sistema final de categorias.

A Escala Modos de Enfrentamento de Problemas (EMEP) foi aplicada com a finalidade de identificar os modos de enfrentamento adotados pelos familiares em virtude da morte do jovem. A EMEP foi adaptada para a realidade brasileira por Gimenes e Queiroz (1997), e sua estrutura fatorial foi desenvolvida por Seidl, Tróccoli e Zannon (2001). Essa escala, em razão da complexidade das questões, exige que os respondentes tenham, pelo menos, concluído o terceiro ano do ensino fundamental.

Para adequar o preenchimento da referida escala aos propósitos da investigação, o trecho original: "As pessoas reagem de diferentes maneiras a situações difíceis ou estressantes. Pense em uma situação ou problema atual que esteja produzindo mais estresse para você. Escreva aqui esta situação-problema" (Seidl et al., p. 229) foi substituído por: "Diante da perda de seu filho (irmão), tenha em mente o que você faz, pensa ou sente para enfrentar a situação, ao responder o questionário".

A escala EMEP avalia as estratégias de enfrentamento utilizadas frente a um evento estressor geral ou a um evento estressor relacionado à saúde e é composta por 45 questões objetivas, divididas da seguinte maneira: 18 focalizadas no problema, 15 focalizadas na emoção, sete na busca de prática religiosa/pensamento fantasioso e cinco na busca de suporte social. Há, também, uma questão subjetiva que se destina a identificar alguma outra estratégia de enfrentamento que não tenha constado nas questões objetivas. As respostas são classificadas de acordo com a escala Likert de cinco pontos: (1) eu nunca faço isso, (2) eu faço isso pouco, (3) eu faço isso às vezes, (4) eu faço isso muito e (5) eu faço isso sempre. As respostas são calculadas para cada um dos quatro fatores. Os escores mais altos indicam maior frequência de utilização da estratégia de enfrentamento.

Os itens estão subdivididos em quatro fatores:

Fator 1. Enfrentamento focalizado no problema (alpha de Cronbach = 0,84). Estratégias voltadas para o manejo ou solução do problema e direcionadas para reavaliação e significação positiva do estressor. Abarca 18 itens.

Fator 2. Enfrentamento focalizado na emoção (alpha de Cronbach = 0,81). Estratégias que envolvem esquiva, negação, pensamento irrealista e desiderativo, expressão de emoções alusivas a raiva e tensão, atribuição de culpa, afastamento do problema e funções paliativas frente ao estressor. Este fator engloba 15 itens.

Fator 3. Enfrentamento centrado na busca de práticas religiosas e pensamento fantasioso (alpha de Cronbach = 0,74). Estratégias caracterizadas por comportamentos religiosos ou ligadas à espiritualidade, bem como pensamentos fantasiosos, incluindo sete itens.

Fator 4. Enfrentamento baseado na busca por suporte social (alpha de Cronbach = 0,70). Estratégias relativas à procura de apoio social e busca por informações, compreendendo cinco itens.

 

Resultados

Para a apresentação e análise dos resultados, as famílias foram reunidas em dois grupos distintos: Grupo A (F3, F4, F5, F7 e F8), cujos jovens apresentavam antecedentes de transgressão, e Grupo B (F1, F2 e F6), com jovens sem antecedentes. Foram considerados comportamentos trangressores para fins de análise: envolvimento em atos delinquentes (acusação de homicídio, acusação de furto/roubo, envolvimento em brigas, dívida com o tráfico, cumprimento de medida socioeducativa, prisão, uso/abuso de álcool ou drogas). Como a violência na comunidade foi apontada por sete das oito famílias, esse fator de risco estava presente tanto para as famílias cujo jovem apresentava comportamento transgressor (Grupo A) quanto para aquelas em que o jovem não apresentava tal comportamento (Grupo B). Três famílias (F1, F2 e F7) relataram ter enfrentado a morte de outro familiar, da mesma faixa etária e em circunstâncias semelhantes.

No que diz respeito ao enfrentamento, com base na entrevista semiestruturada, três estratégias foram relatadas pelas famílias. A primeira envolveu o mecanismo de negação, como demonstra esta verbalização: "Eu coloco na cabeça que ele tá viajando. Ele não morreu. Morrer é uma palavra muito difícil de falar. Coloquei na cabeça que o meu filho não morreu, que agora que ele está vivendo" (M1).

A retomada da rotina também foi utilizada como estratégia para o enfrentamento, na medida em que ajudava as famílias a lidarem com a realidade. Dentre aquelas que já haviam recomeçado a administrar seus afazeres, estavam três do Grupo A e todas as do Grupo B (F1, F2, F3, F5, F6 e F7): "O que me faz seguir em frente é a minha rotina. Ocupo a minha mente fazendo o meu dia a dia, como sempre fiz" (M2). As que não haviam retomado a rotina (F4 e F8), ao contrário, expressaram a falta de ânimo para dar conta das responsabilidades: "Não. Não tenho vontade de fazer as coisas dentro de casa. Não tá muito assim... igual era. Essa semana eu não tive coragem de lavar roupa" (M8).

A terceira estratégia mencionada refere-se ao apoio na fé e na religião, relatada por seis famílias (F1, F2, F3, F4, F6 e F7), isto é, três do Grupo A e todas do Grupo B, conforme os exemplos a seguir: "Fé em Deus (M1). / Busquei muita ajuda de Deus. Comecei a ler a Bíblia (M2). / Religião. Religião é coisa de suma importância, relacionamento com Deus (M7). / Muita fé e oração" (I1). Independentemente de especificar a religião praticada, todas elas evidenciaram a importância da fé e da busca de Deus para superar o problema.

A Escala EMEP, por sua vez, foi respondida por todos os participantes, exceto pela Família 3 (M3), em razão de a progenitora não ser alfabetizada; todos os demais preencheram os itens da Escala, constituída por quatro fatores, conforme detalhado anteriormente: (a) Fator 1: enfrentamento focalizado no problema; (b) Fator 2: enfrentamento focalizado na emoção; (c) Fator 3: enfrentamento centrado na busca de práticas religiosas e pensamento fantasioso; e (d) Fator 4: enfrentamento dirigido à busca por suporte social. A Figura 1 mostra os modos de enfrentamento utilizados pelas mães, de acordo com os fatores da Escala.

A estratégia de enfrentamento mais utilizada pelas mães M2 e M7 foi a estratégia com o foco no problema (fator 1). As progenitoras pertenciam a grupos distintos, sendo que M2 era do Grupo B e M7 do Grupo A. Porém, ambas já haviam enfrentado ou estavam enfrentando a morte de outro jovem na família. Para M7, esse fato estava ajudando a lidar com a segunda perda. As duas relataram ter conseguido aprimorar habilidades pessoais para enfrentar o óbito e se aproximar dos outros filhos após o homicídio. Também indicaram receber apoio de amigos e vizinhos da comunidade e conseguiram retomar suas rotinas. Seus valores e crenças quanto à educação se mostraram semelhantes. O manejo positivo e a reavaliação do evento caracterizaram as estratégias de enfrentamento dessas mães.

O enfrentamento focalizado na emoção (fator 2) foi a estratégia mais utilizada pela M5, que fazia parte do Grupo A. De acordo com as verbalizações da participante, o jovem (J5) apresentava comportamento transgressor, já havia cumprido medida socioeducativa e fazia uso de álcool e entorpecentes. A esse respeito, a mãe afirmou já esperar pela morte prematura do jovem e admitiu desejar que isso ocorresse, como forma de solucionar o problema. O homicídio foi atribuído à dívida de entorpecentes, e a perda foi interpretada como um castigo. Sentimentos de revolta e vingança foram evidentes em seu relato, assim como a vontade de morrer e a culpa pelo que aconteceu. A genitora evitou permanecer na mesma residência em que morava, em razão das lembranças do jovem. Considerava sua família pouco unida e a comunidade violenta. Quanto aos recursos de saúde disponíveis na vizinhança, não os utilizava com regularidade e não contava com suporte da rede social, considerando-se uma pessoa só, sem apoio da família, de amigos, vizinhos ou instituições. Assim, o modo de enfrentamento relatado por essa genitora foi coerente com o descrito para o fator 2, na Escala.

A estratégia de enfrentamento focalizada em prática religiosa e pensamento fantasioso (fator 3) foi usada de modo preferencial por quatro progenitoras: duas do Grupo A (M4 e M8) e duas do Grupo B (M1 e M6). No entanto, todas elas relataram ainda não ter conseguido aceitar a perda. Três (M1, M4 e M6) admitiram buscar apoio na fé e na religião para superar os momentos de maior dificuldade, e duas (M4 e M8) enfatizaram não ter retomado sua antiga rotina. A frequência a missas ou cultos religiosos foi apontada pelas mães M1 e M4 como única atividade de lazer. Três das participantes (M1, M6 e M8) afirmaram que a religião praticada era a católica; e uma (M4) era evangélica.

O enfrentamento focalizado na emoção foi o mais usado somente por uma mãe (M5), pertencente ao Grupo A, cujas verbalizações na entrevista se mostraram próximas ao resultado da escala, como o emprego de esquiva, negação, emoções alusivas a raiva e tensão, atribuição de culpa, entre outros. Além disso, a genitora não contava com apoio da rede social.

Os modos de enfrentamento utilizados pelos irmãos foram distintos daqueles utilizados pelas mães. A Figura 2 apresenta as estratégias mais usadas pelos irmãos.

 

 

A estratégia focalizada no problema (fator 1) foi a mais empregada pelos irmãos I1 e I5. Ao contrário de suas genitoras, cujo enfrentamento estava focalizado em prática religiosa e na emoção, os irmãos I1 e I5 usaram preferencialmente a estratégia caracterizada pelo manejo e reavaliação do problema. Os dois pertenciam a grupos diferentes.

O enfrentamento focalizado em prática religiosa e pensamento fantasioso (fator 3) foi usado pelos irmãos I2, I6 e I7. Para dois deles (I2 e I7), a estratégia adotada diferiu da utilizada por suas genitoras, pois ambas haviam recorrido ao enfrentamento focalizado no problema. Os irmãos I1 e I7 tinham vivenciado a perda de outro jovem na família, um primo e um irmão, respectivamente. Apenas em uma família (F6) houve coincidência entre a resposta da genitora e do irmão. Ambos usaram a estratégia focalizada em prática religiosa e pensamento fantasioso de forma predominante.

Tanto as genitoras quanto os irmãos não recorreram, de maneira preferencial, a estratégias baseadas na busca de suporte social (fator 4), embora cinco famílias (F1, F2, F6, F7 e F8), duas do Grupo A e todas do B, tivessem relatado na entrevista o apoio fornecido pelos familiares, vizinhos e amigos. Por outro lado, seis famílias do estudo (F2, F3, F4, F5, F6 e F8) relataram não ter recebido apoio das instituições da comunidade. Esse dado pode ser relevante para a compreensão da inexpressividade do suporte social na resposta dos participantes do estudo.

Com base na comparação entre as médias das mães e dos irmãos, a estratégia focalizada em prática religiosa e pensamento fantasioso (fator 3) foi a mais usada pelos participantes do estudo, seguida pela estratégia focada no problema (fator 1). A figura 3 sintetiza o resultado obtido.

 

 

Os participantes responderam também a uma questão aberta, conforme mencionado no método, quanto a outros modos de enfrentamento. As respostas, que eram opcionais, foram consistentes com o relato nas entrevistas:

Tento deitar e dormir para esquecer (M1); Comecei a estudar, a ler a Bíblia e ir para casa de amigos para conversar (I1); Tento viver o meu cotidiano, melhor que antes. Preencher mais as minhas horas e pensar no que vai vir de bom (M2); Me liguei nos estudos, acho que é uma forma de esquecer tudo. E estou mais perto de Deus, orando (I2); Pedir para Deus dar saúde e força para trabalhar e sustentar os netos, como minha filha fazia (M6); Frequentar a igreja pra ter mais fé (I6); Procuro ocupar o meu tempo e não deixar a cabeça vazia. Tento viver sem ele, sem andar se lamentando e chorando. Faço caminhadas (M7).

Em síntese, não foram verificadas diferenças entre o grupo A, em que os jovens vitimados apresentavam comportamento transgressor, e o grupo B, cujos jovens não tinham antecedentes, quanto às medidas empregadas neste estudo. Contudo, as famílias que já haviam perdido outra pessoa do seu núcleo apresentaram uma postura mais assertiva em relação aos demais membros, o que sugere que a experiência anterior pode tê-las ajudado a enfrentar a segunda perda.

 

Discussão

Pessoas que vivenciam mortes por homicídio costumam expressar, após os eventos, reações exacerbadas, intempestivas e até difíceis de serem reconhecidas por seus protagonistas, em virtude da imprevisibilidade e das circunstâncias adversas envolvidas (Currier & Neimeyer, 2006; Domingues & Dessen, 2013). Nesses momentos, são necessários esforços intra e interpessoais para lidar com a situação, cujos recursos de enfrentamento dependem das condições de saúde e energia de cada indivíduo, de suas habilidades, do apoio disponível em sua rede social, de sua capacidade para resolver problemas e do repertório de crenças que norteiam suas decisões (Savóia, 1999).

Assim, a negação, a retomada da rotina e o apoio na fé e na religião constituem estratégias utilizadas por sobreviventes para enfrentar a perda de um ente, conforme verificado pelo relato das genitoras que participaram do estudo. No que diz respeito especificamente à negação, sabe-se que esta é uma escolha centrada na emoção, geralmente associada à impossibilidade de mudanças no ambiente (Lazarus & Folkman, 1984). Em situações de homicídio, por exemplo, o uso da referida estratégia parece estar relacionado à intolerância por parte dos familiares em aceitar a nova realidade e à impossibilidade de esta ser alterada.

Dependendo da abordagem e da compreensão que se tem sobre o assunto, o ato de negar é considerado disfuncional ou mesmo prejudicial ao indivíduo. Bonanno (2004), entretanto, destaca que comportamentos de dissociação ou negação, que normalmente são vistos como indesejados em alguns contextos, são toleráveis e aceitos como parte de um processo mais amplo em eventos traumáticos, sem significar desajuste ou comprometimento psicológico. O papel dessa estratégia, para as participantes da pesquisa, portanto, pode ter sido o de protegê-las, ainda que momentaneamente, do impacto e das consequências negativas que as mortes provocaram em suas vidas. Nesse sentido, o pensamento fantasioso passa a ser interpretado como uma tentativa de adaptação, em um continuum de avanço e recuo frente à situação (M. S. Stroebe & Schut, 1999).

Outra forma de enfrentamento citada, e que se mostrou preponderante frente às demais, foi a busca pela prática religiosa, tanto nas verbalizações colhidas nas entrevistas quanto na Escala EMEP. Recorrer à fé traz conforto, ajuda os familiares a lidar com a morte e favorece a construção de um sentido para sua experiência (Murphy, 2006; Schaefer & Moos, 2007). Conforme aponta a literatura, as estratégias de enfrentamento focalizadas na fé facilitam o confronto com as mudanças e cooperam para a reordenação das prioridades e dos valores de todos os membros de uma família (Murphy, 2006).

O exercício da religiosidade independe da ajuda de pessoas ou grupos, por tratar-se de uma ação que, geralmente, é conduzida de forma solitária, intimista e autônoma. Além de denotar a noção de controle, ela pode ser considerada adequada em situações adversas, sobretudo em famílias que dispõem de poucos recursos em sua rede social de apoio (Domingues, 2010). Em geral, as famílias de baixa renda não costumam ter uma fonte consistente de ajuda em casos de violência e se encarregam de lidar sozinhas com os infortúnios (Bussinger, 2010). Tais conclusões são compatíveis com a pesquisa empreendida por Sharpe (2015) com afrodescendentes após perda por homicídio. Segunda a autora, questões históricas, culturais e condições de vida estigmatizantes estão conectadas às estratégias de enfrentamento escolhidas pelos sobreviventes.

Apesar de a prática religiosa ser bastante comum em nosso país, supõe-se que, para as genitoras deste estudo, tal estratégia tenha emergido em função da falta de amparo por parte das instituições que deveriam acolher os familiares dos jovens vitimados, mas que não o fizeram (Domingues & Dessen, 2013). Nesse sentido, a estruturação de redes de apoio é uma medida importante para o acolhimento dos familiares, parentes e amigos, sobretudo para aqueles que recorrem, preferencialmente, à religião para suportar a dor e a solidão.

Cabe ainda destacar que as estratégias com foco no problema foram usadas pelas participantes que haviam sofrido a perda de outros jovens (filho e sobrinho) em momento anterior e em circunstâncias semelhantes. Esse dado indica que, apesar do sofrimento, da dor e da desesperança que as perdas abruptas e violentas desencadeiam, há aspectos positivos e saudáveis que o enfrentamento pode originar e que fazem parte do processo de resiliência, conforme apontado nos trabalhos de Bonanno (2006). A vivência da morte de outro jovem nessas famílias parece ter estimulado uma reorganização na maneira de olhar o mundo, permitindo que novos valores e sentimentos, como solidariedade e união, passassem a compor o repertório emocional e as habilidades dos sobreviventes.

No que tange à posição dos irmãos, observa-se que houve algumas similaridades e diferenças quanto à maneira de lidar com o episódio. As estratégias por eles usadas foram a prática religiosa e o pensamento fantasioso, seguida pela estratégia focada no problema, o que configura um enfrentamento de modo pragmático. Por outro lado, esses jovens também recorreram muito pouco à rede social de apoio, o que sugere que eles tenham se sentido ainda menos apoiados do que suas genitoras. Um dos fatores que permite compreender tais respostas reside no fato de existir pouca segurança na comunidade, implicando alto risco para episódios de violência, o que, por sua vez, prejudica o estabelecimento de relações de confiança entre seus membros (Domingues, 2010).

No entanto, a morte dos jovens provocou a aproximação e o estreitamento na relação entre pais e filhos e entre os irmãos. A experiência da perda talvez tenha propiciado aos familiares uma reavaliação de suas condutas, na maneira de conduzir suas relações e nos estilos de comunicação. A dinâmica da família, por meio do respeito mútuo, de estratégias eficazes de enfrentamento e encorajamento entre os membros, ajuda a reestabelecer a estabilidade familiar, facilitando o processo de resiliência (Salloum & Rynearson, 2006).

A despeito das limitações deste estudo, ressalta-se o número pequeno de participantes e a própria vulnerabilidade causada pela situação de risco. Entretanto, os achados são consistentes com a literatura sobre o assunto, que endossa as percepções dos sobreviventes, reforçando que mesmo eventos trágicos como as mortes por homicídio podem oportunizar crescimento e alterações positivas (Bonanno, 2006). Os dados apresentados neste artigo sugerem que as famílias vitimadas merecem um olhar diferenciado, tendo em vista os fatores de risco associados às mortes e, ao mesmo tempo, os fatores protetivos relativos ao luto e à maneira de lidar com os problemas. A diferença nos modos de enfrentamento identificada entre os membros da mesma família aponta para a necessidade de uma compreensão ampliada sobre a elaboração subjetiva dessa experiência. Além disso, é importante que futuros trabalhos substituam a visão abstrata de enfrentamento por uma noção social, histórica e cultural, especialmente com populações menos investigadas (Sharpe, 2015).

 

Conclusões

A família é, portanto, a primeira a sofrer o impacto da violência letal, o que exige uma reorganização em sua rotina, em seus hábitos e no seu sistema de valores e crenças (Domingues, 2010). As mudanças, a partir do episódio, são inevitáveis e de consequências geralmente imprevisíveis, com adversidades que podem ser percebidas já no início do processo de luto e, também, a longo prazo.

Para conseguir vencê-las, os familiares precisam de esforço e determinação. Em Vitória, no Estado do Espírito Santo, por exemplo, foi criada uma associação para acolher mães e parentes de pessoas que perderam a vida em decorrência de ações criminosas. Segundo Bussinger (2010), a entidade, inaugurada em 2001 e denominada AMAFAVV - Associação de mães e familiares de vítimas da violência -, cumpre um papel que o Estado não é capaz de cumprir, isto é, fornecer aos sobreviventes orientações jurídicas, apoio psicológico e social. A autora destaca que o trabalho foi idealizado para evitar o isolamento dos familiares, pois tal postura não favorece a tomada de decisões ou a resolução de problemas derivados das mortes. A união do grupo em torno do mesmo objetivo pode, ao contrário, favorecer o apoio mútuo e ajudar na recuperação dos enlutados.

É preciso não somente criar mecanismos capazes de evitar os óbitos por homicídio, como também políticas voltadas a amparar de forma eficaz quem passa por esse tipo de experiência e pelas situações de enfrentamento. Em outras palavras, o planejamento de estratégias preventivas é tão importante quanto a elaboração de programas de atendimento pós-eventos, evitando que a família arque sozinha com os dissabores da perda.

 

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Endereço para correspondência:
Daniela Fontoura Domingues danydom61@gmail.com
Maria Auxiliadora Dessen dessen@unb.br
Elizabeth Queiroz bethqueiroz@unb.br

Submetido em: 30/07/2014
Revisto em: 15/05/2015
Aceito em: 14/06/2015

 

 

* Texto referido à pesquisa que conta com o apoio da CAPES.

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