SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.70 issue3Adolescents, infraction and drugs: mapping sociotechnical networks texturesTensions of being a teacher in the private education sector author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.3 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2018

 

ARTIGOS

 

A invenção dos Alcoólicos Anônimos: alcoolismo e subjetivação

 

The invention of Alcoholics Anonymous: alcoholism and subjectivation

 

La invención de los Alcohólicos Anónimos: alcoholismo y subjetivación

 

 

Raul Max Lucas da CostaI; Leonardo DanziatoII

IDocente. Centro Universitário Dr. Leão Sampaio (UNILEÃO). Juazeiro do Norte. Estado do Ceará. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Fortaleza. Estado do Ceará. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O surgimento do alcoolismo como categoria médica no final século XIX foi contemporânea as intervenções médicas nas massas populacionais urbanas. Mais adiante, os Alcoólicos Anônimos (AA) surgem como uma irmandade com o propósito de tratar a "doença alcoólica" partindo de preceitos metódicos e espiritualistas. Este artigo objetiva discutir a constituição histórica e genealógica dos AA, destacando seus efeitos subjetivos em torno da categoria alcoolismo. Empreendemos um estudo bibliográfico utilizando a produção escrita dos AA, analisando os dados a partir da perspectiva foucaultiana. Constatamos que os AA individualizaram o diagnóstico de alcoolismo, até então concebido como uma doença social. Concluímos que os AA reformularam a concepção de doença alcoólica dando-lhe uma conotação subjetiva e inauguraram uma terapêutica pragmática cujo efeito foi uma nova construção identitária calcada em uma moral de vida.

Palavras-chave: Alcoólicos Anônimos; Alcoolismo; Subjetivação; História e Genealogia.


ABSTRACT

The emergence of alcoholism as a medical category in the late nineteenth century was contemporary to medical interventions in the urban masses. Later, Alcoholics Anonymous (AA) emerged as a brotherhood for the purpose of treating 'alcoholic disease' from methodical and spiritualistic precepts. This article aims to discuss the historical and genealogical constitution of AA, highlighting its subjective effects around the category alcoholism. We conducted a bibliographic study using the written production of AA, analyzing the data from the Foucaultian perspective. We found that AA individualized the diagnosis of alcoholism, which was previously conceived as a social disease. We conclude that AA reformulated the conception of alcoholic disease giving it a subjective connotation and inaugurated a pragmatic therapy whose effect was a new identity construction based on a moral of life.

Keywords: Alcoholics Anonymous; Alcoholism; Subjectivation; History; Genealogy.


RESUMEN

El surgimiento del alcoholismo como categoría médica alfinal del siglo XIX fue contemporáneo a las intervenciones médicas en las masas populares urbanas. Mas adelante, los Alcohólicos Anónimos (AA) surgen como una hermandad con el propósito de tratar la 'enfermedad alcohólica' partiendo de preceptos metódicos y espiritualistas. Este artículo tiene como objetivo discutir la constitución histórica y genealógica de los AA, destacando sus efectos subjetivos en torno de la categoría alcoholismo. Emprendemos un estudio bibliográfico utilizando la producción escrita de los AA, analizando los dados a partir de la perspectiva de Foucault. Constatamos que los AA individualizaron el diagnóstico de alcoholismo, hasta entonces considerado como una enfermedad social. Concluimos que los AA reformularon la concepción de enfermedad alcohólica dándole una connotación subjetiva y inauguraron una terapéutica pragmática cuyo efecto fue una nueva construcción de identidad fundamentado en una moral de vida.

Palabras clave:Alcohólicos Anónimos; Alcoholismo; Subjetivación; Historia y Genealogía.


 

 

Introdução

A emergência histórica dos Alcoólicos Anônimos (AA) na década de 1930 como um grupo de ajuda mútua, com o propósito de tratar o beber excessivo através da abstinência, inaugurou uma discursividade peculiar sobre o alcoolismo diferente até então das intervenções médicas e governamentais vigentes baseadas no higienismo e na segregação. Não à toa a categoria nosológica "alcoolismo" teve sua origem no contexto da Revolução Industrial do século XIX, momento de excessiva preocupação com a figura do trabalhador (Carneiro, 2010; Santos, 2004).

Uma das especificidades dos AA consiste no recurso a um programa terapêutico espiritual composto por 12 passos, 12 tradições e 12 conceitos (Alcoólicos Anônimos [AA], 2010) e na construção identitária da figura do "alcoólico anônimo" (Campos, 2010). Este conjunto doutrinário serve como alicerce tanto para os princípios práticos necessários para uma vida sóbria (AA, 2005) como também direciona o funcionamento institucional dos pequenos grupos que constituem a Irmandade.

Tal conjunto de preceitos normatizam a terapêutica espiritual, a estrutura institucional e o funcionamento administrativo da Irmandade em qualquer lugar do mundo. Dessa forma, cada grupo de AA se insere em um modelo universalizante de funcionamento que doa um aspecto unitário e coeso à instituição. Assim, a unidade aliada ao serviço (a organização do trabalho institucional) e a recuperação como fundamento constituem o chamado legado de AA.

Apesar do surgimento e do crescimento das terapêuticas psicofarmacológicas e psicológicas a partir da segunda metade do século XX, a proposta terapêutica dos AA se mantém inalterada, assim como sua concepção de alcoolismo. Em suma, o alcoolismo é uma doença alérgica e seu tratamento respalda-se em um despertar espiritual e do vínculo fraterno entre um alcoólico e outro (AA, 2010). Tais fundamentos doutrinários estabelecem que os membros de AA não podem se envolver em controvérsias públicas, ou ainda, opinar sobre pesquisas científicas e propostas políticas para o alcoolismo. O objetivo maior da Irmandade é a prática da sobriedade alcoólica a partir da aplicabilidade de seu conjunto doutrinário na reconstrução subjetiva de cada alcoólico anônimo (Campos, 2010). A vinculação fraterna dos AA pode ser entendida como uma resistência comunitária em tempos de individualismo e declínio das práticas solidárias (Mota, 2004).

O lugar da Irmandade no laço social é marcado pelo paradoxo de perspectivas entre seu ideal de sobriedade ("evite o primeiro gole") e a prédica de temperança da atual política governamental ("beba com moderação"). O anonimato de seus membros e a intencional abstenção dos AA sobre questões políticas, religiosas e científicas doam à instituição um caráter peculiar: seu funcionamento reservado e tradicional convive com seu privilégio e prestígio na cultura brasileira. O estabelecimento dos AA no Brasil, ao longo dos 70 anos de sua presença no país se reflete hoje em sua grande recepção, circulação social e institucional. A Irmandade está presente em todos os estados brasileiros com um número significativo de grupos: 5.099, conforme as informações de seu site oficial (AA, 2017). Sua recomendação como terapêutica para o alcoolismo é constante pelos profissionais de saúde atuantes nas políticas públicas (Diehl, Cordeiro, & Laranjeiras, 2010). A sigla AA é facilmente reconhecida na espacialidade urbana, mesmo para aqueles que desconhecem seu funcionamento e propósitos.

Contudo, mesmo com seu estabelecimento como prática alternativa ou "grupo de apoio" no campo da saúde coletiva, surgem hoje questionamentos sobre sua eficácia. Em pesquisa realizada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), constatou-se que a recuperação do alcoolismo é maior para aqueles que não estão engajados em AA, estejam ou não em tratamento médico e psicológico (Terra, Barros, Stein, Figueira, Athayde, & Silveira, 2011). O relato de ex-membros, como o de Bahia (2008), visa desconstruir os fundamentos doutrinários e a história oficial dos AA, denunciando sua ineficácia enquanto tratamento do alcoolismo, justamente por se distanciar das contribuições atuais do campo da saúde, sobretudo da Medicina e da Psicologia.

Cresce também, no âmbito internacional, o número de relatos nas redes sociais de pessoas que abandonaram os AA devido à dificuldade de praticar a crença em um Poder Superior, condição necessária para o cumprimento do programa espiritual dos 12 passos (Leaving AA, 2017). O documentário The 13th Step (Richardson, 2015) apresenta uma gama de depoimentos de pessoas, sobretudo mulheres, que sofreram abuso ou assédio sexual durante as reuniões de grupos de AA estadunidenses. O filme foi produzido por militantes feministas, ex-membros de AA, médicos e instituições alternativas à proposta dos AA, considerada hegemônica no campo do tratamento do alcoolismo. Essa investida nas redes sociais e na mídia documental se articula e conflui para um significativo movimento anti-AA nos EUA.

Para além do desempenho terapêutico dos AA, nos interessa a subjetivação implícita no processo de engajamento institucional, já evidenciada no campo de pesquisa das ciências sociais (Campos, 2010; Mota, 2004). Uma leitura atenta da "literatura de AA" (livros, revistas, folhetos) revela a intenção de produção (ou reconstrução) subjetiva através de um saber-fazer pragmático que tem o alcoolismo como baliza identificatória. A identificação entre os membros, o ideal de abstinência alcoólica e a construção de um saber-fazer espiritualista, produzem uma concepção singular sobre a categoria alcoólico anônimo. Tal fato evidencia que a proposta dos AA ultrapassa uma simples técnica terapêutica e se configura na verdade como uma moral de vida.

Nomeamos o fundamento dessa moral de vida como dietética da abstinência, fazendo aqui um apelo ao conceito de dietética isolado por Foucault (1998) em seu estudo sobre o uso dos prazeres entre os gregos antigos. A dietética consistia no conjunto de práticas de regime (exercícios físicos, práticas alimentares, sono) norteadas por recomendações médicas e filosóficas que visavam a moderação e a evitação dos excessos. Ressaltamos que, entre os AA, tais práticas visam ultrapassar a concepção de terapêutica e se constituir como um modo de vida.

No tocante aos AA, entendemos que seu conjunto doutrinário funciona como referência para a construção de uma moral de vida em torno da sobriedade alcoólica, daí a ideia de uma dietética da abstinência. A posição subjetiva do alcoólico anônimo implica em uma disciplina abstinente na qual o beber, nada apoiado em uma moral de vida disciplinar, se apresenta como uma produção de subjetividade.

Nosso objetivo neste artigo, portanto, é analisar genealogicamente a formação discursiva dos AA, considerando suas consequências nos modos de subjetivação produzidos a partir da prática discursiva da categoria nosológica alcoolismo. Tal empreendimento é necessário para uma melhor apreciação da reconstrução subjetiva entre os AA, tema de nossa tese de doutorado1.

Situamos, neste sentido, a permanência dos AA em um campo de discursividade mais amplo onde a busca por um saber-fazer e pelas referências identitárias são constantes. Nos tempos atuais, a profusão de manuais de autoajuda, dos grupos de ajuda mútua e de tecnologias comportamentais como o coaching e a Programação Neurolinguística (PNL) compõem um conjunto de práticas pedagógicas baseadas no "como fazer" e no pragmatismo funcional. Nos chama a atenção a difusão comercial desse tipo de "saber-fazer" enquanto promessa de êxito empresarial e na própria constituição do sujeito como empresário de si (Dardot, & Laval, 2016).

 

Método

Enquanto procedimento metodológico, realizamos uma pesquisa bibliográfica sobre a constituição histórica dos AA através de um estudo sistemático de sua literatura oficial. Esta é composta por livros, livretos, revistas e informativos, cujo acesso só é possível direto com a Irmandade, já que não são comercializados por outro meio. Além dessa literatura oficial, consultamos fontes históricas como manuais psiquiátricos, revistas e jornais de época que fazem referência aos AA. As produções artísticas (filmes, escritos autobiográficos e literários) que fazem apelo à embriaguez e ao alcoolismo serão utilizados como recursos importantes para a devida contextualização histórica e genealógica, condição necessária para a nossa apreciação discursiva.

Como referencial teórico para a análise dos dados, buscamos na genealogia foucaultiana uma ferramenta analítica crucial para a historicização das problemáticas do presente e das relações de poder-produção. Enquanto autor referenciado em diversos campos do conhecimento, Foucault contribuiu não só com conceitos filosóficos, mas com um método de pesquisa que convida à leitura crítica de diversos elementos produzidos em sua dada época histórica.

Partindo da noção foucaultiana do poder enquanto produção (Foucault, 1998), uma questão precedente ao surgimento dos AA consiste em interrogar a relação da emergência histórica da categoria médica o alcoolismo com a produção subjetiva do trabalhador promovida pelas instituições e práticas disciplinares. Em seguida, situaremos a emergência da discursividade dos AA no momento de reestruturação do capitalismo pós-crise de 1929 e revogação da Dry Law (Lei Seca) a partir dos preceitos da economia neoliberal.

 

Os Alcoólicos Anônimos (AA) e a reinvenção do alcoolismo

A emergência dos AA pode ser compreendida a partir de dois acontecimentos correlacionados. O primeiro consiste no surgimento do alcoolismo como "doença social" em meados do século XIX, momento de intensa mercantilização da força de trabalho através da formação do proletariado. O segundo, as investidas governamentais, médicas e jurídicas ocorridas nas décadas iniciais do século XX que culminaram no higienismo e na Lei Seca norte-americana (Carneiro, 2010).

O alcoolismo foi categorizado como doença pelo médico sueco Magnus Huss em 1847. O autor define a "doença alcoólica" como uma intoxicação crônica dos órgãos vitais. Anteriormente à sua categorização, havia a categoria "dipsomania" para referir a compulsão por beber caracterizada por sede constante. Magnus Huss não hesita em associar o alcoolismo com uma doença típica dos trabalhadores pobres consumidores de bebidas destiladas (Santos, 2004).

No contexto dessa categorização já era corrente uma distinção e uma segregação social a partir do tipo de bebidas consumidas. Carneiro (2010) destaca os quadros do pintor William Hogart Gin Lane (Travessa do Gim) e Beer Street (Rua da Cerveja), de 1751, como uma das formas de representação da distinção social a partir do tipo de bebida consumida. No quadro Gin Lane, os bebedores de gim (bebida destilada) foram retratados como pobres, desnutridos e desordeiros em uma espacialidade precária e caótica. Já na Beer Street, os consumidores de cerveja foram representados de forma asseada, amistosa e inclinados à produção artística.

Durante os séculos XVIII e XIX era comum a crença de que as bebidas fermentadas como o vinho e a cerveja possuíam qualidades terapêuticas em detrimento das bebidas destiladas. Tal perspectiva favoreceu a concepção do alcoolismo como consequência do consumo de destilados e que sua terapêutica seria possível pela via de ingestão dos produtos fermentados (Costa, 2015; Santos, 2004).

Nas primeiras décadas do século XX, o movimento higienista atuante em países como os EUA, Brasil e Alemanha tinha como uma de suas principais metas a erradicação do alcoolismo considerado como um mal social justamente por corroer o corpo dos trabalhadores. Nessa época, as campanhas antialcoólicas alcançaram grande adesão por parte das elites sociais. No Brasil, foram a principal forma de intervenção higienista no espaço urbano (Costa, 2007).

As práticas higienistas de profilaxia das doenças mentais tinham como referencial teórico a eugenia que buscava promover o aperfeiçoamento da raça humana através da ciência. Nos EUA, berço do higienismo e da política proibitiva, fora a união entre o higienismo-eugenismo e a impactante atuação das ligas femininas cristãs antialcoólicas que, através de seus representantes políticos, instituíram a Lei Volstead, mais conhecida como Lei Seca entre os anos de 1920 a 1933. O legado da proibição é bastante conhecido: aumento da criminalidade, da violência e das mortes por alcoolismo (Burns, 2011; Escohotado, 2000).

Será justamente na década de 1930 que ocorrerá uma progressiva organização de uma nova irmandade de ex-bebedores na cidade norte-americana de Akron, Ohio. O propósito do novo movimento era ofertar um tratamento do alcoolismo por uma via diferente da Medicina e da religião. Os AA surgem a partir da parceria entre Bill Wilson e Robert Smith. O primeiro foi um investidor da bolsa de valores de Wall Street e o segundo médico-cirurgião.

Ambos já haviam participado dos grupos Oxford, movimento religioso pioneiro na abordagem do alcoolismo a partir de um método de sete passos (AA, 2009). Em 1935, Bill Wilson e Robert Smith junto de um pequeno grupo de ex-bebedores estabeleceram a Fundação do Alcoólico que, pouco tempo depois, se tornou AA. O motivo do anonimato se dava por uma razão prática: era necessário ocultar a adicção alcoólica para poder trabalhar diante a possibilidade de demissão ou mesmo de não admissão. Bill Wilson justificou o anonimato com as seguintes palavras:

É importante permanecermos anônimos porque somos, atualmente, muito poucos para atender o enorme número de pedidos pessoais que possa resultar desta publicação. Por sermos, na maioria, profissionais liberais ou homens de negócios, não poderíamos, em tal eventualidade, continuar a nos dedicar a nossas ocupações. Gostaríamos que todos compreendessem que nosso trabalho como alcoólicos não é nosso ganha-pão (AA, 2009, p. 11).

Somente em 1939 o nome Alcoólicos Anônimos se torna oficial com a publicação do livro intitulado com o nome da Irmandade. Conhecido também como o "grande livro" (por conta do tamanho) ou "livro azul" (devido à cor da capa), a obra apresenta de forma sistemática a filosofia, o método dos 12 passos, o conceito de alcoolismo, além da proposta de funcionamento das reuniões. Uma marca de distinção do programa terapêutico dos AA foi sua declarada apropriação de preceitos cristãos, filosóficos pragmáticos e psicológicos. Foi baseado no pragmatismo de William James que Bill Wilson estabeleceu o despertar espiritual como condição fundamental para o engajamento e a prática dos 12 passos. Seguindo essa via pragmatista, os relatos pessoais de ex-bebedores, assim como o aval de profissionais e líderes religiosos servem como um reconhecimento e autorização do programa de AA.

A formação discursiva de AA tem como fundamento sua definição de alcoolismo e por consequência de alcoólico anônimo. O alcoolismo é concebido como uma doença orgânica alérgica, fato que impossibilitaria algumas pessoas de consumir bebidas alcoólicas. Esta concepção empírica do alcoolismo como uma alergia corporal é consequência a experiência pessoal dos fundadores e dos membros pioneiros da Irmandade. Nas palavras de Bill Wilson, "Tudo ao meu redor era areia movediça. Eu havia encontrado um adversário imbatível. Eu fora dominado. O álcool era meu senhor" (AA, 2010, p. 44). Por consequência, o alcoólico será concebido como o portador de uma doença incurável, cuja solução possível consiste na abstinência alcoólica através de um método prático e espiritual. O propósito então maior da Irmandade é a manutenção diária da sobriedade.

Desde sua origem, os AA se apresentam como um grupo eminentemente masculino. É nesse sentido que o livro azul abrange capítulos dedicados a orientações a familiares, aos empregadores e às mulheres. Em síntese, o perfil do alcoolista anônimo é de um homem, profissional liberal, cristão e chefe de família. Apesar do reconhecimento de haver mulheres alcoolistas, estas não figuram como protagonistas nos relatos publicados na literatura de AA. Nas primeiras décadas do século XX, o consumo de bebidas alcoólicas se constituiu como uma prática eminentemente masculina (Matos, 2000), dada a estreita relação entre trabalho braçal e consumo de bebidas alcoólicas no cotidiano urbano (Chalhoub, 2001).

A distinção social em torno do consumo alcoólico até as primeiras décadas do século XX era demarcada pelo uso das bebidas destiladas, como a cachaça, pelos homens e as bebidas licorosas pelas mulheres. O consumo de aguardente era considerado uma prática de desafio masculino, dada a dificuldade de ingestão alcoólica de destilados. Tal distinção em torno do consumo alcoólico não se limitava às fronteiras da sexuação e estabelecia também uma segregação social e econômica entre ricos e pobres evidenciada na espacialidade e nas bebidas consumidas (Costa, 2015).

No contexto dos EUA, Burns (2011) destaca a atuação decisiva dos movimentos femininos e religiosos na promulgação e na derrocada do ato constitucional Volstead, que ficou popularmente conhecida como Dry Law (Lei Seca). As mulheres passaram a se manifestar publicamente contra a embriaguez de seus maridos nos bares e saloons. Foi a união de várias entidades femininas e cristãs como a Anti-Saloon League que pressionou líderes religiosos e políticos a promulgar uma emenda constitucional que proibisse a venda, a produção e a comercialização de bebidas alcoólicas. De início, a proibição ocorreu no estado de Ohio e consequentemente em outros estados dos EUA. Somente em 1919 o Senador Volstead decreta que a Lei Seca terá âmbito nacional.

A proibição não inibiu o consumo de bebidas alcoólicas. O contrabando, a produção caseira e a venda ilegal prosseguiram a ponto de mobilizar a força policial e a fiscalização governamental. Um efeito da Lei Seca foi a aproximação das mulheres aos espaços de consumo ilegal de bebidas. Assim, homens, mulheres e minorias sociais compartilhavam do mesmo espaço em função do consumo etílico. Além desse fato social, a militância de mulheres como a de Pauline Sabin, socialite e membro do Partido Republicano, foi decisiva no final da década de 1920 para o fim da Lei Seca (Burns, 2011).

Podemos situar historicamente os AA como herdeiros direto dessa patologização e criminalização do álcool. A proibição longe de cumprir com sua meta de acabar com o alcoolismo, agravou sua problemática social, elevando o número de mortes e de intoxicados por bebidas de fabricação autônoma. Tais bebidas possuíam um alto teor de metano, fator determinante de problemas de saúde. Ao mesmo tempo, a criminalidade se apropriou do produto ilegal para a criação do tráfico de bebidas que culminou no fortalecimento dos grupos mafiosos e de sua consequente violência (Escohotado, 2002). Obviamente, a crise financeira de 1929 foi um dos fatores decisivos na revogação da lei que proibia a produção e comercialização de bebidas alcoólicas. O fim da proibição acompanhou o anseio de retorno de crescimento econômico após a crise de superprodução. Vale ressaltar neste contexto, que um dos fundadores mais representativos da Irmandade, Bill Wilson, trabalhava como um investidor da Bolsa de Valores.

Outra especificidade do AA com relação aos tratamentos para alcoolistas reside em uma proposta terapêutica diferenciada da médica e da religiosa. A posição agnóstica da Irmandade é um de seus princípios fundamentais. Tal postura advém sobretudo da experiência espiritual de Bill Wilson e de sua apropriação da perspectiva religiosa de William James, filósofo e psicólogo norte-americano que foi um dos pioneiros do pragmatismo, corrente filosófica defensora da prática e utilidade dos conceitos filosóficos. O movimento pragmatista surge no final do século XIX como uma oposição aos grandes sistemas filosóficos idealistas. Um dos preceitos chave do pragmatismo é que se algo funciona, então é verdadeiro (James, 2006).

Na literatura de AA (livros, livretos, folhetos e revistas), o tema do despertar espiritual é constantemente explorado através de relatos pessoais de membros da Irmandade (AA, 2011). Bill Wilson remete a origem dessa proposta espiritualista à sua leitura do livro de James intitulado Variantes da Experiência Religiosa. Nesta obra, o autor apresenta que a concepção de Deus é particular para cada um e que sua pertinência se deve à sua funcionalidade prática afastando-se de qualquer concepção teísta ontológica e dogmática. Partindo dessa leitura, Bill Wilson construiu para si a premissa de que se Deus funciona na manutenção da abstinência alcoólica. A prova disso, consiste em sua própria experiência quando passou a acreditar em um poder maior à sua maneira.

Enquanto uma "narrativa terapêutica" (Illouz, 2011, p. 37), ou seja, um tipo de discursividade performática na qual o narrador apresenta uma história de superação pessoal a partir de um contraste entre um antes (momento crítico) e depois (êxito), através de um método inovador, a doutrina pragmática e espiritual dos AA introduz no campo das terapêuticas do alcoolismo, a noção de uma doença individual. O enunciado "sou alcoólico" é uma novidade no campo das representatividades em torno do consumo alcoólico. Tal narrativa tornar-se terapêutica justamente por autorizar que uma experiência pessoal, registrada em livros e demais relatos escritos, possa servir de modelo de superação para aqueles em semelhante situação de sofrimento. No caso dos AA, é notória que as experiências de seus fundadores, sobretudo de Bill Wilson, sirvam ainda hoje como referências para os iniciados na Irmandade.

Até as primeiras décadas do século XX o termo alcoolismo era corrente entre os higienistas e seus aliados, mas não era um termo utilizado pela população em geral (Costa, 2015). Em relatos autobiográficos como o do escritor Lima Barreto não há menção aos termos alcoolismo, alcoólatra ou alcoolista. Para expressar seu sofrimento que o levou a internação asilar o autor literário dizia ter "problemas com a bebida" (Costa, 2008). Em outro escrito literário, na novela de Jorge Amado A Morte e a Morte de Quincas Berro D'Agua (2008) não há menção ao termo alcoolismo ou alcoólatra, e sim a termos como cachaceiro. Mesmo em outro campo artístico como o cinema, um filme emblemático como O Ébrio de 1947 (Abreu, 1947), também não refere à categoria médica.

Considerar a si mesmo como um doente alcoólico revela um processo de psicologização na própria concepção de alcoolismo. Apesar de a doutrina de AA ressaltar a "alergia alcoólica" como uma questão somática, a doença alcoolismo é de cada um, daí o tratamento produzir basicamente uma dupla alteridade: com o outro semelhante e com o Outro do Poder Superior.

No Brasil, os primeiros registros sobre AA datam entre os anos de 1945 e 1947, quando membros dos AA de origem estadunidense começaram a viajar a trabalho e a residir no Rio de Janeiro. Esse foi o caso de Lynn Gondale, Don Newton, Herbert L. e Douglas Claders que morando no país buscaram materiais impressos e informações junto da Secretaria-Geral nos EUA sobre outros membros de AA registrados e também residentes no Rio de Janeiro. Herbert L. destacou-se ao fundar o primeiro grupo oficial de AA no Brasil (AA, 2011).

Na década seguinte é possível observar nos manuais de Higiene Mental uma modificação no conceito de alcoolismo. O que antes era tratado em termos como "degenerescência" passou a ser concebido como uma questão "psicodinâmica". O Manual de Higiene Mental, de Yahn (1953), listava os fatores necessários para a abordagem do adoecer mental: o psíquico, o social, a infância, o desenvolvimento individual. Se constituía, portanto, uma nova concepção higienista do alcoolismo enfatizando sua dimensão de doença psíquica e individual deixando a ideia de doença social em segundo plano:

Até há 10 anos atrás não se tinha uma concepção exata médico-científica do problema do alcoolismo. Os conceitos vigentes provinham de pesquisa em minoria da população alcoolista, constituída pelos alcoólatras em período avançado da doença. Era então o alcoolista considerado um marginal ou delinqüente, tanto pela justiça, como pela polícia ou pelas sociedades beneficentes. [...] A psicologia do homem obrigado a destruir-se por auto-intoxicação alcoólica estava a cargo do sacerdote, das instituições sociais beneficentes e penais, dos proibicionistas ou do demônio. [...] só ultimamente médicos, sociólogos e especialmente, psicanalistas e psicólogos chegaram à conclusão de ser o alcoolista um doente, e como tal passaram a tratá-lo (Szerling, 1953, p. 276).

Para essa Medicina Higienista brasileira dos anos 1950, a "toxicomania alcoólica" era consequência das influências socioculturais nas quais o consumo alcoólico era permissivo nas comemorações sociais, na publicidade das cervejas dirigida às crianças, na ausência da educação familiar e no contexto de penúria e esgotamento físico dos trabalhadores. Como proposta terapêutica institucional para a política de saúde brasileira, Szerling (1953) recomendava a experiência estadunidense da Universidade de Yale conhecida como "Plano Yale" que consistia em um centro de pesquisa e tratamento do alcoolismo. Tais intervenções institucionais privilegiavam o tratamento em conjunto de diversas especialidades como a Medicina, a Psicologia e a Antropologia. A partir de suas pesquisas o Centro de Yale construiu um plano de intervenção combinando psicanálise, psicoterapia de grupo, tratamento medicamentoso e o engajamento nos "Alcoolistas Anônimos". O funcionamento dos AA é descrito como uma proposta inovadora:

[...] só podem fazer parte dela, os alcoolistas que conseguiram tornar-se abstêmios, ou que se esforçam por consegui-lo. Sua base é a seguinte: o antigo alcoolista encontra-se em melhores condições que qualquer pessoa para ajudar a outro a se tornar abstêmio; o melhor meio de mantê-lo será fazer que ele ajude outros indivíduos a se livrarem do álcool (Szerling, 1953, p. 292).

Vale ressaltar que a referência à psicanálise em questão é à sua vertente estadunidense conhecida como Psicologia do Ego. Esta ampliação da etiologia do alcoolismo na perspectiva da Higiene Mental reflete a própria mudança de perspectiva das concepções higienistas a partir da apropriação dos saberes psi hegemônicos nas décadas de 1950 e 1960 (Costa, 2014). Permaneciam, contudo, o ideal preventivo e a gestão dos corpos a partir da lógica do poder disciplinar. O propósito dos AA de recuperação do alcoolismo através da manutenção metódica da sobriedade consiste também em recuperar a imagem do homem trabalhador, produtivo e chefe de família (Matos, 2000).

 

O alcoólico anônimo: do poder disciplinar à biopolítica

Ao longo do século XX, assistimos à passagem da lógica disciplinar cujo modelo institucional era o da fábrica para uma gestão do poder que tem como referência a empresa. Deleuze (1992) nomeia essa fase de Sociedade de Controle. A expansão do modelo empresarial para outras instituições (escolas, igrejas) e a sua plasticidade terão suas repercussões na produção de subjetividade.

Essa passagem reflete também a mudança de paradigma da sociedade de produção para a de consumo. No modelo fabril, a produção é a grande meta e a preocupação disciplinar se estende da fábrica para outras instituições sociais. Porém, com o avanço do capitalismo financeiro e do crédito, nas últimas décadas do século XX estabeleceu-se o consumo como objetivo social. Agora o modelo é o da empresa, cujo princípio é o da flexibilidade de seu funcionamento e do investimento endógeno (Safatle, 2008).

Em Foucault (2008) a passagem do poder disciplinar para o poder sobre a vida das populações é nomeada como biopolítica. Uma de suas premissas é a introdução da terminologia e da lógica econômica na governamentalidade populacional (taxas de natalidade e mortalidade, a situação de bem-estar, a qualidade de vida, o capital humano). Além dessa abordagem econômica da vida populacional, temos no contexto biopolítico uma economização da subjetividade. Aqui, uma reflexão importante a se fazer é sobre os efeitos subjetivos quando o sujeito se torna o próprio capital foco de investimentos, pois tal situação aponta para uma mudança do paradigma clássico revelado por Marx (2006) de produção da mais-valia que pressupõe o capitalista detentor do capital e o proletário explorado.

Em seus estudos sobre a vertente neoliberal estadunidense, Foucault (2008) situa um momento decisivo do debate entre seus defensores: a questão do trabalho. Diferentemente da teoria econômica clássica calcada na tríade renda, terra e trabalho, os arautos neoliberais a partir da teoria do capital humano da Escola de Chicago passaram a estudar o trabalho como uma prática que deve ser racionalizada e calculada. Uma mudança de paradigma introduzida seria a de medir o trabalhador não pela força de trabalho que ele oferta no mercado, mas pelo critério "capital-competência".

Em suma, nesta perspectiva o sujeito seria seu próprio capital que consiste em "tudo o que pode ser [] uma fonte de renda futura", ou ainda, "o conjunto de todos os fatores físicos e psicológicos que tornam uma pessoa capaz de ganhar este ou aquele salário" (Foucault, 2008, p. 308). O efeito disso é que não só não haveria uma diferença entre o sujeito e o seu capital. Temos uma relação indissociável entre trabalhador e a máquina, entendendo-se a máquina não em sua conotação exterior e alienante, mas em sua acepção positiva, produtiva, no caso em questão, de fluxos de renda.

Será a partir desses elementos que surge uma releitura da noção clássica de Homo Oeconomicus, termo que fazia referência às trocas comerciais entre o sujeito e seus parceiros, para uma concepção de um funcionamento empresarial de si. Nas palavras de Foucault: "O homo oeconomicus é um empresário, e um empresário de si mesmo. [] sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo sua fonte de renda" (Foucault, 2008, p. 311). É possível perceber com esta noção que o projeto neoliberal ultrapassa a economia e se estabelece como uma racionalidade. A própria perspectiva de sociedade passa a ser de um conjunto de pequenas unidades empresariais, sem falar nas instituições-empresas.

Uma problemática que se constitui a partir de então é a preocupação com os investimentos de melhoria e aperfeiçoamento do capital humano inato e adquirido. O investimento na criação dos filhos, por exemplo, ocorre a partir do bom capital humano dos pais. Ao mesmo tempo, as políticas governamentais nas esferas educacionais, sociais e culturais se estruturam tendo como foco a qualidade de vida, o bem-estar, os quantitativos de natalidade e mortalidade. Podemos conjecturar sobre a situação daqueles que não se adaptam a este projeto, todos aqueles deficitários em seu capital humano. Mais adiante, Foucault (2008) situa a Psicologia, especificamente a comportamental, como uma técnica coerente com a racionalidade neoliberal ao utilizar a lógica econômica no estudo do comportamento e na adaptação do sujeito à "realidade".

No contexto biopolítico, a droga passa a ser tratada como objeto de mercado ascendente, sobretudo na década de 1970. Enquanto uma mercadoria de alta demanda, a intervenção governamental funciona basicamente na tentativa de regular um mercado que foi absorvido pela criminalidade. Vale ressaltar que o criminoso também segue a lógica empresarial ao se apresentar como um investidor de alto risco (Foucault, 2008).

Considerando a correlação entre a emergência do alcoolismo no contexto da sociedade disciplinar e a ascensão da toxicomania no modelo de sociedade de controle, nos chama a atenção que a preocupação com o alcoolismo ultrapasse essa passagem hegemônica do poder disciplinar para a biopolítica. Neste contexto biopolítico, o adicto representa justamente o avesso de uma microempresa de si: não trabalha, não produz e não participa dos vínculos de sociabilidade. Se no âmbito fabril o alcoolista representava o avesso do trabalhador sadio e produtivo, no contexto biopolítico e neoliberal a preocupação com o alcoolismo segue como oposição ao sujeito empresarial (Dardot, & Laval, 2016). O contraste passar a ser entre o empreendedor versus o falido. A consequência lógica de um sujeito microempresa de si é o temor pela falência de seu empreendimento pessoal.

Nesse contexto de capitalização das subjetividades, o projeto de AA ultrapassa a esfera terapêutica se se constitui como uma nova moral de vida calcada na abnegação aos bens materiais e ao consumismo representados pela figura alcoolista egocêntrico. Em seu testemunho pessoal, Bill Wilson ressalta que a recuperação do alcoolismo deve vir acompanhada pela anulação de si. O anonimato, nesse sentido, consiste no paulatino processo de esvaziamento egoico através dos 12 passos por considerar que o alcoólico "na ativa" se retrai dos vínculos sociais constituindo-se como centro de si mesmo. O tratamento do alcoolismo consiste então em uma mudança radical de posição subjetiva: do consumista egocêntrico ao abstinente anônimo. Campos (2010), em sua pesquisa antropológica, situa um exercício psicológico entre os membros de AA que consiste em diminuir o "bêbado seco", termo utilizado para o alcoolista que apesar de abstêmio continua a agir enquanto alcoolista ativo, e fazer prevalecer o alcoólico em recuperação.

Podemos perceber um ponto de convergência entre as narrativas terapêuticas e a hegemonia do sujeito empresarial: ambas funcionam a partir da noção de indivíduo enquanto total detentor e responsável por suas ações. Entre os AA, a noção de individualidade se apresenta já na execução dos primeiros passos de seu programa espiritual, pois estes estabelecem um reconhecimento de si como uma pessoa doente, ou ainda, como portador de uma doença incurável. Tal fato leva à conclusão de uma posição de impotência perante o álcool e um consequente reconhecimento da necessidade de um auxílio exterior de âmbito espiritual. Assim, a individualidade se apresenta como uma construção identitária concomitante à produção uma alteridade fraterna representada pelo grupo e pela construção de uma alteridade espiritual com a noção de "Poder Superior".

Em suma, a doutrina de AA individualiza o alcoolismo e o ratifica como doença. Essa personalização é expressa pelo relato em narrativa de que todo alcoólico anônimo deve produzir em seu processo de recuperação. Entre o antes e depois da sobriedade cada membro de AA conta sua história a partir de referências e termos próprios da Irmandade. Daí se constitui seu paradoxo: doença individual, narrativa padronizada.

 

Considerações finais

A Irmandade AA com sua proposição de reinvenção do alcoolismo e de sua terapêutica, a partir de uma apropriação autônoma de concepções filosóficas, religiosas e psicológicas, tem como contexto a produção subjetiva do Homo Oeconomicus. Para além de uma prática individual efetivada ao modo comunitarista da Irmandade, os AA inauguraram a lógica do grupo de ajuda mútua e de seu funcionamento como reparadores das microempresas de si que foram malsucedidas em seus empreendimentos. Dessa forma, os AA e os demais grupos de ajuda mútua guardam uma diferença com os saberes que lhe são vizinhos e que fundamentam a produção da microempresa de si. Em outras palavras, enquanto a literatura de ajuda mútua, motivacional e as tecnologias de treinamento se propõem a aperfeiçoar o capital e os investimentos na microempresa de si em uma via narcísica, os grupos de adictos anônimos surgem como terapêuticas dos insucessos performáticos e dos ideais não alcançados, tomando a via contrária do paulatino esvaziamento do eu até a condição subjetiva de anonimato.

Assim, além de ocupar um lugar na cena social de suposta autonomia, o sujeito é também um consumidor da diversidade de saberes tecnológicos reduzidos à sua funcionalidade e pragmatismo: são verdadeiros porque funcionam. Tais saberes circulam como mercadorias supostamente garantidoras do sucesso financeiro e pessoal. A redução da verdade à sua funcionalidade e do saber à sua prática metodológica resultam em um modo de vida excludente da experiência de singularidade.

A produção discursiva do alcoólico anônimo aponta, portanto, para o estabelecimento em nossa época de uma profusão de saberes cuja funcionalidade tecnológica são as ferramentas usuais tanto na constituição e na reconstrução subjetiva de sujeitos apassivados diante de um saber empresarial dominante.

 

Referências

Abreu, G. (1946). O ébrio [Filme-vídeo]. Abreu, G dir. 126 min.         [ Links ]

Alcoólicos Anônimos - AA. (2005). Vivendo sóbrio. São Paulo, SP: JUNAAB. (Originalmente publicado em 1975).         [ Links ]

Alcoólicos Anônimos - AA. (2009). Alcoólicos Anônimos atinge a maioridade: Uma breve história de A. A. São Paulo: JUNAAB (Originalmente publicado em 1957).         [ Links ]

Alcoólicos Anônimos - AA. (2010). Alcoólicos Anônimos: Como milhares de homens e mulheres se recuperaram do alcoolismo. São Paulo, SP: JUNAAB. (Originalmente publicado em 1939).         [ Links ]

Alcoólicos Anônimos - AA. (2011). Despertar espiritual: Viagens do Espírito nas páginas de AA Grapevine. São Paulo: JUNAAB. (Originalmente publicado em 1975).         [ Links ]

Alcoólicos Anônimos - AA. (2017). Na opinião de Bill: O modo de vida dos AA. São Paulo, SP: JUNAAB. (publicação original: 1967).         [ Links ]

Amado, J. (2008). A morte e a morte de Quincas Berro D´água. São Paulo, SP: Companhia das Letras.         [ Links ]

Bahia, L. A. (2008). O mito da doença espiritual na dependência de álcool: Desmistificando Bill Wilson e AA. Belo Horizonte, MG: O Lutador.         [ Links ]

Burns, K. (2011). Prohibition. Burns, K. dir. 2011. 5h:00min.         [ Links ]

Campos, E. A. (2010). "Nosso remédio é a palavra": Uma etnografia sobre o modelo terapêutico de Alcoólicos Anônimos. Rio de Janeiro, RJ: Editora Fiocruz.         [ Links ]

Carneiro, H. S. (2010). Bebida, abstinência e temperança: Na história antiga e moderna. São Paulo, SP: Editora Senac São Paulo.         [ Links ]

Chalhoub, S. (2012). Trabalho, lar e botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo, SP: Unicamp.         [ Links ]

Costa, J. F. (2007). História da Psiquiatria no Brasil: Um corte epistemológico. Rio de Janeiro, RJ: Garamond.         [ Links ]

Costa, R. M. L. (2008). Alcoolismo, discurso científico e escrita de si no Diário do hospício de Lima Barreto. Revista Antítese, 1(1), 188-208.         [ Links ]

Costa, R. M. L. (2014). Sujeitos inominado e lugares sigilosos: A constituição dos Alcoólicos Anônimos na cidade de Fortaleza. Revista História e Culturas, 2(4), 150-165.         [ Links ]

Costa, R. M. L. (2015). Trabalhadores, bôemios, ébrios e alcoólatras: Tensões sociais no consumo de bebidas alcoólicas em Fortaleza (1915-1935). Fortaleza, CE: Edições UFC.         [ Links ]

Dardot, P., Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo.         [ Links ]

Deleuze, G. (1992). Post-Scriptum sobre as sociedades de controle. In G. Deleuze. Conversações (pp. 219-226). São Paulo, SP: Editora 34.         [ Links ]

Diehl, A., Cordeiro, D. C., Laranjeira, R. (Colab.). (2010). Dependência química: Prevenção, tratamento e políticas públicas. Porto Alegre, RS: Artmed.         [ Links ]

Escohotado, A. (2002). Historia general de las drogas (5a ed.). Madri: Espasa.         [ Links ]

Foucault, M. (1998). História da sexualidade: A vontade de saber (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Graal.         [ Links ]

Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: Curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, SP: Martins Fontes.         [ Links ]

Illouz, E. (2011). O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.         [ Links ]

James, W. (2006). O pragmatismo. São Paulo, SP: Martin Claret.         [ Links ]

Leaving AA. (2017). Recuperado de http://leavingaa.com/        [ Links ]

Marx, K. (2006). Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo, SP: Martin Claret.         [ Links ]

Matos, M. I. S. (2000). Meu lar é o botequim: Alcoolismo e masculinidade. São Paulo, SP: Cia Nacional.         [ Links ]

Mota, L. (2004). A dádiva da sobriedade: A ajuda mútua nos grupos de Alcoólicos Anônimos. São Paulo, SP: Paulus.         [ Links ]

Richardson, M. (2015). The 13th step. Richardson, M. dir, 52 min.         [ Links ]

Safatle, V. (2008). Cinismo e falência da crítica. São Paulo, SP: Boitempo.         [ Links ]

Santos, F. S. D. (2004). A construção do alcoolismo no conhecimento médico: Uma síntese. In D. R. Nascimento, & D. M. Carvalho, Uma história brasileira das doenças (Vol. 1). Brasília, DF: Paralelo 15.         [ Links ]

Szerling, A. (1953). Alcoolismo. In: Yahn, M. (1953) Higiene mental. São Paulo, SP: Edigraf.         [ Links ]

Terra, M. B., Barros, H. M. T., Stein, A. T., Figueira, I., Athayde, L. D., Silveira, D. X. (2011). Internal consistency and factor structure of the adherence scale for alcoholics anonymous. Estudos de Psicologia (Campinas), 28(1), 107-113. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2011000100011        [ Links ]

Yahn. M. (1953). Higiene mental. São Paulo, SP: Edigraf.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Raul Max Lucas da Costa
raulmaxpsi@yahoo.com.br

Leonardo Danziato
leonardodanziato@unifor.br

Submetido em: 27/01/2018
Revisto em: 04/05/2018
Aceito em: 24/05/2018

 

 

1 Este artigo compõe a tese intitulada "Vivendo Sóbrio": a produção discursiva do alcoólico anônimo.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License