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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.71 no.3 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2019

https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i3p.105-120 

ARTIGOS

 

Equidade de gênero intrafamiliar nas narrativas de psicólogas de Centros de Referência de Assistência Social de São Luís do Maranhão*

 

Intrafamilial gender equity in the narratives of psychologists of the Reference Centers of Social Assistance from São Luís do Maranhão

 

Equidad de género intrafamiliar en las narrativas de psicólogas de los Centros de Referencia de Assistencia Social de São Luís do Maranhão

 

 

Vanessa Sarmento Travincas de CastroI; Amana Rocha MattosII

IDocente. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIPsicóloga. Mestre em Psicologia Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo analisa as narrativas de psicólogas dos Centros de Referência de Assistência Social de São Luís do Maranhão com o objetivo de entender se e como o trabalho com as questões de gênero é desenvolvido no Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família. A partir de referencial teórico dos estudos feministas, de gênero e da psicologia social, foram realizadas e analisadas entrevistas semiestruturadas com cinco profissionais. Os resultados indicam que, embora as questões de gênero atravessem a prática no Serviço, o Trabalho Social realizado foca principalmente em demandas socioeconômicas emergenciais. As entrevistadas trouxeram questões práticas que podem ser pensadas a partir dos estudos de gênero e feministas, mas relataram não possuir ferramentas técnicas e teóricas para abordá-las.

Palavras-chave: Psicologia Social; Assistência Social; Gênero; Políticas Públicas; CRAS.


ABSTRACT

This article analyzes the narratives of psychologists from the Social Assistance Referral Centers (CRAS) of São Luís do Maranhão in order to understand if, and how, work with gender issues is developed in the Comprehensive Protection and Care Service Family (PAIF). Based on the theoretical framework of the feminist, gender and social psychology studies, semi-structured interviews were carried out with five professionals. The results indicate that although the gender issues cross the practice in the Service, the Social Work carried out focuses mainly on emergency socioeconomic demands. The interviewees brought practical questions that could be thought from gender and feminist studies , but they reported not having the technical and theoretical tools to approach them.

Keywords: Social Psychology; Social Assistance; Genre; Public Policy; CRAS.


RESUMEN

El artículo analiza las narrativas de psicólogas de los Centros de Referencia de Asistencia Social (CRAS) de São Luís de Maranhão con el objetivo de entender si, y cómo, se desarrolla el trabajo con las cuestiones de género en el Servicio de Protección y Atención Integral Familia (PAIF). A partir de referencial teórico de los estudios feministas, de género y de la psicología social, se realizaron y analizaron entrevistas semiestructuradas con cinco profesionales. Los resultados indican que, aunque las cuestiones de género atraviesan la práctica en el Servicio, el Trabajo Social realizado se centra principalmente en demandas socioeconómicas de emergencia. Las entrevistadas trajeron cuestiones prácticas que pueden ser pensadas a partir de los estudios de género y feministas, pero relataron no poseer herramientas técnicas y teóricas para abordarlas.

Palabras clave: Psicología Social; Asistencia Social; Género; Políticas Públicas; CRAS.


 

 

Introdução

Este artigo analisa as narrativas de psicólogas dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) de São Luís, MA, com o objetivo de compreender se, e como, o trabalho com as questões de gênero está sendo desenvolvido no Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF).

Desde os primórdios da ação estatal no campo da Assistência Social no Brasil, com a criação da Legião Brasileira da Assistência (LBA) em 1942, até os dias atuais, ela é majoritariamente executada por mulheres e para mulheres, tendo como proposta geral a promoção da justiça social, condições que, por si só, exigiriam uma ênfase no trabalho com as questões de gênero.

Nesse contexto, a pesquisa parte da apreciação de duas características do PAIF: a) destina-se ao atendimento de famílias em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, privação e/ou "fragilização de vínculos afetivos - relacionais e de pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, dentre outras)" (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2005, p. 27); b) visa à superação das condições de vulnerabilidade identificadas, baseado no entendimento de que "os conflitos e desigualdades vivenciadas no âmbito familiar devem ser analisados e trabalhados a partir da diferenciada distribuição de poder e responsabilidade entre seus membros" (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2009, p. 12). De tal modo, o Trabalho Social com famílias nesse Serviço prevê o desenvolvimento de atividades voltadas para a promoção da equidade de gênero (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012a; 2012b).

Neste artigo, apresentamos uma breve revisão das referências bibliográficas sobre a temática de gênero no PAIF, bem como na psicologia. Em seguida, a discussão volta-se para a prática profissional, com a análise dos resultados da pesquisa de campo realizada.

 

PAIF e gênero: referenciais teóricos para a prática profissional

Instituídos em 2005, a partir da implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), os CRAS são unidades recentes e que ainda necessitam de aprofundamento técnico-institucional em vários aspectos normativos e práticos. Entre eles, o trabalho com questões de gênero, que vem ganhando repercussão nos estudos feministas no campo da Proteção Social Básica (PSB).

Quando analisamos os materiais informativos produzidos pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) para os profissionais da Assistência Social, tais como os Cadernos de Orientações Técnicas dos CRAS (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2009) e o PAIF (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012a; 2012b), vemos que não apresentam uma definição explícita do conceito de gênero. Contudo, é possível presumir algumas delimitações a partir do uso que é feito do termo ao longo desses materiais:

reconhecer e respeitar as especificidades e particularidades de cada um dos seus componentes, em especial: aquelas em decorrência do ciclo de vida, orientação sexual, questão de gênero, da incidência de algum tipo de deficiência, doença mental, dependência química, entre outras peculiaridades inerentes à diversidade humana (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012a, p. 48, grifos nossos).

Aqui, gênero está sendo usado como característica identitária, ou seja, como a pessoa se percebe e se apresenta em relação às categorias "homem" e "mulher". Na prática, como estamos falando de um Serviço voltado para as famílias, essa percepção estará intimamente relacionada com a construção da identificação de mãe/pai, marido/esposa e as atribuições socialmente relacionadas a elas. Vale dizer que nesses materiais não existem menções a pessoas transgêneras e travestis, o que é bastante questionável, já que estamos falando de uma política que visa justiça social em um país que registra a maior quantidade de assassinatos de transgêneros e travestis no mundo (Balzer, Lagata, & Berredo, 2016). Nesse caso, o foco das cartilhas está nas possíveis opressões sofridas pelas mulheres cisgêneras, isto é, que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento (Jesus, 2012).

Outro trecho do Caderno de Orientações Técnicas dos CRAS a ser destacado é:

A compreensão da família ainda é determinada pelas estruturas geracionais e de gênero presentes: os conflitos e desigualdades vivenciadas no âmbito familiar devem ser analisados e trabalhados a partir da diferenciada distribuição de poder e responsabilidade entre seus membros (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2009, p. 12, grifos nossos).

Vemos aqui que, para o Serviço, gênero implica a atribuição/introjeção de lugares sociais (ou identidades de gênero), estando diretamente ligado ao acesso de cada pessoa a diferentes oportunidades na sociedade. Logo, é estruturante da vida social.

Baseado nas concepções de gênero trazidas acima e objetivando a superação de vulnerabilidades e riscos sociais dela decorrentes, o PAIF determina a realização de atividades socioeducativas e de debates que promovam reflexões sobre os papéis sociais e as ideologias opressoras que os fixam. Assim, para a realização de um atendimento satisfatório quanto às questões de gênero, supõe-se que os profissionais estejam embasados na Carta Constitucional (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988) que, referente aos direitos individuais e da família, afirma a responsabilidade do Estado pela promoção do "bem de todos, sem distinção de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras [...]" (Art. 3°, inc. IV), reforçando que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações" (Art. 5°, inc. I), inclusive no que diz respeito àqueles concernentes à sociedade conjugal (Art. 226, § 5º) e ao planejamento familiar (Art. 226, § 7º), além de ter como princípio a paternidade responsável (Art. 226, § 7º).

Quanto às(aos) psicólogas(os), tal orientação é corroborada pelo Código de Ética Profissional no princípio II: "O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (CFP, 2005, p. 7), sendo vedado ao profissional não somente praticar, mas também ser conveniente com estes atos (Resolução Conselho Federal de Psicologia n. 010, 2005).

No que se refere às aquisições sociais que o Serviço deve afiançar, identificamos que discussões sobre questões de gênero enquadram-se perfeitamente na proposta da segurança social de "desenvolvimento de autonomia", visto que, entre outros resultados, ela deve promover a autoestima, a autocompreensão e o empoderamento de suas(seus) usuárias(os) (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012b). No âmbito do Serviço, "empoderamento" denota, além de uma emancipação individual, uma consciência coletiva da dependência social e da dominação política (equivalente à imposição de ideologias dominantes). Portanto, relaciona-se à "autocompreensão", entendida como a habilidade de compreender os contextos nos quais os sujeitos estão inseridos como influentes na maneira como as pessoas se percebem e agem (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012b). Já a "autoestima" aparece como capacidade de valorização de si mesmo como sujeito de direitos, sendo necessário, para tanto, uma desnaturalização da diferença traduzida como desigualdade, bem como a adoção de uma postura de respeito e valorização da pluralidade (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012b).

Embora todas as atividades do Serviço devam garantir a segurança social de desenvolvimento de autonomia, destacamos as oficinas1, que, além de serem classificadas pelo MDS como as mais importantes ações do PAIF (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012b), também colaboram para o trabalho com questões de gênero. Apontamos, a seguir, uma proposta de atividade de oficina contida nas cartilhas do Serviço a ser realizada pelas(os) técnicas(os) do CRAS nos meses de março:

"Dia Internacional da Mulher - o que comemorar e o que reivindicar?", nas quais podem ser trabalhadas, junto às mulheres e homens do território, questões ligadas aos padrões de beleza, desigualdades de gênero, violência contra a mulher, sobrecarga feminina nos cuidados com a família, regaste de histórias de mulheres importantes na sociedade e naquele território (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012b, p. 36, grifos nossos).

No mesmo material, destaca-se a indicação de outras oficinas relevantes ao recorte gênero. Uma delas propõe a temática "Quais são e como acessar nossos direitos" e sugere uma discussão sobre "direitos das mulheres", com a intenção de estimular uma reflexão acerca do "isolamento social das mulheres, feminização da pobreza [...]" e de identificar "características do território e do município que geram estratégias de superação do isolamento" (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012b, p. 31). Outro tema recomendado é "Os desafios da vida em família", dentro do qual propõem-se debates sobe: direitos da família (promove, entre outros, um debate sobre papéis desempenhados e democratização do ambiente familiar); adolescência e juventude (destaque para questão da paternidade e maternidade responsável); e sexualidade (igualdade de direitos sexuais e reprodutivos) (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012b).

 

Equidade de gênero intrafamiliar no PAIF

A promoção da equidade intrafamiliar de gênero depende da existência conjunta de equipamentos públicos que auxiliem na reprodução social (o que vai desde aqueles referentes à saúde familiar, cuidados com idosos e crianças até a garantia de infraestrutura urbana); políticas de emprego e geração de renda que contemplem necessidades específicas de homens e mulheres; e o que podemos chamar de "consciência de gênero", que seria a obtenção da compreensão das desigualdades sociais estabelecidas a partir desse marcador social (Brito e Zapata, 2005).

No PAIF, a promoção da equidade de gênero intrafamiliar é planejada com foco na conscientização crítica e desmistificação de pressupostos (concepções, valores e posturas) que "estabeleçam a condição de subalternidade das mulheres" em relação aos homens, tendo aí especial relevância a questão da divisão das tarefas domésticas e de cuidados entre os responsáveis pela família. Alcançando uma consciência de gênero, as próprias usuárias do serviço poderiam ser agentes de cobrança, mobilização e fiscalização do Estado em relação à garantia dos demais elementos necessários para a materialização da equidade social (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012b, p. 106).

Contudo, a função da família para a Política Nacional de Assistência Social - PNAS (2005) está pautada sob a ótica do capitalismo neoliberal que, ao orientar-se pela lógica do Estado mínimo - o que inclui a redução de gastos com Políticas Sociais - também privatiza os cuidados, ou seja, as famílias são convocadas a serem as maiores responsáveis pelos cuidados de seus membros. E quando se fala em família, na prática cotidiana estamos falando de mulheres, muitas vezes, em exercício de trabalho não remunerado (Carloto & Mariano, 2010; Saraiva, 2016).

Esse foco nas mulheres é percebido nas temáticas a serem discutidas no PAIF (vistas na seção anterior) e ainda quando analisamos a escolha do responsável por participar das atividades no Serviço. Como, geralmente, as usuárias acessam o PAIF por meio de demandas do Programa Bolsa Família (PBF), é comum que as famílias optem por indicar no cadastro do CRAS o mesmo responsável familiar identificado como titular do cartão do PBF. Embora não seja uma obrigatoriedade, uma vez que, enquanto o PBF tem a recomendação de que seu responsável seja preferencialmente a mulher, o PAIF define como responsável:

Membro adulto da família que responde pelo cuidado cotidiano dos demais membros. Pode ser a mulher que não aufere renda, mas é responsável por atividades diárias em relação ao domicílio e à família ou, ainda a avó que cuida das crianças e/ou adolescentes enquanto a mãe desempenha o papel de provedora. O responsável familiar é a pessoa assim considerada pelos demais membros, em função do reconhecimento de sua responsabilidade de proteção e autoridade no âmbito familiar. As famílias podem ter mais de um responsável e, quando isso ocorrer, é importante que o PAIF trabalhe com ambos no que tange o desempenho desse papel, de modo a não sobrecarregar somente um dos membros (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012b, p. 23, grifos nossos).

Nessa descrição, destaca-se a escolha de exemplos que envolvem mulheres-mães no espaço doméstico (mães e avós), o que pode ser lido como um reforço a esse estereótipo, embora saibamos que é um reflexo da vivência social, já que a Política de Assistência Social é pautada em diagnóstico socioterritorial que, entre outras coisas, indica a dificuldade e precariedade do acesso das mulheres ao mercado de trabalho e a presença significativa de famílias monoparentais chefiadas por mulheres. Logo, a possibilidade de se encontrar mulheres exercendo esse papel é grande.

Em todo caso, a constatação de tal realidade não justificaria um Serviço baseado na expectativa da permanência dessas mulheres no espaço doméstico, o que parece sugerido quando, na citação acima, notamos as ideias excludentes de que: ou a pessoa é a responsável ou é aquela que aufere renda. Isso também é reforçado quando avaliamos os horários de funcionamento do Serviço, uma vez que as atividades devem ser realizadas em horário comercial, e somente ações complementares podem, ocasionalmente, acontecer no período noturno, em feriados e finais de semana (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012a). Logo, a usuária terá dificuldade para participar do Serviço caso possua um emprego diurno, que coincidiria com o horário de funcionamento das atividades do PAIF.

Ao longo dos séculos, a divisão social do trabalho baseada no sexo/gênero foi se consolidando, no imaginário coletivo, influenciada por diferentes aspectos históricos, tais como: as famílias burguesas terem incorporado ideais de responsabilidade e cuidados com os filhos; se organizarem de maneira nuclear; a "descoberta" do instinto materno; a valorização do aleitamento; e o estabelecimento de uma rígida separação entre vida pública (marcada pela frieza e racionalidade) e vida particular (delineada pelo cuidado e emoção) - cabendo às mulheres o segundo espaço, por suas características "naturalmente maternais" (Reis, 2004).

Quanto a isso, para Badinter (2011), a histórica desvantagem das mulheres na vida conjugal (heterossexual) se dá, especialmente, em razão da construção da maternidade. No contexto atual, essa produção tem sido bastante influenciada por correntes naturalistas originadas pelos anos 1970/80, que propõem uma "volta" à "verdadeira natureza" do "corpo feminino". Tacitamente, seus discursos promovem, ajustados pela culpa, uma "profissionalização da maternagem", exigindo extremos sacrifícios às mulheres e dedicação integral aos seus filhos (começando da gravidez até às requisições do aleitamento) - o que pode ser um suplício ainda maior quando pensamos em mães pobres que criam seus filhos sozinhas (Badinter, 2011, p. 122).

As consequências dessa injusta divisão sexual do trabalho doméstico podem ser percebidas em muitas pesquisas estatísticas, como algumas citadas por Badinter (2011) - ocorridas nos Estados Unidos, França e outros países -, que apontam o alcance de melhores graus de qualificação profissional e de ganhos econômicos por mulheres que optaram por ser mães mais tardiamente ou que tiveram o menor número de filhos.

Nesse sentido, a ocupação com tarefas intrafamiliares não compartilhadas dificulta de forma significativa o acesso de mulheres pobres ao mercado de trabalho, visto que, quando inseridas, acabam por demandar atividades com horários mais flexíveis/em regime parcial ou ocupações menos valoradas. A falta ou escassez de recursos econômicos viabiliza a dependência econômica (Gama, 2014).

Como analisado acima, os materiais do PAIF não situam gênero como algo natural, e pontuam a necessidade de questionar papéis sociais tradicionais de homens e mulheres. Entretanto, a lógica implícita nas normativas técnicas do PAIF (e no próprio sistema capitalista neoliberal) pressupõe, para seu funcionamento satisfatório, que as mulheres empobrecidas e racializadas ocupem-se dos cuidados familiares, estando melhor ajustadas ao Serviço quando não exercem outras atividades. Assim, percebe-se que a maioria das mulheres acessa o PAIF por serem mães, característica denominada por Carloto e Mariano (2008) como cidadania fragilizada, ou seja, elas se reconhecem como cidadãs por uma associação com as funções materna e de cuidado doméstico, visando atender "mais as necessidades do arranjo familiar do que a das mulheres enquanto sujeitos" (Carloto & Mariano, 2008, p. 163). Logo, o trabalho com a equidade de gênero intrafamiliar não tem uma base consistente no Serviço, ainda mais se considerarmos sua proposta de promover empoderamento e autonomia das mulheres.

 

Gênero e processos de subjetivação

De acordo com as normativas técnicas para o PAIF, a(o) psicóloga(o) deverá contribuir, no Serviço, com o desvelamento dos processos subjetivos que envolvem as desigualdades sociais e as internalizam como características pessoais (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social 2009; Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012b). Assim, faz-se necessário entender como esses processos se dão. Nesta seção, atendendo ao escopo deste artigo, nos referiremos especificamente aos processos de subjetivação de gênero.

Os processos de subjetivação de gênero operam por meio dos sistemas de significados, ou seja, "aos modos pelos quais as sociedades representam o gênero, servem-se dele para articular as regras de relações sociais ou para construir o significado da experiência. Sem significado, não há experiência; sem processo de significação não há significado" (Scott, 1995, p. 82). Criam-se ideais de masculinidades e feminilidades aparentemente coesos e naturais que são internalizados pelos sujeitos, direcionando-os para como percebem a si mesmos (identidade generificada) e como se relacionam nos meios sociais. Contudo, isso não ocorre de maneira passiva. Tais constructos são (re)interpretados por indivíduo e podem adquirir diferentes contornos. Essa trama torna-se bem mais complexa quando consideramos que o gênero só existe em conexão com outros marcadores sociais (classe, raça, etnicidade etc.) que também irão compor esses sistemas de significados indissociavelmente (Nogueira, 2017).

Essa construção implica quatro elementos inter-relacionados: a) "os símbolos culturalmente disponíveis" (representações simbólicas); b) os "conceitos normativos que expressam interpretações dos significados dos símbolos, que tentam limitar e conter suas possibilidades metafóricas"; c) as instituições/organização social; e d) a identidade subjetiva (Scott, 1995, p. 86). Ressaltando que compreendemos todas essas noções como propriedades fluidas e dinâmicas, com especificidades relacionadas ao contexto local, histórias e marcadores sociais da diferença.

Nas sociedades ocidentais, os sujeitos constroem sua identidade de gênero na dinâmica das relações sociais por meio de processos relacionais entre o eu/outro, masculino/feminino, pênis/vagina etc., nos quais cada lado, supostamente coerente e estável, só faz sentido pela existência do seu "contrário", instituindo uma ordem compulsória e indivisível. Portanto, são mecanismos que dependem do conhecimento adquirido pela linguagem (verbal e não verbal - transmitida/absorvida em cada nível de classificação aludida acima) e exigem o discernimento sobre as supostas características não somente ao gênero com o qual o sujeito se identifica, mas também ao seu "oposto". De tal modo, concebendo os marcadores sociais da diferença como construções sócio-históricas, articuladas e não naturais, na internalização das condutas e normas vigentes podem ocorrer objeções e conflitos que vão de encontro com os limites concretos conferidos pela organização social (Carloto, 2001). Isso significa que a identidade gendrada não somente é uma consequência das relações sociais, mas também uma condição para que essas relações se estabeleçam. Considerando-se que essa produção se dá em intersecção com outros marcadores sociais (Nogueira, 2017), é importante que se reflita não apenas sobre o sexismo, mas também sobre as desigualdades sociais e raciais que atravessam os processos de subjetivação. Nesse sentido, a identidade está em constante produção, ou seja, ela é atualizada a cada situação em que o sujeito age dentro das fronteiras de sua percepção quanto ao seu gênero/classe/raça, ao mesmo tempo em que ele será tratado em conformidade com essa representação, criando a ilusão de um estado de ser constante (Carloto, 2001; Scott, 1995).

Vimos que dentre os elementos que contribuem para os processos de subjetivação de gênero, temos as representações simbólicas. Elas são construídas, dentre outras formas, pelas produções científicas, que podem relativizar e/ou fixar concepções. Quanto a isso, notemos como a psicologia vem, historicamente, tratando a temática gênero.

Entre o final do século XIX e início do XX, as produções acadêmicas ocidentais de psicologia ou ignoravam análises a respeito das mulheres ou as inferiorizavam frente ao homem, descrevendo-as como dominadas por emoções, com baixa inteligência, com tendência natural de serem mães, desejosas de homens para protegê-las, entre outros estigmas. O foco de todo esse período estava no estabelecimento das diferenças individuais entre homens e mulheres, inicialmente, apoiando-se em bases biológicas (com destaque para cognição e fisiologia), e a partir dos anos 1930, nas características de personalidade (Saavedra & Nogueira, 2006).

Uma mudança nesse quadro inicia-se, por volta dos anos 1960, com o desenvolvimento do movimento feminista nos campos político e social, o que introduziu de forma mais efetiva as mulheres no meio científico, culminando, nos 1970, com a contestação da própria ciência em relação às suas generalizações, falsificações e lacunas. Embora já se estabeleça discussões sobre a dissociação entre sexo e gênero, bem como sobre implicações da socialização, sobressaem-se pressupostos tradicionais, sem uma concepção crítica de gênero, assumindo-o "em termos de qualidades internas e persistentes" (Saavedra & Nogueira, 2006, p. 119). É somente nos anos 1990 que encontramos teorias psicológicas que consideram gênero enquanto relação social. Nesse sentido, seus estudos voltam-se ao significado e construção da diferença embasados em uma análise social e situacional. "Assume-se, assim, que o gênero é uma invenção das sociedades humanas, uma 'peça de imaginação' com facetas multifacetadas, que permite construir adultos, homens e mulheres, desde a infância" (Saavedra & Nogueira, 2006, p. 120).

Ainda na década de 1990, distingue-se a emergência das "psicologias feministas", que estariam ligadas aos escopos feministas de transformação da sociedade. Entre outras reivindicações, nos interessa demarcar que os feminismos questionam a distribuição de papéis de gênero, desnaturalizando concepções, comportamentos e a (re)produção da lógica de subordinação de mulheres, o que é particularmente significativo para o enfoque dado no presente artigo. Também é importante ressaltar que psicologias nesse viés não são correntes dominantes. Pelo contrário, a maioria das produções e práticas atuais ainda trazem referenciais tradicionais que coadunam com "as políticas de Estado que fazem a gestão dos corpos e a manutenção de normas estáveis e ideais regulatórios de sexo/gênero" (Mattos & Cidade, 2016, p. 135). Nogueira (2017) observa, inclusive, que a psicologia tem se mostrado, dentro das ciências sociais, aquela que mais resiste à utilização das teorizações feministas, sendo a Psicologia Social tradicional uma das áreas apontadas de maior relutância.

Outro elemento constituinte dos processos de subjetivação de gênero são as instituições, que vão materializar as representações simbólicas referentes a esse marcador. O sistema político é, sem dúvida, uma delas. Portanto, o papel das Políticas Públicas na produção de subjetividades - e, consequentemente, de gênero, sexualidade, raça e classe - não deve ser minimizado. No Brasil, elas têm sido usadas pelo Estado como instrumentos de controle da população, normalizando condutas e prevenindo consequências políticas negativas resultantes da pobreza. Diferentemente das leis, que se utilizam da repressão, essa forma de domínio estatal aparece disfarçada de benesse, valendo-se do poder de convencimento dos saberes que facilmente se alastram nos discursos populares (Costa, 1979).

Nesse contexto, quanto às questões de gênero, podemos ilustrar a eficácia dessa esfera de subjetivação na análise de Costa (1979) sobre a forma com que, no século XIX, a fim de garantir a natalidade e manutenção das crianças/jovens a um baixo/nulo custo para administração pública brasileira, o Estado passa a (re)produzir um ideal de "família amorosa" por meio da medicina familiar, incluindo como pilares o machismo e o aprisionamento das mulheres na esfera dos cuidados domésticos e familiares, fabricando representações dicotômicas como a almejada "mulher de família" e a desvalorizada "prostituta/mundana" (Costa, 1979).

Nunes (2018) atualiza esse debate discutindo como, nas favelas do Rio de Janeiro, os processos de subjetivação de mulheres negras são atravessados pelas políticas de Estado: a criminalização dos territórios, a precarização dos serviços de saúde e educação e a condescendência das políticas públicas voltadas para as populações moradoras de favelas criam contextos específicos para o tornar-se mulher. A autora destaca a agência e a liderança das mulheres de favela a partir das falas de suas interlocutoras, complexificando o entendimento dos lugares de subalternidade a que essas mulheres são frequentemente remetidas pelo Estado e pelo discurso científico.

 

Trabalho com gênero e equidade intrafamiliar nos CRAS

Até aqui, apresentamos como as questões de gênero estruturam a dinâmica do Serviço e das famílias usuárias do PAIF. Partindo disso, analisamos os resultados da pesquisa realizada junto às psicólogas do Serviço em São Luís. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com cinco psicólogas que atuam no PAIF local.

De acordo com Silveira e Córdova (2009, p. 31), a pesquisa qualitativa "trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis". Ou seja, nosso foco foi a compreensão dos discursos produzidos pelas profissionais de psicologia nos CRAS em relação ao tema analisado, e suas articulações com a Política Pública.

As entrevistas foram realizadas em um encontro cada, nos próprios CRAS onde cada psicóloga trabalha, tendo duração média de 50 minutos e com gravação de áudio, mediante a aceitação em participação na pesquisa por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A opção pelo encontro dentro dos CRAS foi feita para possibilitar algumas observações sobre a estrutura e condições de funcionamento dos Centros. O material foi analisado não com intuito de destacar individualidades das pessoas participantes, mas entendendo suas falas como representantes de um contexto geral advindo dos discursos produzidos na psicologia, nos CRAS e na sociedade, dentro da realidade ludovicense2 atual.

Foram entrevistadas as seguintes psicólogas (nomes fictícios): Amanda (39 anos, branca, atua há 13 anos como psicóloga, sendo oito no CRAS); Beatriz (63 anos, branca, atua há 11 como psicóloga, sendo 45 dias no CRAS); Camila (35 anos, negra, atua há nove anos como psicóloga, sendo três anos no CRAS); Daniela (36 anos, branca, atua há oito anos como psicóloga, sendo o mesmo período no CRAS) e Eliza (36 anos, branca, atua há 13 anos como psicóloga, sendo sete meses no CRAS). Todas as categorias mencionadas foram auto atribuídas no início da entrevista.

Em relação ao ambiente de pesquisa, cabe dizer que São Luís é a capital do estado do Maranhão. Localizada no Nordeste do Brasil, é a principal cidade da Região Metropolitana Grande São Luís e a 16ª cidade mais populosa do país. Na PNAS é habilitado como município em "gestão plena" e de porte "metrópole". Dispõe de 20 CRAS geridos pela Secretaria Municipal da Criança e Assistência Social (SEMCAS). Cinco são unidades urbanas centrais, cinco urbanas periféricas, cinco urbanas periféricas rurais e cinco urbanas periféricas semirrurais. Cinco foram inaugurados em 2004, seis em 2006 e nove em 2010. De acordo com o Censo do Sistema Único de Assistência Social - CENSO-SUAS (2014), o "Índice de Desenvolvimento" dos CRAS de São Luís encontram-se em torno de 2 e 4,33 pontos. Sendo a maioria deles (75%) com pontuação entre 2 e 3, recebendo as piores avaliações no quesito "serviços e benefícios".

 

"A gente acaba atendendo só aquilo que é mais urgente": atravessamentos de gênero no trabalho da psicologia no PAIF

As normativas técnicas indicam a necessidade de realização de entrevista com as(os) usuárias(os) no início de suas inserções no PAIF, a fim de identificar seu contexto familiar, compreendendo suas necessidades e convidando os membros familiares a participar das atividades disponíveis nos CRAS que atendam seus perfis. Considerando que as psicólogas participantes afirmam adotar essa entrevista inicial em suas rotinas nos CRAS, as entrevistadas foram indagadas, inicialmente, se haviam realizado palestras, oficinas, orientações ou mediações referentes às questões de gênero. O tema que imediatamente elas relacionaram dentro da temática foi "violência doméstica". Contudo, situações desse tipo que chegam ao CRAS são encaminhadas a instituições especializadas ou podem ser discutidas de maneira preventiva em campanhas específicas. Sendo assim, quatro das entrevistadas afirmaram nunca ter desenvolvido questões de gênero no Serviço, justificando que tais questões não apareciam como queixa das usuárias.

Por outro lado, conforme as entrevistas foram acontecendo, a fala das psicólogas trouxe uma série de demandas referentes a gênero, o que nos indica que a nomenclatura utilizada na entrevista ("questões de gênero") se mostrou insuficiente para nomear o trabalho realizado, exigindo uma escuta e análise ampliada das respostas das profissionais. Soma-se a isso o fato de que nenhuma psicóloga afirmou ter feito estudos ou participado de discussões que envolvessem gênero em suas graduações. Depois de formadas, também não tiveram contato com o tema de maneira sistemática, somente por meio de leituras na internet ou algum conteúdo televisivo.

A incompreensão sobre o que abarcariam as "questões de gênero" pode fazer com que não sejam percebidos seus desdobramentos na vida cotidiana, podendo ainda decorrer no extrapolamento da temática e não estabelecimento de uma separação desse campo com o da sexualidade. Assim, gênero adquire nas falas das entrevistadas uma perspectiva binária, relacionando compulsoriamente genital-sexo-gênero-orientação sexual, em que qualquer elemento percebido como concernente ao gênero "oposto" altera todo esse script. Como aparece na fala da única psicóloga que respondeu já ter feito intervenções de gênero nos seus atendimentos:

Era um caso de uma mãe evangélica que não estava em concordância com a opção [orientação sexual] da filha, não lembro se era filha ou filho... já tem algum tempo, eu sei que tava tendo muito conflito, mas eles não compareceram [à atividade] (Camila).

Quando perguntamos às profissionais se elas notavam diferenças na divisão das tarefas domésticas e na criação de meninos e meninas nas famílias atendidas, afirmando serem esses exemplos de situações que envolviam gênero, surgiram relatos como:

Geralmente são mães solteiras, são sozinhas, então fica difícil eu te dizer isso. [...] Geralmente as meninas são mais responsáveis por essas questões de casa do que os meninos. [...] Na verdade, muita gente tá vindo aqui em busca do Bolsa Família. [...] Até pelo volume grande de atividades, não dá para detalhar muito (Eliza).

Na verdade, a gente até observa questões de gênero muito frequentemente, né? Mas um trabalho mais assertivo sobre isso não fazemos. [...] Na prática, no dia a dia, a gente acaba fazendo só um pouco do que as orientações falam, a questão do empoderamento, de transformar a realidade do usuário, de ser protagonista social. Então o foco do nosso trabalho seria esse, mas como o foco das demandas das pessoas são mais urgentes, elas correm todas para cá porque aqui é a porta da Assistência... aí eu deixo de trabalhar outra coisa, a gente acaba atendendo só aquilo que é mais urgente. É muito atendimento. A demanda geral é Bolsa Família (Daniela, grifos nossos).

Nesses trechos, chama atenção a sobrecarga de trabalho das psicólogas e ainda a centralidade do PBF nos CRAS, que parece não ser percebida de maneira crítica. A busca pelo Programa quase exclusiva por beneficiárias "mulheres do lar" é um exemplo palpável das iniquidades nas relações de gênero que, articuladas com as de classe e raça, promovem a divisão sexual do trabalho, penalizando especialmente as mulheres pobres e negras.

O fragmento a seguir corrobora nossa avaliação de que o trabalho com questões de gênero é visto como algo paralelo ao trabalho realizado no Serviço:

Daniela: [...] Talvez essa fosse uma sugestão para gente trabalhar num grupo com mulheres, num grupo de famílias que tivessem mulheres e a gente discutir isso... quais são realmente os papéis... que hoje tem realmente invertido, a mulher tem agregado o mercado, mas em compensação os outros papéis ela tá acumulando e não tem descanso.

Pesquisadora: E os grupos já não são de mulheres?

Daniela: Mas são grupos específicos que não comportam essa temática. É grupo do Bolsa Família, grupo de gestantes, do aluguel social, o grupo de cuidadoras de pessoas com deficiência, das mães das crianças do SCFV [Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, também integrante da Proteção Social Básica].

Quando perguntamos sobre a participação dos homens, as psicólogas relatam que, nas raras vezes em que eles buscam o PAIF, trazem demandas relacionadas ao mercado de trabalho, enquanto as mulheres apresentam demandas envolvendo situações familiares (incluindo cadastro e resolução de dúvidas sobre o PBF). A naturalização desses papéis de gênero acaba levando a procedimentos que podem reforçar o distanciamento dos homens, conforme o relato abaixo:

[...] [a técnica] vai fazer um cadastro e aí vem um homem sozinho para fazer do filho, a gente acha estranho e a gente pede para averiguar, pede ajuda do Conselho Tutelar. Isso foi uma orientação superior que veio para gente, não foi um critério que a gente aqui falou "vamos fazer assim" (Eliza).

Também observamos que a iniciativa técnica de incluir esses homens no PAIF dá-se de forma restrita, limitando-se a convocá-los quando a queixa familiar está diretamente relacionada ao relacionamento pai-filho, não existindo no planejamento técnico a formação de grupos ou oficinas para esse público.

Para além da ausência de uma percepção das expressões do sexismo enquanto determinante para a presença maciça de mulheres usuárias no Serviço (o que justificaria discutir questões de gênero em qualquer grupo CRAS), observa-se ainda que as próprias psicólogas elencam outros motivos que são considerados desfavoráveis para o desenvolvimento da temática gênero no PAIF:

Às vezes, essa questão já está melhor esclarecida quando a mulher já tem um pouco mais de escolaridade, segundo grau completo... [...] Quem tem maior escolaridade talvez esteja mais receptiva e talvez esteja menos vulnerável do ponto de vista social, aí você pode pensar em aspectos de maior liberdade de comportamento. Eu acho que para essas mulheres que são tão oprimidas fica tão difícil discutir isso... Mas... é possível e necessário (Amanda, grifos nossos).

[...] as pessoas mais simples são mais apegadas a conceitos mais antigos, é natural pela falta de informação, mas eu não entro muito nessa área para não chocar, porque tem pessoas que podem entender, outras não. [...] É um tema [gênero] muito delicado ainda para pessoas que não têm muito esclarecimento sobre o assunto, mas é um tema pertinente (Beatriz, grifos nossos).

Percebemos nessas falas que existe receio em relação a trabalhar questões de gênero com mulheres pobres (por serem "muito oprimidas") e sem escolaridade, ou com escolaridade básica (por ser "chocante" ou de difícil entendimento). Vale pontuar, entretanto, que em nossa revisão bibliográfica não foram encontrados estudos e pesquisas que indiquem uma maior dificuldade de trabalhar o tema com esse público específico. Existem, ao contrário, inúmeras experiências bem-sucedidas que podem referenciar as(os) profissionais dos CRAS, como as do Instituto Promundo e Instituto Papai (Arruda et al., 2016), que desenvolveram ações com famílias beneficiárias do Bolsa Família, e a experiência do Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste, apresentada no documentário Mulheres Rurais em Movimento3, de Héloïse Prévost e do Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste - MMTR-NE (2016).

Em consonância com essa perspectiva, uma das psicólogas entrevistadas afirmou ter percebido transformações importantes quando fez intervenções nos casos em que pode realizar um acompanhamento adequado. Perguntada se acreditava que o trabalho social com famílias poderia contribuir com a diminuição das iniquidades de gênero nas famílias atendidas, afirmou:

Sim, percebo muito isso no grupo de idosos porque é um grupo que eu faço um acompanhamento mais longo. Por exemplo, uma senhora falou que o marido não deixava ela ir para o grupo, era um caso de violência mesmo... Ela era muito presa em casa e a gente foi acompanhando, eu coloquei a questão da violência, expliquei sobre os direitos dela e ela foi se empoderando. Hoje em dia o marido entende e não acontece mais, ela consegue ir ao grupo sem problemas, além de outras conquistas (Camila).

Quando perguntamos sobre como as entrevistadas entendem a equidade de gênero intrafamiliar, as respostas focaram em questões sobre a divisão de responsabilidades familiares e a garantia de melhores oportunidades no mercado de trabalho, possivelmente frutos da própria reflexão promovida pela entrevista:

Seria uma divisão melhor das atribuições domésticas, por exemplo. Isso já traria uma igualdade maior, as mulheres são sobrecarregadas não somente nas atividades, mas também nas responsabilidades mesmo. As orientações que se dá são sempre para a mãe fazer, para a mãe executar e elas ficam muito sobrecarregadas. Mas elas são sozinhas, sozinhas mesmo! Não têm companheiro e nem ninguém para ajudar. Às vezes quem ajuda é a mãe que é outra mulher (Amanda).

Eu acho que é mais no nível profissional, educativo. Os direitos básicos mesmo, de nível profissional, em relação aos cuidados com os filhos, [seria bom] que essa divisão fosse igual (Beatriz).

Nesse sentido, as percepções das entrevistadas sobre como desenvolver o trabalho de promoção de equidade de gênero intrafamiliar no PAIF giraram em torno dos seguintes conteúdos:

O PAIF pode sim contribuir com a promoção dessa equidade, mas é um trabalho de formiguinha. A gente estaria plantando sementes e precisaria que outros espaços também discutissem isso, que a rede se ampliasse. [...]que o técnico identificasse alguma demanda relacionada a gênero e pudesse focar mais, porque o que acontece, normalmente é que a gente foca em outras coisas, talvez somente naquilo que o indivíduo traz inicialmente e aí por trás disso tem o gênero, mas a gente não trabalha, a gente trabalha a queixa em si. Talvez a gente tivesse que ter uma atenção maior nesse olhar... não se prender só naquilo que ela traz e ir um pouco além (Daniela).

[...] precisa investir mais na área de cursos [encaminhando as usuárias aos programas de inclusão produtiva], que é muito importante para essas mulheres poderem ter mais chances de emprego (Beatriz).

Como as psicólogas colocam, o trabalho de promoção de equidade intrafamiliar de gênero pode e deve ser realizado nas diversas atividades executadas no PAIF, sejam individuais, sejam em grupo, contando com a parceria de toda a rede socioassistencial e setorial (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012b). O ideal é que fosse criada uma oficina específica voltada para o desenvolvimento da "consciência de gênero", convidando homens e mulheres a participar e ainda envolvendo os Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), de modo que o trabalho não fosse algo pontual e envolvesse todos os membros familiares.

As iniquidades de gênero nesses espaços devem ser avaliadas de forma crítica, desnaturalizando comportamentos e ideologias opressoras que perpassam os mais diversos contextos sociais, promovendo a autoestima, a autocompreensão e o empoderamento das usuárias, de acordo com o conceito que cada um desses termos adquire no Serviço. O intuito é que as(os) usuárias(os) possam lançar mão dos conhecimentos adquiridos não somente em suas próprias vidas, mas também sendo multiplicadoras(es) dessas reflexões nos seus outros grupos sociais e comunidade em geral (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012b).

 

Considerações finais

Nesta pesquisa, discutimos como questões de gênero atravessam o trabalho de psicólogas no PAIF de São Luís. Suas falas apontaram importantes questões da prática, tais como a dificuldade de desenvolverem atividades com as beneficiárias em função da constante urgência de demandas materiais e práticas, a precarização dos serviços, bem como a ausência de formação para trabalhar questões de gênero e sexualidade nos CRAS.

Quanto ao último ponto, defendemos a imprescindibilidade da realização de capacitações às equipes técnicas do SUAS referentes aos estudos de gênero em articulação com os demais marcadores sociais da diferença (tais como raça, classe, religião, orientação sexual etc.), inclusive, constituindo-se como curso obrigatório na proposta do CapacitaSUAS. Já que "os trabalhadores do serviço público são um componente crítico de reformas a serem implementadas no setor público, podendo atuar como indutores de mudanças ou importantes elementos de resistência à mesma" (March, 2011, p. 179 apud Mioto & Dal Prá, 2015, p. 172).

Também consideramos que promover a equidade de gênero intrafamiliar de forma efetiva no Serviço implicaria na transformação da configuração atual da Assistência Social brasileira, deslocando sua centralidade na família cuidadora (foco que camufla a prática de corporificação da mulher enquanto grupo familiar), direcionando-a para o trabalho com desenvolvimento de indivíduos (Carloto e Mariano, 2010).

Por fim, ressalta-se que, enquanto pesquisa qualitativa, as limitações dos resultados deste estudo referem-se ao universo investigado, que se restringiu ao território e psicólogas participantes. O diálogo com a literatura revisada buscou ampliar a perspectiva do mesmo, mas os resultados aqui apresentados não podem ser generalizados - apenas servir como referencial para outros estudos.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Amana Rocha Mattos
amanamattos@gmail.com
Vanessa Sarmento Travincas de Castro
vanessa_travincas@yahoo.com.br

Submetido em: 18/09/2018
Revisto em: 30/01/2019
Aceito em: 23/03/2019

 

 

* O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Código de Financiamento 001.
1 Consistem em encontros previamente preparados com a finalidade de "suscitar reflexão sobre um tema de interesse das famílias, sobre vulnerabilidades e riscos, ou potencialidades identificados", propiciando "a problematização e reflexão crítica das situações vividas em seu território, além de questões muitas vezes cristalizadas, naturalizadas e individualizadas", "negando-se a condição de passividade". Possuem objetivos de curto prazo e podem ser feitas em um ou mais encontros (Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, 2012b, p. 24).
2 Expressão que denota origem ou pertencimento a São Luís - MA.
3 Disponível no YouTube no link: https://www.youtube.com/watch?v=PQkIWTIyJc4

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