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Boletim de Psicologia

Print version ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.59 no.130 São Paulo June 2009

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Perfil cognitivo de crianças portadoras de cegueira: Um estudo com a escala verbal do WISC-III

 

Cognitive profile of blind children: A study with the verbal scale of WISC-III

 

 

Carmen Flores-Mendoza *; Tathiana Martins de Carvalho; Larissa Assunção Rodrigues

Universidade Federal de Minas Gerais

 

 


RESUMO

Na literatura especializada, as informações sobre o funcionamento cognitivo de crianças portadoras de cegueira são escassas, razão pela qual se realizou o presente estudo utilizando-se a Escala Verbal do WISCIII. Participaram 120 crianças cegas, com idade entre 6 e 16 anos de idade, de duas instituições especializadas de Belo Horizonte (MG). Desse total, selecionaram-se 56 crianças com QI verbal acima de 85 cujo desempenho foi comparado ao de uma amostra de 56 crianças videntes. Os resultados intragrupo mostraram haver mudanças desenvolvimentais com a idade, inexistência de diferenças cognitivas relacionadas ao gênero e à capacidade visual (cegueira e visão subnormal). Os resultados intergrupos (crianças cegas e videntes) mostraram a existência de diferenças estatisticamente significativas no fator Resistência à Distratibilidade a favor das crianças cegas. Contudo, verificou-se que as diferenças se concentravam especificamente no subteste Dígitos. Mais ainda, as diferenças em Dígitos localizavam-se somente nos grupos de alto QI Verbal, o que reforça a hipótese de diferenciação cognitiva.

Palavras-Chave: Crianças cegas, Inteligência, QI Verbal, WISC-III.


ABSTRACT

The information about the cognitive function of blind children is insufficient in the specialized literature. The presentstudy was designed for this reason, using the Verbal Scale of WISC-III. In this studyparticipated 120 blind children, aged 6 to 16 years old, from two institutions of Belo Horizonte (MG). From this total were selected 56 children with IQ over 85 and their performances were compared with a sample of 56 sighted children. The intra group results (blind children) showed the occurrence of developmental changes with the age, inexistence of cognitive differences related to gender or visual capacity (blindness and subnormal vision). The intergroups results (blind and sighted children) indicated a significantstatistic diference in the Freedom from Distractibility factor favoring blind children. However, it was found that the differences were limited to the Digit subtest. Also, the differences in Digits were restricted to high verbal IQ groups, which reinforce the cognitive differentiation hypothesis.

Keywords: Blind children, Intelligence, IQ verbal, WISC-III.


 

 

INTRODUÇÃO

A população portadora de cegueira no mundo é considerável. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 1997) se estima em 38 milhões a quantidade de pessoas acometidas de cegueira e/ ou visão subnormal, sendo que a imensa maioria dessa parcela é proveniente de países em desenvolvimento, chegando, inclusive, a taxas entre 10 a 40 vezes mais altas que as dos países do primeiro mundo. As causas, provavelmente para muitos dos casos de cegueira, estão relacionadas a processos infecciosos, má nutrição e falta de atenção oftalmológica.

No Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2007), o censo de 2000 estimou em 14,5% da população total como portadora de algum tipo de deficiência, sendo que desse total quase 150.000 pessoas eram portadoras de deficiência visual. Contudo, apenas 8.585 alunos cegos estiveram matriculados nas escolas de ensino regular ou especializado. Em Belo Horizonte, segundo o MEC (2001), 61,5% das crianças cegas estariam matriculadas no ensino especial. Mas se trata apenas de uma estimativa baseada em dados preliminares. O custo de reabilitação e ensino desta parcela da população é desconhecido (Gil e Andrade, 1989).

Em termos gerais se reconhece que um melhor direcionamento dos programas de ensino e estimulação implica obter informações sobre o funcionamento intelectual das populações com necessidades especiais. Contudo existe pouca produção internacional e quase total ausência em nível nacional de estudos sobre o desenvolvimento cognitivo de pessoas cegas. Os poucos estudos localizados têm mostrado sérios atrasos no desenvolvimento cognitivo de crianças cegas em idade pré-escolar se comparadas a crianças com visão normal, o que não ocorreria em idades posteriores (Reynell, 1978; Van der Kolk, 1977). Segundo Brambring e Troster (1994) tais resultados indicariam que as crianças cegas após o domínio da linguagem, e como conseqüência da educação especial, alcançariam escores semelhantes às das crianças com visão normal. Portanto uma das conseqüências deste fenômeno sócio-cognitivo seria a impossibilidade de avaliar crianças cegas em idade pré-escolar, já que a manifestação do potencial real da capacidade intelectual da criança ainda não estaria ocorrendo. O comportamento espontâneo de crianças pequenas não permitiria ainda diferenciar o nível de desenvolvimento alcançado assim como também a compreensão da linguagem ainda seria insuficiente para permitir uma comunicação verbal exigida pela maioria das tarefas cognitivas. Qualquer tentativa de construir um sistema de avaliação de crianças pequenas (entre dois e cinco anos de idade) deverá, pois, propor tarefas que, além de depender pouco da visão, dependam pouco também das habilidades de linguagem. Portanto, a idade cronológica que parece mais conveniente para início de uma avaliação intelectual com provas verbais é a partir dos cinco anos de idade.

A observação da escassa literatura internacional sobre o desenvolvimento cognitivo de crianças cegas permite inferir que a avaliação de crianças maiores de cinco anos de idade geralmente é realizada com a escala verbal do teste WISC (Wechsler Intelligence Scale for Children). Contudo as aplicações do WISC têm fornecido evidências de que crianças com deficiência visual apresentam baixos escores se comparadas a crianças com visão normal, em subtestes como Semelhanças e Compreensão (Wyver, Markam e Hlavacek, 1999). Tais evidências podem estar refletindo uma dependência no funcionamento da visão nos itens que compõem tais subtestes, o que pode dificultar a avaliação do potencial intelectual da criança cega. Nesse sentido, qualquer estudo sobre o perfil cognitivo de crianças cegas, como a presente proposta, deverá prestar atenção especial a esses subtestes.

Com relação ao desenvolvimento do pensamento abstrato, existem estudos relacionando significativamente a capacidade de visão à habilidade de raciocínio abstrato (Tillman, 1967; Tilman e Osborne, 1967). No entanto, um estudo mais atual (MacClushie, Tunick, Dial e Paul, 1998) realizado com pessoas que perderam a visão aos dois anos e pessoas que perderam a visão aos cinco anos mostrou não haver diferenças significativas no desempenho verbal entre as pessoas que perderam a visão antes e depois do domínio da linguagem. Um resultado parecido foi obtido por Zeppuhar e Walls (1998) ao estudarem alunos cegos e alunos com baixa visão. Ambos os grupos tiveram resultados similares em tarefas de categorização.

No que se refere ao pensamento abstrato, Wyver e Markham (1999) estudaram crianças com cegueira congênita e com visão normal, submetendo-as a um teste de avaliação do pensamento divergente. Não encontraram diferenças significativas entre as crianças de ambos os grupos. Por outro lado, na literatura especializada encontraram-se crianças cegas que apresentam uma atenção mais focalizada e estável do que crianças com visão baixa (Maćešić-Petrović, Vućinić, Jablan, & Eškirović, 2005), porém requerem maior tempo de processamento. Tais resultados indicariam, por um lado, que no que se refere à inteligência geral, crianças cegas podem apresentar o mesmo desenvolvimento que as crianças videntes, isto porque o desenvolvimento normal da capacidade intelectual ocorre independente da falta da visão ou de déficits em qualquer outro meio sensorial (Spitz, 1986). Isto significa que uma pessoa cega pode desenvolver a sua capacidade intelectual normalmente desde que assim o permita sua dotação genética e desde que esteja preservada a sua estrutura cerebral, embora prejuízos desenvolvimentais sejam comuns na população de crianças cegas (Teplin, 1988; Vohr e Garcia-Coll, 1985). Por outro lado, haveria diferenças de habilidades específicas entre cegos e videntes. Os cegos apresentariam maior atenção, porém com maior tempo de processamento (Maccesicc-Petrovicc et al., 2005) assim como maior capacidade mnemônica auditiva (Tinti, Galati, Vecchio, De Beni e Cornoldi, 1999). Tal especialização pode estar relacionada à hipótese de diferenciação cognitiva (Jensen, 1998). Segundo ela, ocorreria maior diferenciação entre os construtos psicológicos em camadas superiores de inteligência do que em camadas médias ou baixas. Por exemplo, no caso do fator g (ou inteligência geral), a correlação positiva entre os testes é maior em níveis inferiores do que em níveis superiores, isto porque a partir de certos patamares intelectuais o fator g não é mais importante. Assim, diminui a correlação entre os testes (base de cálculo para extrair g) e se intensifica a especialização cognitiva. Trata-se de uma hipótese a ser investigada no presente estudo.

Diversas razões caracterizam os subtestes verbais do teste WISC-III como alternativa viável no campo da avaliação da inteligência de crianças cegas, entre elas: 1) constituem valiosos recursos para a investigação das habilidades cognitivas, sendo reconhecidas mundialmente e estando entre as mais investigadas internacionalmente (Hutz e Bandeira, 1993; Almeida, 1996), 2) abrangência da população-alvo (crianças entre 6 e 16 anos de idade), 3) simplicidade do material e, 4) disponibilidade, no momento, da tradução e adaptação para o contexto brasileiro da terceira revisão da Escala Wechsler para avaliação de populações normais.

A escala verbal do WISC-III é a que interessou ao propósito da presente investigação por ser composta de seis subtestes destinados a avaliar o conhecimento verbal, raciocínio verbal e processamento de informação, que podem ter sido adquiridos tanto pelas vias formais (escola) quanto pelas vias informais (família, comunidade). Esses seis subtestes verbais permitem compor dois dos índices fatoriais do WISC-III, quais sejam Resistência à Distratibilidade (Aritmética e Dígitos) e Compreensão Verbal (Informação, Semelhanças, Compreensão e Vocabulário). E, ao que parece, a melhor maneira de investigar um perfil cognitivo parece ser com o uso dos índices fatoriais do WISC-III. Eles são informativos preferenciais de populações clínicas e/ou especiais (Simões, Gomes e Xavier, 1998).

 

MÉTODO

Amostra

Participaram 120 crianças entre 6 e 16 anos de idade, freqüentadoras de duas instituições especializadas no ensino e profissionalização de pessoas portadoras de cegueira, ambas localizadas em Belo Horizonte e que constituem referências estaduais no atendimento a essa parcela da população.

Para a seleção da amostra, controlaram-se as seguintes variáveis: idade (6 a 16 anos) e compreensão mínima de comandos verbais (ex. saudação, saber o próprio nome e o local onde se encontra). Também participaram 56 crianças videntes de um banco de dados pertencente a um projeto de investigação longitudinal em que constava o registro da aplicação da Escala Verbal do WISC-III realizada em 2002 (Flores-Mendoza, Mansur-Alves, Lelé e Bandeira, 2007). O critério de seleção da amostra de crianças videntes foi que esta apresentasse as mesmas variáveis que a amostra de crianças cegas com QI acima de 85. Essas variáveis diziam respeito ao local de residência (área metropolitana de Belo Horizonte), tipo de escola (pública), idade, sexo e QI.

Material

Utilizaram-se os materiais necessários para a aplicação dos subtestes verbais do teste WISC-III. Contudo algumas adaptações foram feitas em Compreensão, Vocabulário e Aritmética, mas que não alteraram sua validade fatorial (Nascimento e Flores-Mendoza, 2007). A descrição dessas alterações se encontra no Anexo 1.

Procedimento

As instituições que permitiram a investigação foram inicialmente contatadas e o projeto foi exposto a elas. Além da autorização das duas instituições, todos os pais dos sujeitos participantes do estudo (cegos e videntes) assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido conforme a Resolução do Conselho Nacional de Saúde 96/196. No caso de crianças cegas, os itens do instrumento foram inicialmente discutidos com os professores especializados e com uma amostra de crianças para verificar a inteligibilidade. Dessa discussão surgiram as alterações citadas anteriormente. Todos os sujeitos foram avaliados de maneira individual, em uma única sessão de aproximadamente 50 minutos. A verificação da condição de saúde e da capacidade visual foi feita mediante consulta aos registros das instituições e, no caso de ausência destes, consulta aos pais das crianças. Os registros apresentavam informações sucintas de forma que somente se pôde determinar para cada criança, e de forma geral, a capacidade visual (visão subnormal ou cegueira) e etiologia (adquirida ou congênita).

 

RESULTADOS

A amostra total de crianças cegas (n=120) apresentou uma alta concentração (53%) de Qls abaixo de 85 (vide estatística descritiva Tabela 1). Nesse sentido, para efeito das análises, selecionaram-se os dados das crianças que obtiveram QI igual ou acima de 85 (n=56), isto é, a partir de -1 desvio padrão em relação à média. lsto para evitar que a comparação entre os grupos de análise (videntes e cegas) fosse influenciada pelas diferenças na variabilidade das amostras (como por exemplo, o efeito de concentração de crianças cegas no extremo inferior da curva de distribuição de Ql).

 

 

Diferenças em função da Idade

A subamostra de crianças cegas com QI acima de 85 foi subdividida em cinco grupos etários de forma a obter uma quantidade mínima e razoável em cada subgrupo. A estatística obtida em cada prova cognitiva e em cada faixa etária é apresentada na Tabela 2.

Tabela 2. Estatísticas descritivas dos pontos brutos do grupo selecionado

 

 

Para análise das diferenças de médias dos escores brutos devido à influência da idade (considerando os cinco grupos etários) empregou-se o teste estatístico Kruskal-Wallis. Os resultados mostraram haver diferenças significativas (p=0,000) em cada prova verbal do WISC-lll. Isto significa que com o aumento da idade cronológica, de forma semelhante ao de crianças videntes, espera-se uma maior capacidade de resolução de problemas das crianças cegas.

Diferenças em função do gênero

Considerando o pequeno número de sujeitos em cada gênero de cada faixa etária, utilizou-se como estratégia empregar a tipificação dos escores brutos, isto é, empregaram-se os resultados ponderados de cada subteste (Tabela 3). Essa estratégia permite utilizar os dados da amostra total, uma vez que se controla a influência desenvolvimental.

 

 

O teste estatístico Mann-Whitney U aponta não haver diferenças significativas (0,081< p < 0,513) entre crianças cegas do sexo masculino e do sexo feminino no que se refere ao desempenho nos subtestes verbais do WlSC-lll.

Diferenças em função da capacidade visual (cegueira total e subnormal) e à etiologia (congênita ou adquirida)

Considerando o pequeno número de sujeitos em cada grupo de capacidade visual (cegueira total e subnormal), em cada grupo de etiologia (congênita e adquirida) e de cada faixa etária, empregaram-se novamente os resultados ponderados de cada subteste de forma a utilizar os dados da amostra total (Tabela 4). Um dos sujeitos não possuía informação médica sobre a capacidade visual residual e dois dos sujeitos da amostra não apresentavam registros médicos que pudessem confirmar a etiologia da cegueira.

 

 

O teste estatístico Mann-Whitney U apontou não haver diferenças significativas (0,191 < p < 0,758) entre crianças com cegueira total e crianças com visão subnormal no que se refere ao Ql verbal e ao desempenho nos subtestes verbais do WlSC lll. Tampouco se encontrou diferenças significativas (0,221 < p < 0,538) entre crianças com cegueira congênita e crianças com cegueira adquirida.

Diferenças cognitivas entre crianças cegas e videntes

As estatísticas descritivas das duas amostras (cegas e videntes) no que se refere à idade cronológica, QI verbal e escolaridade são apresentadas na Tabela 5.

 

 

A fim de verificar se as amostras foram adequadamente emparelhadas realizou-se o teste estatístico Mann-Whitney. Os resultados mostram não haver diferenças entre as amostras (cegas e videntes) no que se refere à idade cronológica (p=0,512), QI (p=0,282) e escolarização (p=0,530).

Compreensão Verbal e Resistência à distratibilidade de crianças cegas e videntes

A fim de averiguar o perfil cognitivo de crianças cegas, levantou-se a pontuação tipificada ou ponderada dos índices fatoriais Compreensão Verbal (CV) e Resistência à Distratibilidade (RD) tanto em crianças cegas quanto em crianças videntes. A correlação entre CV e QI Verbal foi de 0,916 no grupo de crianças cegas e de 0,821 no grupo de crianças videntes (ambos p<0,000). A correlação entre RD e QI Verbal foi de 0,662 (p<0,001) no grupo de crianças cegas e de 0,558 (p<0,001) no grupo de crianças videntes. Os grupos, cegos e videntes, comportaram-se, portanto, de forma semelhante na resolução da Escala Verbal do WISC-III. Logo, prosseguindo a investigação sobre possíveis diferenças no perfil cognitivo de crianças cegas e videntes, realizou-se uma comparação intergrupo em CV e RD. O teste t não acusou diferenças estatisticamente significativas entre os grupos em CV (p=0,423), mas sim em RD (p=0,015). As crianças cegas apresentam maior pontuação em RD do que as crianças videntes (ver estatísticas descritivas na Tabela 6).

 

 

Contudo suspeitou-se que as diferenças entre os grupos em RD deviam-se a diferenças no subteste que demanda a memória a curto prazo, qual seja o subteste de Dígitos. Nesse sentido, realizou-se outra comparação de médias pelo teste t e verificou-se que, de fato, a diferença estatisticamente significativa entre os grupos era maior em Dígitos (p=0,023) do que em Aritmética (p=0,055).

Diferenças mnemônicas entre cegos e videntes

O resultado anterior permitiu supor que, em tarefas de memória a curto prazo como Dígitos, as crianças cegas apresentam superioridade. Contudo considerou-se que essa superioridade somente emergiria em níveis superiores de QI segundo a hipótese de diferenciação cognitiva (Jensen, 1998). Assim sendo, separou-se os grupos de crianças videntes e cegas em dois níveis de QI: Médio (QI 90100) e Alto (110-130). O teste t para amostras independentes acusou não haver diferenças estatisticamente significativas entre crianças cegas e videntes em Dígitos no nível médio de QI (p=0,324), mas sim havia diferenças significativas no nível alto de QI (p=0,015). Na Figura 1 mostram-se as diferenças de desempenho conforme o nível de QI para ambos os grupos.

 

 

Por último, realizou-se uma comparação de médias entre crianças videntes e cegas no que diz respeito à Compreensão e Semelhanças, subtestes que apresentariam diferenças para essas populações (Wyver, Markam e Hlavacek, 1999). O teste t mostrou não haver diferenças significativas entre os grupos, seja em Compreensão (p=0,180) ou em Semelhanças (p=0,525).

 

DISCUSSÃO E CONCLUSÃO

As análises foram efetuadas em dados de crianças cegas com QI igual ou acima de 85 a fim de evitar o efeito da concentração de pontuações (53%) no extremo inferior da distribuição de QI observada na amostra total. Nesse sentido, analisou-se primeiramente o desempenho da amostra de crianças cegas com relação ao efeito das mudanças desenvolvimentais, diferenças de gênero, condição visual e etiologia. Em um segundo momento comparou-se o desempenho da amostra de crianças cegas com o de uma amostra de crianças videntes.

Os resultados das primeiras análises mostraram haver diferenças de desempenho devido à idade, o que reforça o pressuposto universal do desenvolvimento cognitivo até a adolescência (Jensen, 1998).

No que tange à influência do gênero, observou-se não haver diferenças significativas entre meninas e meninos cegos nos testes cognitivos verbais, o que reforça as evidências coletadas em sujeitos videntes pela Psicologia diferencial. Se houver diferenças entre sexos é provável que estas surjam a partir do final da adolescência (Lynn, 1999).

Tampouco se observaram diferenças significativas devido à etiologia (congênita ou adquirida) e à capacidade visual (visão subnormal e cegueira). Essas evidências são similares aos estudos de MacClushie, Tunick, Dial e Paul (1998) e de Zeppuhar e Walls (1998). O resultado do presente estudo reforça as evidências de que a variabilidade no desenvolvimento cognitivo ocorre independente do déficit sensorial ou motor. Uma conclusão a que chegou também o estudo de Stiers e Vandenbussache (2004). Esses autores afirmaram que um déficit em tarefas de execução do teste WISC não seria sinônimo de déficit perceptual. Isto é, haverá crianças que alcancem alto QI apesar do déficit visual e haverá crianças que alcancem baixo QI apesar de uma melhor capacidade visual. Reforçando esta conclusão deve-se destacar que o suposto baixo desempenho de crianças cegas nos subtestes Compreensão e Semelhanças apontado por Wyver, Markam e Hlavacek (1999) não foi confirmado no presente estudo.

Por outro lado, os resultados do segundo momento de análise são especialmente importantes devido à emergência de informações sobre o perfil cognitivo de crianças cegas se comparado ao de crianças videntes. Para tanto, selecionou-se de forma rigorosa uma subamostra de crianças videntes de uma ampla base de dados de 2002 (pertencente ao Laboratório de Avaliação das Diferenças Individuais-UFMG) que apresentasse, o mais próximo possível, as variáveis que caracterizavam a amostra de crianças cegas de 2004. Todavia, a fim de assegurar que, de fato, as amostras apresentavam semelhança em QI, idade e grau de escolarização, realizou-se uma comparação de médias em que se mostrou não haver diferenças estatisticamente significativas. Portanto as diferenças no perfil cognitivo não poderiam ser atribuídas às diferenças na capacidade intelectual geral, idade ou grau de instrução.

Na literatura internacional duas hipóteses são aventadas: 1) a de que pessoas cegas apresentam maior capacidade de atenção que as videntes (Collignon, Renier, Bruyer, Tranduy e Veraart, 2006), 2) a de que pessoas cegas apresentam maior capacidade mnemônica que as videntes, uma vez que processam a informação predominantemente pela audição e pelo tato (Raz, Striem, Pundak, Orlov e Zohary, 2007). Com relação à primeira hipótese, a comparação entre grupos em CV e RD apontou haver diferenças em RD, mas não em CV. Portanto pode-se aventar a possibilidade de que as crianças cegas, de fato, tendem a apresentar maior atenção do que as crianças videntes. Contudo devem-se mencionar as dúvidas que rodeiam o índice fatorial RD do WISC-III. Diversos autores apontam que esse índice não avalia com precisão a capacidade de atenção, pois os estudos de RD com crianças com Déficit de Atenção/Hiperatividade têm mostrado resultados dúbios ou de fraca validade (Reinecke, Beebe e Stein, 1999; Simões, Gomes e Xavier, 1998). No presente estudo, também, cogitou-se que o fator psicológico de maior peso nas diferenças estaria associado à memória de curto prazo, razão pela qual se compararam as médias de Dígitos e de Aritmética das duas condições visuais. O resultado foi alentador. A diferença entre crianças cegas e videntes era maior em Dígitos do que em Aritmética. O resultado se contrapõe a estudos como o de Wyver e Markham (1998), que não encontraram diferenças em Dígitos de crianças cegas e videntes. Entretanto, deve-se comentar, que esse estudo foi realizado em 19 crianças cegas e 19 videntes emparelhadas em idade e gênero. O emparelhamento em habilidade cognitiva foi baseado na opinião dos professores e aplicaram apenas a forma direta (forward) de Dígitos, razão pela qual, não se pôde confiar nos resultados obtidos.

Por outro lado, verificou-se que a diferenciação cognitiva, no presente caso relacionada à capacidade mnêmica, entre crianças cegas e videntes (de semelhante QI, idade e escolaridade) foi significativa somente no nível superior de QI. Nos patamares médios, e talvez baixos, não se observam diferenças cognitivas entre os grupos de diferente capacidade visual. Portanto a observação leiga de haver maior capacidade mnêmica em pessoas com deficiência visual pode estar correta, mas apenas quando se trata de pessoas com alto QI. Talvez este resultado explique porque estudos com amostras muito pequenas e sem controle de níveis de QI resultem em diferenças nulas na memória, quando a amostra é de crianças (como é o caso do estudo de Wyver e Markam, 1998). No estudo clássico de Tillman e Osborne (1969), estudou-se o desempenho de crianças cegas e videntes no WISC, encontrando-se diferenças significativas em Dígitos, a favor das crianças cegas, porém naquela época não se controlava a diferenciação cognitiva como fez o presente estudo. Espera-se que futuras investigações em amostras de adultos possam trazer uma maior comprovação da pista que aqui se menciona, uma vez que a especialização cognitiva, em princípio, emerge mais nitidamente após o término da adolescência (Jensen, 1998). A investigação da diferenciação cognitiva, por outro lado, exige requisitos metodológicos, como por exemplo, ampla amostra, de difícil alcance no presente estudo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 5/05/2008
Revisto em 11/09/2008
Aceito em 15/09/2008

 

 

* Endereço para correspondência: Av. Antônio Carlos, 6627; FAFICH - Depto. de Psicologia – Gab. 4042, Universidade Federalde Minas Gerais. Belo Horizonte – MG. CEP: 31270-901; Telefone: (31)3499-6277; E-mail: carmencita@fafich.ufmg.br.

 

 

ANEXO 1

 

 

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