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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.37 no.113 São Paulo maio/ago. 2020

https://doi.org/10.5935/0103-8486.20200015 

ARTIGO ESPECIAL

 

Por um plano nacional de alfabetização (PNA) capaz de respeitar diferenças de língua e constituição biológica

 

Towards a National Literacy Policy in tune with language and biological specificities

 

 

Fernando Cesar Capovilla

Professor Titular do Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo (USP). Membro do Conselho Nacional de Educação, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo faz uma apreciação sobre aspectos importantes que um Plano Nacional de Alfabetização precisa incluir e propõe o conceito desse plano a partir do espírito das duas políticas em sua aplicação a surdos, cegos e surdocegos, e de literatura recente sobre estrutura e processamento linguístico em Libras e Português. Essa literatura é considerada numa perspectiva da Neurociência Cognitiva da Linguagem Oral e Escrita (com foco no Português ouvido e lido orofacialmente por visão e por tato) e de Sinais (com foco em Libras vista e tateada), num modelo de processamento de informação.

Unitermos: Política Pública. Alfabetização. Surdos. Libras.


SUMMARY

This paper makes an appreciation of important aspects that a National Literacy Plan needs to include and proposes the concept of this plan from the spirit of the two policies in its application to the deaf, blind and deafblind, and from recent literature on linguistic structure and processing in Libras (Brazilian Sign Language) and Portuguese. The literature is considered in a perspective of Cognitive Neuroscience of Oral and Written Language (with a focus on spoken Portuguese in auditory, visual and tactile modalities) and Signs (with a focus on visual and tactile Libras), in an information processing approach.

Keywords: Public Policy. Literacy. Deaf. Brazilian Sign Language.


 

 

O presente artigo faz uma apreciação sobre aspectos importantes que um Plano Nacional de Alfabetização, como a Política Nacional de Alfabetização1 precisa incluir. O autor fez parte da equipe de colaboradores que elaborou a Política Nacional de Alfabetização do MEC. Ele colaborou tanto para a Política Nacional de Alfabetização da Secretaria de Alfabetização do MEC quanto para a Política Nacional de Modalidades Especializadas de Educação da Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação do MEC.

O presente artigo propõe o conceito de Plano Nacional de Alfabetização a partir do espírito das duas políticas em sua aplicação a surdos, cegos e surdocegos, e de literatura recente sobre estrutura e processamento linguístico em Libras e Português. Essa literatura é considerada numa perspectiva de Neurociência Cognitiva da Linguagem Oral e Escrita (com foco no Português ouvido e lido orofacialmente por visão e por tato) e de Sinais (com foco em Libras vista e tateada), num modelo de processamento de informação.

 

O ESCOPO DE UM PLANO NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO

Um Plano Nacional de Alfabetização precisa incluir a alfabetização de crianças com quadros de comprometimento neurossensorial (e.g., surdos, surdocegos), neuromotor (e.g., paralisia cerebral), e neurolinguístico (e.g., dislexia do desenvolvimento), bem como com múltiplos comprometimentos. Um Plano Nacional de Alfabetização precisa defender o uso de recursos e adaptações e procedimentos especiais para a alfabetização competente dessas populações. O Plano deve abordar essa alfabetização à luz das neurociências cognitivas, com especial atenção à plasticidade neural2, e propor intervenção precoce já na educação infantil para desenvolver todos os pré-requisitos à alfabetização, de modo a assegurar sua disponibilidade para a alfabetização escolar no 1o ano do ensino fundamental.

Dependendo do quadro, esse desenvolvimento irá requer o uso de diferentes recursos específicos. Por exemplo, crianças com paralisia cerebral necessitarão de sistemas computadorizados falantes de comunicação alternativa e aumentativa implementados como aplicativos de tablet, por exemplo3,4. Crianças que tenham irmão ou genitor com dislexia do desenvolvimento podem se beneficiar de intervenção fônica5-7 já na educação infantil, antes da alfabetização. Crianças disléxicas têm 50% de risco de virem a desenvolver dislexia do desenvolvimento, comparado aos 7-10% de risco de crianças sem irmãos ou pais disléxicos8. Detecção e intervenção fônica são sabidamente eficazes em prevenir dislexia do desenvolvimento, facilitando a alfabetização subsequente9.

Um Plano Nacional de Alfabetização também precisa incluir crianças com características, línguas e culturas distintas, tais como crianças surdas, cuja língua materna (L1) é a Língua de Sinais Brasileira ou Libras10,11, as crianças indígenas, com seus idiomas ameríndios12 e as crianças quilombolas. Um Plano Nacional de Alfabetização precisa respeitar as diferenças culturais de língua e de cultura dessas crianças, e propor adaptações especiais. Ainda com relação à plasticidade neural, um Plano Nacional de Alfabetização deve propor que crianças com surdez congênita profunda tenham acesso precoce a Libras, sempre antes dos 5 anos. Segundo Newport13, se as crianças com surdez congênita profunda forem expostas à língua de sinais somente aos 5 anos de idade, elas serão significativamente menos fluentes que aquelas expostas à língua de sinais desde seu nascimento. Se elas forem privadas de acesso à língua de sinais até os 12 anos de idade, elas nunca atingirão proficiência plena em língua de sinais, mesmo que venham a ser expostas diariamente a essa língua pelos próximos 30 anos de vida.

Libras é a Língua Materna (L1) dos surdos. É a metalinguagem que eles usam para aprender a ler e escrever Português. Nas Escolas Bilíngues sinalizadoras, é o veículo de ensino-aprendizagem. Trata-se do sistema de comunicação da comunidade surda brasileira reconhecida em Lei Federal número 10.436 de 24/04/2002, e regulamentada pelo Decreto Federal número 5.626 de 2/12/2005, cujo espírito é o de reconhecer oficialmente a Libras e estabelecer seu ensino e divulgação, para que a educação possa se dar em Libras na Filosofia Educacional do Bilinguismo14-16. Segundo Que et al.2, embora a exposição à língua de sinais use o córtex auditivo, devido à plasticidade neural, a língua de sinais não é incompatível com implante coclear. Além disso, a leitura orofacial promove a reabilitação auditiva pós-implante.

Mostrando sensibilidade às particularidades da ampla variedade linguística e cultural de um lado, e variedade constitucional (com distúrbios neurossensoriais, neurolinguísticos e neuromotores) de outro lado, um Plano Nacional de Alfabetização deve propor que sejam feitas as adaptações necessárias às diversas combinações entre diferenças culturais de um lado e diferentes combinações entre diferenças constitucionais de outro lado. Assim, por exemplo, o Plano deve propor que crianças surdas tenham acesso precoce a Libras visual e, subsequentemente, durante a alfabetização, para aperfeiçoar a qualidade ortográfica da escrita e a precisão de leitura17,18, a diversos recursos eficazes para permitir às crianças surdas compreender melhor a fala por leitura orofacial visual (e.g., Cued Speech19,20). O Plano também deve propor que crianças surdocegas tenham acesso precoce a Libras Tátil e, subsequentemente, para viabilizar a alfabetização, a diversos recursos eficazes para permitir às crianças surdas compreender melhor a fala por leitura orofacial tátil (e.g., Tadoma).

 

LEITURA E ESCRITA ALFABÉTICAS: PRINCÍPIOS FONOTÁTICO E SEMIOTÁTICO, E A SUA ORDEM NA ALFABETIZAÇÃO COMO FUNÇÃO DA LÍNGUA MATERNA DO EDUCANDO

Com vistas a atender toda essa ampla gama de variabilidade linguística e constitucional, é preciso que um Plano Nacional de Alfabetização tenha uma visão ampla e compreensiva da escrita. É preciso considerar que a escrita é regida por dois princípios: o fonotático e o semiotático.

(1.) O princípio fonotático diz respeito ao fato claro de que a escrita mapeia a fala. As unidades da escrita (grafemas) mapeiam unidades da fala correspondentes (lalemas). Essas unidades da fala podem ser audíveis (fonemas ou otolalemas, que ouvintes processam para a compreensão auditiva da fala), visíveis (optolalemas, que surdos videntes processam para compreender a fala na leitura orofacial visual), ou táteis (esteselalemas, que surdocegos processam para compreender a fala na leitura orofacial tátil).

(2.) O princípio semiotático trata da composição morfêmica das palavras conforme seu significado (semântica) e origem (etimologia), e permite escrever corretamente palavras que soam do mesmo modo (e.g., conserto-concerto, passo-paço, sinto-cinto) a partir da percepção do contexto frasal ou semântico em que se inserem.

É preciso que um Plano Nacional de Alfabetização tenha clareza de que, em termos de ordem:

(1.) O princípio fonotático precede o semiotático nas crianças ouvintes cuja língua materna (L1) é o Português, o princípio fonotático é básico à aquisição da leitura e escrita alfabética; ao passo que o princípio semiotático é importante para permitir à criança interpretar adequadamente o significado das palavras a partir dos morfemas componentes, para além da fala interna; e a escrever corretamente a partir do contexto semântico, novamente para além da fala interna. Por exemplo, durante a escrita sob ditado, ao ouvir a frase: "O homem andou três passos e chegou ao Paço Municipal" a criança competente no princípio semiotático escreverá a primeira palavra com "ss", e a segunda com "ç". Como as palavras soam do mesmo modo, o princípio fonotático por si só não permite escrever corretamente. A competência semiotática torna a criança sensível ao contexto, que condiciona a escrita correta.

(2.) O princípio semiotático precede o fonotático nas crianças com surdez congênita profunda, e cuja L1 é a Libras, nas crianças indígenas cuja L1 é um idioma ameríndio como o Tupi-guarani, e nas crianças indígenas cuja L1 é um idioma ameríndio de sinais como o Urubu-Kaapor21. Como a criança está aprendendo a ler e escrever uma L2 a partir de sua L1, ela começará pelo princípio semiotático, estabelecendo correspondências entre as unidades de significado (morfemas) da L2 que está aprendendo e as unidades de significado de sua L1. Isso ocorre sempre que se aprende uma língua estrangeira. No caso da criança surda, ela aprende a usar Libras como metalinguagem para analisar as palavras em morfemas semânticos (i.e., Lexemas, como os radicais gregos e latinos, por exemplo) e morfemas gramaticais (i.e., Gramemas, que denotam as categorias gramaticais de gênero, número, modo, tempo e pessoa).

Essa distinção é essencial a um Plano Nacional de Alfabetização compreensivo e consistente: Enquanto os ouvintes, que têm no Português sua L1, começarão abordando a escrita pelo princípio fonotático (ancorando as unidades da escrita nas unidades da fala); os surdos congênitos profundos (cuja L1 é Libras), os indígenas ouvintes (cuja L1 é um idioma ameríndio falado) e os indígenas surdos (cuja L1 é um idioma ameríndio de sinais, como, por exemplo a Língua de Sinais Urubu-Kaapor) partirão do princípio semiotático. Ao abordar palavras escritas do Português, o aluno, cuja L1 não é o Português (seja esse aluno indígena, surdo, ou indígena surdo), começará aprendendo a traduzir as palavras do Português para sua língua, e de sua língua para o Português. Em seguida, aprenderá a fazer análise morfêmica de cada palavra, decompondo-a em seus lexemas e gramemas. Para fixar o conhecimento, o indígena aprende diversas palavras formadas por um mesmo lexema (por exemplo, "beb-" em Português, que está presente em palavras como "bebida", "beber", "bebericar", "bêbado", etc.; "estud-" que está presente em palavras como "estudo", "estudar", "estudante", etc.) variando apenas os gramemas, no caso, os sufixos. E, em seguida, deve aprender diversas palavras formadas por um mesmo gramema (e.g., o sufixo "-er", presente em "beber" e "-ar" em "estudar") variando apenas os lexemas. Isso permite compreender como o Português codifica significado pelo princípio semiotático.

Nessa abordagem, a todo momento, o aluno, cuja L1 não é o Português estabelece correspondências entre os morfemas do Português e os morfemas metafóricos de sua L1 (seja ela Tupi-Guarani, Libras, ou língua de sinais Urubu-Kaapor, por exemplo). Um mapeamento preliminar da estrutura morfêmica da Libras pode ser encontrado em Capovilla et al.22. Um mapeamento completo da estrutura sematossêmica dos sinais pode ser encontrado em Capovilla & Oliveira23. Sua importância para o processamento cognitivo dos surdos pode ser encontrada em Capovilla & Martins24.

Um Plano Nacional de Alfabetização precisa considerar, como denominador comum a todas essas crianças, o fato de que todas elas terão de aprender a ler e escrever a Língua Portuguesa, já que são todas são cidadãs brasileiras. Isso ocorre a despeito de toda a diversidade cultural, englobando as surdas congênitas que pensam e se comunicam em Libras como L1, as indígenas que pensam e se comunicam em seus idiomas ameríndios como L1, e as quilombolas, com seu léxico próprio. Igualmente, isso ocorre a despeito de toda a diversidade constitucional, englobando as crianças com comprometimento neurossensorial (as surdas, as cegas, as surdocegas), neuromotor (as com paralisia cerebral e tetraplegia), neurolinguístico (as disléxicas e afásicas). Além das crianças com os mais variados quadros como Discalculia, Disartria, Disgrafia, Deficiência Intelectual, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, Distúrbio do Sistema Vestibular, Distúrbio de Processamento Auditivo Central, dentre outras25.

A alfabetização em Português deve ancorar a escrita na fala, uma vez que:

(1) Todas essas crianças terão de aprender a ler e escrever a Língua Portuguesa,

(2) O Português emprega o sistema de escrita alfabético; e

(3) O sistema alfabético mapeia a fala.

Como vimos, essa ancoragem deve ser feita logo no início para a criança ouvinte cuja L1 é Português; e apenas no fim para crianças cuja L1 não é Português. Uma observação fundamental precisa ser feita aqui. A Filosofia Educacional de surdos mais aceita é a do Bilinguismo10,14-16,26,27. Segundo Filosofia Educacional do Bilinguismo, a alfabetização da criança surda não deve almejar que ela venha a articular a fala, de modo algum. Espera-se apenas que ela venha a ser capaz de ler silenciosamente com precisão de compreensão; e a escrever com precisão ortográfica e correção semântica. A escrita é considerada competente quando as mensagens produzidas são inteligíveis, ou seja, capazes de serem compreendidas por leitores fluentes em Português que desconhecem o autor, seu propósito e o contexto em que escreveu.

Segundo Capovilla17,18:

(1.) A aprendizagem do Português deve começar pelo princípio fonotático para a criança ouvinte cuja L1 é Português. Nesse princípio fonotático, a criança aprende a ancorar a escrita na fala. Uma vez que a criança se torne fluente e precisa no domínio do princípio fonotático, ela deve progredir ao princípio semiotático, aprendendo a composição morfossintática da palavra. Por outro lado,

(2.) A aprendizagem do Português deve começar pelo princípio semiotático para a criança ouvinte cuja L1 é um idioma ameríndio, para criança surda cuja L1 é a Libras, e para criança surda indígena cuja L1 é um idioma ameríndio de sinais como a Língua de Sinais Urubu-Kaapor. Essas crianças devem começar aprendendo o vocabulário e a composição morfossintática da palavra. Só depois de dominarem isso elas devem progredir para o princípio fonotático aprendendo a fazer mapeamento sistemático entre as unidades da escrita alfabética (grafemas) e as unidades da fala por meio da leitura orofacial visível (optolalemas).

Para a criança cuja L1 não é Português, o objetivo dessa segunda fase, a fonotática, é a de permitir a ancoragem na fala, de modo a contribuir para a qualidade ortográfica da escrita.

(1.) No caso da criança ouvinte indígena, cuja L1 é um idioma ameríndio, a fase fonotática permite ler em voz alta e silenciosamente de maneira precisa e com compreensão; e a escrever sob ditado ouvido, bem como sob ditado da própria fala interna, na redação livre.

(2.) No caso da criança surda cuja L1 é Libras, a fase fonotática permite fazer leitura orofacial (Capovilla et al.28), de maneira precisa e com compreensão correta; e escrever a partir da sinalização, com mediação na imaginação visual da fala, na redação livre. Os procedimentos necessários à consecução desse resultado encontram-se descritos em Capovilla17,18, que explica, também, como se dá a articulação cuidadosa dos processos cognitivos à luz das Neurociências Cognitivas. Tais processos envolvem a soletração digital, e a imaginação visual da fala.

(3.) No caso da criança surda indígena, cuja L1 é uma língua de sinais ameríndia, como a Língua de Sinais Urubu-Kaapor, por exemplo, a fase fonotática é igualmente essencial, mas muito mais complexa, já que as pessoas com quem convive, fora da comunidade surda específica à qual pertence, tenderão a se comunicar oralmente num idioma ameríndio distinto do Português. Isso tende a aumentar a complexidade da ancoragem da escrita na fala. É imprescindível que essa criança surda indígena (cuja L1 é a Língua de Sinais Urubu-Kaapor) tenha contato interpessoal frequente com falantes do Português.

Portanto, a criança ouvinte cuja L1 é um idioma ameríndio deve começar pelo princípio semiotático, inicialmente pela tradução da palavra do Português para a correspondente palavra em seu idioma; em seguida aprendendo a composição morfossintática da palavra do Português, e estabelecendo relação de correspondência entre a estrutura morfossintática das palavras do Português e a estrutura morfossintática das palavras de seu idioma ameríndio. Feito isto, a criança deve aprender a pronunciar as palavras do Português, primeiro por imitação do professor, usando a sua própria fala para repetir precisamente a fala do professor que é pronunciada de maneira clara e pausada de início, e depois naturalmente. Conseguindo pronunciar perfeitamente as palavras do Português, a criança indígena deverá começar a aprender a escrever aquelas palavras. Ela aprenderá pelo princípio fonotático. Na criança ouvinte, cuja L1 é o Português, esse princípio fonotático é implementado de maneira sintética, indo dos fonemas para a palavra falada; e dos grafemas para a palavra escrita. Entretanto, como a L1 dessa criança indígena é um idioma ameríndio, e como o Português é apenas sua L2, o princípio fonotático deverá ser implementado primeiramente de modo analítico, indo da palavra para os grafemas e correspondentes fonemas, e não sintético.

 

PROBLEMAS NA IMPLEMENTAÇÃO DO PRINCÍPIO FONOTÁTICO PARA EDUCANDOS OUVINTES, SURDOS, CEGOS, E SURDOCEGOS, TAIS COMO REVELADOS POR PARALEXIAS E PARAGRAFIAS

Estabelecidas tais considerações, passamos em seguida a detalhar o princípio fonotático, que é a chave da alfabetização em Português. Como vimos, a escrita alfabética do Português mapeia a fala. Portanto, a alfabetização deve ser ancorada na fala. De fato, segundo Capovilla17,18,29, a Alfabetização Fônica5-7 é, em verdade, uma Alfabetização Lalêmica Multissensorial, já que se ancora na fala em suas três modalidades sensoriais. Conforme Capovilla25,30-32, a fala pode ser recebida por audição (em crianças ouvintes, videntes ou cegas), visão (por crianças videntes, ouvintes ou não, como no caso do surdo vidente), e por tato (em crianças sencientes, videntes ou não, como as surdocegas).

Segundo Capovilla29,33, a fala produz traços audíveis, visíveis e táteis.

(1) Os traços audíveis são os fonemas ou otolalemas, que são processados na copreensão auditiva da fala.

(2) Os traços visíveis da fala são os optolalemas, que são processados na leitura orofacial visual por surdos videntes, e também por ouvintes, que fazem uso da leitura orofacial por visão para suplementar a audição em casos de escuta dificultosa, como numa sala ruidosa. Crianças com dificuldade de leitura e escrita também se beneficiam da leitura orofacial em auxílio à audição. Isto porque algumas unidades da fala são mais conspícuas à visão que à audição. Por exemplo, as unidades da fala (lalemas) \m\ e \n\ são mais distintas à visão que à audição. Assim, as unidades visíveis da fala (ou optolalemas) {\m\} {\n\} são mais distintas entre si que as correspondentes unidades audíveis da fala (fonemas ou otolalemas) [\m\] [\n\]. Esses lalemas são semi-homofônicos, mas como são heteroscópicos, os ouvintes tendem a se beneficiar também da leitura orofacial visual para aumentar a compreensão da fala.

(3) Os traços táteis da fala são os esteselalemas, que são processados na leitura orofacial tátil por surdocegos, como o sistema Tadoma34. Cada um desses três grupos (ouvintes, surdos, surdocegos) requer adaptações especiais da Alfabetização Lalêmica Multissensorial.

Alfabetizar é ensinar a ler por decifragem de grafemas em lalemas (ouvidos, vistos, ou tateados), e a escrever por cifragem desses lalemas em grafemas. Em cada grupo, as atividades são implementadas por um modelo distinto.

Na criança ouvinte, capaz de articular a fala (i.e., não anártrica, como aquela com paralisia cerebral), duas das atividades mais importantes para o ensino de leitura e escrita são o ensino de leitura em voz alta e o de escrita sob ditado.

Na criança surda, no ensino de leitura, a leitura deve ser sempre leitura silenciosa mediada por soletração digital, por acesso semântico por meio de figuras, e finalmente por meio de ancoragem na fala articulada visivelmente. O ensino de escrita deve se dar no contexto de nomeação de figuras, para descrever eventos e situações, e para tomar ditado por leitura orofacial visual.

Os erros de leitura e de escrita são chamados de paralexias e paragrafias, respectivamente. Capovilla e colaboradores17,18,35-39 analisaram os erros de leitura e escrita em surdos. Os estudos analisaram leitura enquanto comportamento de escolher palavras escritas para nomear figuras37,40; e escrita enquanto nomeação de figuras por escrita de palavras à mão livre35. Esses estudos revelaram os principais processos cognitivos envolvidos na leitura e na escrita de crianças surdas videntes. Os autores identificaram dois tipos básicos de erros:

(1) Paralexias e paragrafias sematossêmicas, que são trocas na leitura e escrita com base na semelhança entre os sinais subjacentes; e

(2) Paralexias e paragrafias optolalêmicas, que são trocas na leitura e escrita com base na semelhança entre as unidades da fala visíveis (optolalemas).

Os autores solicitaram que as crianças nomeassem 144 figuras, 72 das quais deveriam ser nomeadas por escrita à mão livre, e as demais 72 figuras deveriam ser nomeadas por escolha da palavra escrita correspondente à figura. O primeiro teste é de escrita; o segundo é de leitura.

Os autores analisaram os erros de leitura (paralexias) e de escrita (paragrafias) como função do processo cognitivo subjacente:

(1) O processo sematosêmico foi revelado pelo efeito da semelhança entre o sinal da Libras subjacente à figura e o sinal subjacente à palavra que acabou sendo escrita ou escolhida. Por exemplo, escrever ou escolher a palavra escrita "café" e em presença da figura de uma peteca.

(2) O processo optolálico foi revelado pelo efeito da semelhança entre as articulações da fala visíveis na imaginação: aquela subjacente à figura e aquela subjacente à palavra que acabou sendo escrita ou escolhida. Por exemplo, escrever ou escolher as palavras escritas "vila" e "foto" e em presença das figuras de uma fila e de um voto.

Para avaliar escrita e analisar os erros de escrita (paragrafias), os autores avaliaram a habilidade de nomear 72 figuras por escrita à mão livre, no teste de nomeação de figuras por escrita (TNF-Escrita).

Os erros cometidos pela criança ao escrever à mão livre a palavra que corresponde ao nome de uma dada figura foram divididos em:

(1) Paragrafias sematósicas, baseadas na semelhança entre os sinais subjacentes (TNF-Escrita). baseadas na semelhança entre os sinais subjacentes (entre o sinal subjacente à figura a ser nomeada e o sinal subjacente à escrita que acabou sendo produzida para nomeá-lo);

(2) Paragrafias optolálicas, baseadas na semelhança entre a articulação da fala (a fala que nomeia a figura e a fala que corresponde à palavra que acabou sendo escrita).

Para avaliar leitura e analisar os erros de leitura (paralexias), os autores avaliaram a habilidade de nomear outras 72 figuras por escolha de palavra escrita, no teste de nomeação de figuras por escolha (TNF-Escolha). Algumas palavras oferecidas como opção de escolha tendiam a induzir erros com base na imaginação visual da fala; outras palavras oferecidas como opção de escolha tendiam a induzir a erros com base na semelhança entre os sinais subjacentes. Os erros cometidos pela criança, ao escolher dentre algumas palavras para dar nome a uma dada figura, foram divididos em:

(1) Paralexias sematósicas, baseadas na semelhança entre os sinais subjacentes (entre o sinal subjacente à figura a ser nomeada, e o sinal subjacente à palavra escrita que acabou sendo escolhida para nomeá-lo);

(2) Paralexias optolálicas, baseadas na semelhança entre as articulações da fala (a articulação da fala que nomeia a figura e a articulação da fala que corresponde à palavra escrita que acabou sendo escolhida).

Os autores documentaram os dois tipos de paralexias e de paragrafias.

(1) Em termos de paragrafias sematosêmicas, eles descobriram que, quando a criança não sabe o nome em Português de uma dada figura, ela acaba escrevendo outra palavra aparentemente inusitada, mas ancorada na sinalização subjacente. Por exemplo, ao ver a figura de uma peteca e ter de escrever o nome "peteca", a criança surda, cuja L1 é Libras, primeiro nomeia a figura em Libras, evocando o sinal a ela correspondente. Em seguida, essa criança usa esse sinal para tentar resgatar a palavra escrita correspondente. Como essa palavra ("peteca") é bastante incomum no Português escrito (de fato, sua frequência média anual em base de dados como o Google AdWords é baixíssima), a criança não consegue resgatar a representação ortográfica dessa palavra de sua memória de longo prazo (léxico ortográfico). Ela, então, usa o seu sinal de Libras como ponto de apoio para procurar, em sua memória, palavras escritas cujo sinal é semelhante ao sinal PETECA. Muitas crianças surdas acabam escrevendo, então, a palavra "café" para designar a figura de peteca, uma vez que a forma do sinal CAFÉ é muito parecido com o sinal PETECA. No sinal PETECA, uma mão simula segurar algo cilíndrico como o corpo de uma peteca no ar defronte o corpo, e a outra mão, espalmada, vem por baixo e simula bater na peteca, então, que sobe levemente. Já no sinal CAFÉ, uma mão simula segurar algo cilíndrico como uma xícara de café no ar defronte o corpo, e a outra mão, espalmada, dá apoio por baixo da primeira mão, como se fosse o pires daquela xícara. Ao testar 5.200 alunos surdos num teste de nomeação de 72 figuras, Capovilla e colaboradores documentaram várias centenas desses erros, mostrando que semelhança entre os sinais subjacentes é a única explicação possível para esse tipo de erro, que revela a importância da Libras para o pensar e o escrever e o ler da criança com surdez congênita bilateral profunda.

(2) Em termos de paragrafias optolalêmicas, eles descobriram que, na escrita para nomear 144 figuras, as 5.200 crianças tendem a trocar os grafemas com base na semelhança da articulação visível da fala. Por exemplo, embora os fonemas-otolalemas [\k\] e [\g\] velares sejam distintos à audição, como o surdo não ouve, e tem de fazer leitura orofacial visual, a semelhança visual entre optolalemas diferentes acaba produzindo paragrafias optolalêmicas. A origem das paragrafias optolalêmicas é que os optolalemas são iguais à visão. Por exemplo, os optolalemas velares {\k\} e {\g\} são homoscópicos, ou seja {\k\} = {\g\}. Assim, o surdo é incapaz de distinguir entre as palavras faladas "calo" e "galo". O mesmo ocorre entre os optolalemas {\f\} = {\v\}, {\t\} = {\d\}, {\p\}= {\b\} = {\m\}, {\ʒ\} = {\ʃ\}. Por isso, o surdo é incapaz de distinguir entre as palavras faladas "foto" e "voto"; "teto" e "dedo"; entre "pico", "bico" e "mico"; entre "chato" e "jato", e assim por diante. Na escrita dos nomes de figuras, o surdo imagina visualmente as palavras faladas sendo articuladas em sua mente. Como aquelas unidades da fala visível (optolalemas) são indistinguíveis entre si, eles tendem a cometer trocas na escrita. Essas trocas são chamadas de paragrafias optolalêmicas. Elas são muito fáceis de documentar quando a pessoa com deficiência auditiva ou o surdo oralizado está escrevendo sob ditado a fala lida orofacialmente por visão.

 

ALFABETIZAÇÃO FÔNICA-OTOLÁLICA PARA ENSINO DE LEITURA E ESCRITA A OUVINTES

Ensino de escrita a ouvintes

Conforme Capovilla17,18, na Alfabetização Fônica-Otolálica para ouvintes, a criança aprende a escrever por cifragem de fonemas-otolalemas em grafemas. Para facilitar esse ensino, Capovilla17,18 mapeou todas as relações entre fonemas e grafemas da Língua Portuguesa. Esse levantamento descobriu todas as formas de cifrar (i.e., grafar) cada fonema, e as organizou uma hierarquia que vai das mais comuns (as dominantes) às mais raras (as recessivas). Por exemplo, o fonema /k/ pode ser cifrado de sete formas: "c" (em "calor"), "qu" ("querido"), "q" ("quadro"), "k" ("kart"), "ck" ("lamarckista"), "ch" ("chroma"), "cqu" ("hecquéria"). As três formas mais dominantes são "c", "qu", "q"; e as três formas mais recessivas são "ck", "ch", e "cqu".

Ao errar na escrita, a criança alfabetizanda quase sempre vai acabar omitindo ou grafando incorretamente os grafemas que são recessivos (raros, os últimos) para aquele fonema. Mais frequentemente, ela vai tender a grafar (cifrar) um grafema dominante (comum) no lugar do grafema alvo recessivo. Portanto, na escrita sob ditado, a criança tenderá a cifrar "lamarckista" e "hecquéria" com "qu", e "chroma" com "c". Isso porque "ch" é recessivo e "c" é dominante; e, porque "qu" é dominante, ao passo que "ck" e "cqu" são recessivos. Fica evidente, aqui, que além da escrita por cifragem intuitiva, baseada nos grafemas que são mais comuns para cifrar cada fonema, a escrita envolve regras gramaticais de posição32,41,42, que permitem escolher os melhores grafemas para cifrar os mesmos fonemas, dependendo da relação entre ele e os grafemas antecedente e subsequente. Por exemplo: na leitura, o grafema "c" é pronunciado como /s/ quando precede as consoantes "e", e "i"; e como /k/ quando precede as consoantes "a", "o" e "u". Igualmente, na leitura, o grafema "s", em posição intervocálica, é pronunciado como /z/. Ainda na leitura, o "i" e o "u" em posição final em sílaba simples CV são pronunciados de maneira tônica, como em "saci", "rubi", "jacu" e "pacu". Na escrita, as palavras paroxítonas são acentuadas, desde que terminadas em sílaba simples CV em "i" ou "u". Por exemplo, "cáqui" e "biquíni"43. Tais regras gramaticais auxiliam a criança a produzir leitura em voz alta precisa (ortoépica) e escrita sob ditado precisa (ortográfica).

Voltando à intuição de escrita41,44, o levantamento de Capovilla et al.45 permite prever a probabilidade de erro de escrita (paragrafia) de cada fonema durante a atividade de escrita sob ditado de qualquer palavra falada do Português. A explicação é muito simples: Na escrita sob ditado de uma dada palavra falada, de modo a poder produzir a correspondente palavra escrita, a criança vai convertendo cada fonema no grafema correspondente. Cada uma dessas conversões tem um Grau de Facilidade de Cifragem (GFC). A média aritmética desses GFC constitui o Grau de Facilidade de Escrita da Palavra (GFEP) pela rota perilexical (i.e., fonológica, de cifragem fonema-grafema) durante a alfabetização. Quando a professora alfabetizadora prepara uma lista de palavras faladas para escrita sob ditado, ela pode saber exatamente qual é o grau de facilidade de escrita de cada uma delas. Ao corrigir as provas, a professora verá que as crianças erram mais na escrita das palavras que têm menor GFEP. Além disso, a professora verá que, dentro de qualquer palavra, as trocas de escrita que as crianças cometem tendem a envolver a troca de um grafema com baixo GFC por outro com alto GFC. Isso é importante para o ensino da escrita sob ditado, pois as relações fonema-grafema com menor GFC são as que requerem mais atenção. Os dados de Capovilla et al.45 corroboram a eficácia desse modelo em prever os erros de escrita de crianças durante a fase de alfabetização, bem como de adultos ao escrever palavras de muito baixa frequência no Português. Isso ocorre porque nesses dois casos a escrita se dá por cifragem de fonemas em grafemas.

Ensino de leitura a ouvintes

Para ouvintes, essa Alfabetização Fônica-Otolálica ensina a ler por decifragem de grafemas em fonemas. Para facilitar esse ensino, Capovilla17,18 mapeou todas as relações entre grafemas e fonemas da Língua Portuguesa. Esse levantamento descobriu todas as formas de pronunciar cada grafema, e as organizou numa hierarquia que vai das mais comuns (as dominantes) às mais raras (as recessivas). Por exemplo, um determinado grafema usualmente pode ser pronunciado de várias formas, havendo uma mais dominante e outra mais recessiva. Ao errar na pronúncia, a criança alfabetizanda quase sempre vai errar na pronúncia dos fonemas que são recessivos (raros) para aquele grafema. Além disso, ela vai tender a pronunciar um fonema dominante (comum) no lugar do recessivo. Esse levantamento permite prever a probabilidade de erro de pronúncia (paralexia) de cada grafema na leitura em voz alta de qualquer palavra escrita do Português.

A explicação é muito simples: Na leitura em voz alta de uma dada palavra escrita, de modo a produzir a correspondente palavra falada, a criança vai convertendo cada grafema no fonema correspondente. Cada uma dessas conversões tem um Grau de Facilidade de Decifragem (GFD). A média aritmética desses GFD constitui o Grau de Facilidade de Leitura da Palavra (GFLP) pela rota perilexical (i.e., fonológica, de decifragem grafema-fonema) durante a alfabetização. Quando a professora alfabetizadora prepara uma lista de palavras escritas para leitura em voz alta, ela pode saber exatamente qual é o grau de dificuldade de leitura de cada uma delas. Ao verificar o desempenho da criança, a professora verá que as crianças erram mais na leitura das palavras escritas que têm menor GFLP. A professora verá que, dentro de qualquer palavra, as trocas de pronúncia que as crianças cometem tendem a envolver a troca de pronúncia de um fonema com baixo GFD por outro com alto GFD. Isso é importante para o ensino da leitura em voz alta, pois as relações fonema-grafema com menor GFC são as que requerem mais atenção.

 

ALFABETIZAÇÃO OPTOLÁLICA PARA ENSINO DE LEITURA E ESCRITA A CRIANÇAS VIDENTES COM DA E SURDEZ

O presente Alfabetização Optolálica constitui extensão do tradicional modelo de Campbell e colaboradores46-49 para explicar leitura e escrita em pessoas videntes com DA, e os surdos videntes oralizados. Segundo esse modelo, essas pessoas leem identificando, nas palavras escritas, as unidades de escrita (grafemas) que mapeiam as unidades da fala visível. Capovilla denominou essas unidades de optolalemas32,33. Na leitura elas imaginam visualmente as formas de boca correspondentes a cada grafema. Essa decifragem de grafemas em optolalemas acaba por compor uma sequência de articulações visualizadas mentalmente. Igualmente na escrita essas pessoas evocam na imaginação visual os segmentos da fala correspondentes às palavras que querem escrever, e vão convertendo os optolalemas em grafemas. A prevalência desse modo de leitura e escrita é alta nas pessoas com DA, já que elas têm o Português como L1. Já nas pessoas surdas, ela é bem menor, já que elas têm a Libras como L1 e o Português como L2. Essas crianças surdas videntes precisam da soletração digital como base para poder proceder à análise das palavras escritas.

Primeiramente, elas aprendem a converter as letras (ainda não os grafemas) nas correspondentes formas da mão da soletração digital. Subsequentemente, elas aprendem a identificar os dígrafos e os trígrafos e os ditongos e os tritongos. Neste ponto elas começam a identificar os grafemas, que são, para essas pessoas surdas videntes, unidades de escrita que mapeiam unidades de fala visível. Isto possibilita ativar o léxico optolálico, ou seja, o vocabulário de palavras faladas identificáveis por leitura orofacial visual. Finalmente, as pessoas surdas congênitas necessitarão de usar a escrita para evocar os sinais, uma vez que o surdo só será capaz de compreender uma palavra escrita se, antes, convertê-la no sinal correspondente de sua L1. E ele só será capaz de começar a escrever se partir do sinal que representa o que ele quer dizer. Capovilla17,18 explica como se dá a conexão entre o léxico de sinais, tanto o expressivo, que permite evocar o sinal em presença de uma figura; quanto o receptivo, que permite compreender o significado de um sinal, possibilitando escolher dentre figuras em presença de sinais. A presente seção se dedica ao princípio fonotático.

Ensino de escrita a crianças videntes com DA e surdez

A Alfabetização Optolálica ensina a escrever por cifragem de optolalemas em grafemas. Para facilitar esse ensino, Capovilla17,18 mapeou todas as relações entre optolalemas e grafemas da Língua Portuguesa. Esse levantamento descobriu todas as formas de cifrar (i.e., grafar) cada optolalema, e as organizou numa hierarquia que vai das formas mais comuns (as dominantes) às mais raras (as recessivas). Por exemplo, o optolalema {\k\=\g\} pode ser cifrado de dez formas: "c", "g", "qu", "q", "gu", "k", "ck", "ch", "gh", "cqu". Os cinco mais dominantes são: "c", "g", "qu", "q", "gu". Os cinco mais recessivos são: "k", "ck", "ch", "gh", "cqu". Ao errar na escrita, as crianças com deficiência auditiva e as crianças surdas oralizadas quase sempre vão errar nos grafemas que são recessivos (raros) para aquele optolalema. Além disso, elas vão tender a grafar (cifrar) um grafema dominante (comum) no lugar do recessivo. Por exemplo, elas vão tender a escrever trocar "g" por "c" porque, segundo Capovilla e colaboradores, a frequência do grafema "c" é três vezes maior que a do "g" para cifrar o optolalema {\k\=\g\}. Esse levantamento permite prever a probabilidade de erro de escrita (paragrafia) de cada optolalema na escrita sob ditado orofacial visual de qualquer palavra falada do Português.

A explicação para isso é simples: Na escrita sob ditado de uma dada palavra lida orofacialmente por visão, de modo a poder produzir a correspondente palavra escrita, a criança vai convertendo cada optolalema no grafema correspondente. Cada uma dessas conversões tem um Grau de Facilidade de Cifragem da Fala Vista (GFCfv). A média aritmética desses GFCfv constitui o Grau de Facilidade de Escrita da Palavra (GFEP) por Leitura Orofacial Visual (LOV) (i.e., GFEP-LOV) pela rota perilexical (i.e., de cifragem optolalema-grafema) durante a alfabetização. Quando a professora alfabetizadora prepara uma lista de palavras faladas para escrita sob ditado por leitura orofacial visual, ela pode saber exatamente qual é o grau de facilidade de escrita de cada uma delas. Ao corrigir as provas, a professora verá que as crianças videntes com DA e surdez erram mais na escrita das palavras que têm menor GFEP-LOV. Além disso, a professora verá que, dentro de qualquer palavra, as trocas de escrita que as crianças cometem tendem a envolver a troca de um grafema com baixo GFCfv por outro com alto GFCfv. Isso é importante para o ensino da escrita sob ditado orofacial visual, pois as relações optolalema-grafema com menor GFCfv são as que requerem mais atenção.

Ensino de leitura a crianças videntes com DA e surdez

A Alfabetização Optolálica ensina a ler por decifragem de grafemas em optolalemas. O processo é paralelo àquele aqui exposto. Por falta de espaço não poderá ser descrito em detalhes.

 

PANDESB: PROGRAMA DE AVALIAÇÃO NACIONAL DO DESENVOLVIMENTO DO ESCOLAR SURDO BRASILEIRO

Para descobrir sob que circunstância a criança surda aprende mais e melhor, Capovilla e colaboradores17,18,50-55 criaram o Pandesb. Trata-se de um programa de avaliação do desenvolvimento da linguagem oral, escrita e de sinais do escolar surdo brasileiro. O programa foi financiado pelo Observatório da Educação, num consórcio entre a Capes e INEP. Ao longo de 16 anos, de 2001 a 2017, o Pandesb examinou as competências linguísticas e metalinguísticas de 9.200 estudantes surdos brasileiros do 1º ano do ensino fundamental até o ensino superior de 15 estados brasileiros, representando todas as regiões geográficas do Brasil. Cada um dos 9.200 estudantes surdos foi examinado durante 26 horas em diversas baterias de testes estandardizados que avaliam diversas competências, como leitura alfabética e orofacial, compreensão de leitura de textos, vocabulário de escrita e qualidade ortográfica da escrita, vocabulário em Libras, dentre outras. Sub-amostras foram também avaliadas na Prova Brasil adaptada em Libras, na competência de Leitura Orofacial em Português, e no Vocabulário de Leitura Orofacial do Português.

O estudo analisou o desenvolvimento de linguagem em crianças surdas como função das características do estudante, da alocação escolar, e da língua de ensino, tendo como covariantes fatores como o ano escolar e a idade cronológica. O desenvolvimento da linguagem considerou especialmente os escores de decodificação e reconhecimento de palavras, de compreensão de texto, e de vocabulário em Libras. As características do estudante incluíam a idade e o grau de perda auditiva. A alocação escolar comparou as escolas bilíngues especiais com as escolas monolíngues comuns. A língua de ensino comparou o Português apenas com a conjunção entre a Libras e o Português.

Os resultados mostraram que os estudantes surdos aprendem mais e melhor em escolas bilíngues (escolas especiais que ensinam em Libras e Português) do que em escolas monolíngues (escolas comuns que ensinam em Português apenas). De fato, competências como decodificação de palavras e reconhecimento de palavras, compreensão de leitura de textos, vocabulário em Libras, dentre outras, foram significativamente superiores em escolas bilíngues que em escolas comuns.

Mais precisamente, os resultados revelaram uma interação significativa entre tipo de estudante e tipo de escola. A alocação, pelo critério inclusivo, na escola comum, é mais adequada para estudantes com deficiência auditiva, ao passo que a alocação, pelo critério linguístico, na escola bilíngue é mais adequada para a criança surda (i.e., aquela cuja língua materna é a Libras).

Esse mesmo programa de pesquisas revelou o seguinte conjunto de achados:

(1) Estudantes surdos começam adquirindo leitura-escrita no 4o ano (aos 9 anos de idade). Apenas no 4o ano eles começam a exibir, em nível acima do acerto casual, competências decodificação de palavras e reconhecimento visual de palavras.

(2) À medida que os estudantes surdos começam a decodificar e compreender as palavras na escrita alfabética, eles começam a decodificar e compreender a fala por meio de leitura orofacial. Eles começam a decodificar e reconhecer a fala por meio de leitura orofacial apenas quando começam a decodificar e reconhecer a escrita na leitura alfabética. Ou seja, a habilidade de processar as unidades de fala visível para poder compreender a fala por leitura orofacial visual56-58 só emerge com a aquisição da habilidade de processar grafemas como unidades de escrita correspondentes àquelas unidades da fala visível. Ou seja, a criança só consegue fazer leitura orofacial quando faz leitura alfabética. Tais achados corroboram aqueles encontrados com crianças ouvintes do Ensino Infantil, de 3 a 6 anos. De fato, Capovilla e Graton-Santos59,60 revelaram que crianças ouvintes não fazem leitura orofacial até que estejam alfabetizadas.

(3) Os estudantes surdos começam a compreender textos usualmente no 4o ano (aos 9 anos de idade). Eles começam a exibir compreensão de leitura de textos acima do nível do acaso no 4o ano.

(4) À medida que os estudantes surdos começam a compreender textos escritos, eles começam a compreender a fala por leitura orofacial. Eles começam a compreender Português por leitura orofacial apenas quando começam a compreender textos escritos.

Tais dados sugerem que é incorreto impor uma política inclusivista, que remove as crianças surdas de sua escola bilíngue e as realoca em escolas comuns com professores ainda incapazes de compreendê-las e ensiná-las em sua língua.

Os resultados sugerem que a expectativa de que as crianças pré-alfabetizadas possam vir a fazer uso da leitura orofacial para aprender a ler e escrever não é realista, e pode levar ao fracasso dessas crianças.

A leitura orofacial não se desenvolve apartada da alfabetização, a menos que a criança surda receba ajuda profissional especializada intensiva, baseada em métodos comprovadamente eficazes, fora do contexto escolar. De outro modo, antes de estar aptas a fazer leitura orofacial, as crianças surdas terão de adquirir a competência de leitura-escrita alfabética. E os dados desse estudo mostram que elas se alfabetizam mais e melhor em escolas bilíngues especiais, cujo ensino é ministrado em Língua de Sinais Brasileira, do que em escolas comuns. Como essas crianças surdas de escola pública são alfabetizadas mais facilmente em escolas bilíngues do que em escolas comuns, fica claro que a tentativa de removê-las da escola bilíngue antes que possam se alfabetizar seria contraproducente e danosa.

Os dados sugerem que as crianças surdas de escola pública só devem ser alocadas em turno principal de escolas comuns depois que tenham tido a chance de adquirir competência de leitura e escrita em turno principal na escola bilíngue.

A análise dos prontuários desses 5.600 alunos surdos revela que 95% deles nascem em lares ouvintes. São crianças cujos pais desconhecem Libras. Portanto, essas crianças surdas necessitam de escolas bilíngues para que possam aprender Libras. Se elas forem privadas de Libras, de nada adiantará prover intérpretes de Libras (TILS) porque elas simplesmente não terão aprendido Libras o suficiente para compreender esse intérprete. A escola bilíngue constitui uma comunidade linguística sinalizadora, que é o contexto ideal para a criança adquirir Libras. É importante que essa aquisição seja precoce. Estudos de plasticidade neural61 sugerem que, quanto mais cedo ocorrer o acesso a língua de sinais, maior será o desempenho escolar da criança.

Evidência ulterior sugestiva da importância da língua de sinais para a alfabetização e o desempenho de leitura de crianças surdas do ensino fundamental é dada pela Prova Brasil adaptada em Libras, que foi administrada a uma subamostra dos alunos avaliados no Pandesb. A Prova Brasil faz parte da avaliação nacional de leitura em Português destinada a estudantes da 1a série (2o ano). No estudo, a Prova Brasil foi adaptada em Libras, gerando a Prova Brasil em Libras. Ela é composta de 28 itens, cada qual com quatro alternativas. Nesse estudo, ela foi aplicada a alunos surdos do 2o ano (i.e., 7 anos de idade) ao 5o ano (i.e., 10 anos de idade), juntamente com testes de vocabulário em Libras, nomeação de figuras por escrita, compreensão de leitura de sentenças, e decodificação e reconhecimento de palavras. O objetivo era descobrir quais são as competências que mais contribuem para o desempenho de leitura na Prova Brasil em Libras.

Os achados mostram que os escores de leitura aumentaram significativamente, de ano a ano. Os escores de leitura aumentaram do 2o ano (10 pontos) ao 3o ano (15 pontos); do 3o ao 4o ano (19 pontos); e daí para o 5o ano (22 pontos). Como a Prova Brasil em Libras tem 28 itens, com quatro alternativas cada um, a pontuação casual é de 7 acertos. A pontuação se destacou do nível de acerto casual já no 2o ano, e cresceu de ano a ano, até o 5o ano. Isso permitiu normatizar a Prova Brasil em Libras como prova válida para avaliar rendimento escolar de surdos do 2o ao 5o ano. A Prova Brasil em Libras, validada e normatizada para o alunado surdo, torna possível sondar que competências cognitivas poderiam estar relacionadas ao desempenho, de modo a descobrir como melhorar o desempenho na Prova Brasil em Libras, consequentemente, o rendimento escolar dos surdos. A competência que mais contribuiu para o bom desempenho na Prova Brasil em Libras foi o escore em Libras54.

 

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Endereço para correspondência:
Fernando Cesar Capovilla
Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo
Avenida Professor Mello de Morais, 1721 - Butantã - São Paulo, SP, Brasil - CEP 05508-030
E-mail: fernando.capovilla@usp.br

Artigo recebido: 22/5/2020
Aprovado: 25/6/2020

 

 

Trabalho realizado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
Conflito de interesses: O autor declara não haver.
Apoio: Observatório da Educação (Capes-Inep).

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