SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.29 número66Responsividade Reflexiva: um conceito para meios criativos de transformação em práticas colaborativas-dialógicas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.66 São Paulo jan./abr. 2020

 

FRONTEIRAS

 

Processos reflexivos na sala de aula: ampliando perspectivas e incentivando melhores relações

 

Procesos reflexivos en el aula: ampliando perspectivas y fomentando mejores relaciones

 

Reflecting processes in the classroom: broadening perspectives and encouraging better relationships

 

 

Valéria Nicolau PaschoalI

Interfaci, São Paulo/SP, Brasil.

The Taos Institute, Chagrin Falls, Ohio, USA.

 

 


RESUMO

Neste artigo darei ênfase a uma das contribuições de Tom Andersen em meu trabalho: a inclusão dos processos reflexivos no contexto escolar, pela apresentação de uma pesquisa-ação realizada em um colégio particular com professores, alunos e seus pais. Iniciei esta jornada a partir da demanda de uma escola interessada em fornecer possibilidades de ampliação da percepção e descrição que professores tinham de seus alunos – muitas vezes marcadas por denotações negativas e depreciativas. A perspectiva do construcionismo social, a filosofia colaborativa e a proposta dos processos reflexivos nortearam a construção deste estudo, cujo objetivo foi a criação de um espaço de conversação dialógica para a promoção de melhores relações entre professores-alunos e alunos-alunos. A aplicação desse modelo na sala de aula mostrou-se viável e útil na construção de um ambiente de convivência mais harmonioso, capaz de gerar questionamentos e possibilidades, dando visibilidade a aspectos de vida dos participantes que não eram percebidos por eles antes desta experiência.

Palavras-chave: Processos reflexivos; Escola; Educação; Relacionamento professor-aluno; Práticas colaborativo-dialógicas.


RESUMEN

En este artículo enfatizaré una de las contribuciones de Tom Andersen en mi trabajo: la inclusión de procesos reflexivos en el contexto escolar, al presentar una investigación-acción realizada en una escuela privada con maestros, estudiantes y sus padres. Comencé este esta jornada a partir de la demanda de una escuela interesada en proporcionar posibilidades para expandir la percepción y la descripción que los maestros tenían de sus alumnos, a menudo marcada por denotaciones negativas y despectivas. La perspectiva del construccionismo social, la filosofía colaborativa y la propuesta de procesos reflexivos guiaron la construcción de este estudio, cuyo objetivo era crear un espacio de conversación dialógica para promover mejores relaciones entre profesores-alumnos y alumnos-alumnos. La aplicación de este modelo en el aula demostró ser viable y útil en la construcción de un entorno de vida más armonioso capaz de generar preguntas y posibilidades, dando visibilidad a los aspectos de la vida de los participantes que no eran percibidos por ellos antes de esta experiencia.

Palabras clave: Procesos reflexivos; Escuela; Educación; Relación profesor-alumno; Prácticas colaborativas-dialógicas.


ABSTRACT

In this article, I will focus on a Tom Andersen’s contribution in my work including the reflecting processes in a school context, presenting a research-action conducted in a private school in Sao Paulo with teachers, students and their parents. I started this journey based on the demand of a school which was interested in providing the possibilities to broaden perception and characterization that the teachers had about their students – on which many times were marked by negative and depreciative denotations. The perspective of the social construction, the collaborative philosophy and the purpose of the reflecting processes were the base of this study with an objective to create a space for dialogic conversations that would enable the improvement of relationships between teachers-students and students-students. The application of this model in the classroom was proved to be viable and useful to create a friendly context to generate questions and possibilities, giving visibility to aspects of the participants’ life that weren’t noticed by them before going through this experience.

Key Words: Reflecting processes; School; Education; Relationship between teacher and student; Collaborative-dialogic practices.


 

 

Introdução

O trabalho com processos reflexivos tem sido frequente na minha prática clínica, principalmente no atendimento a casais – na construção de um olhar mais apreciativo do parceiro (Paschoal, Leão, & Reis, 2017) – e a crianças e seus familiares. Desde o meu primeiro contato com esta forma de organizar a conversação, durante minha formação em terapia de família e casal, chamaram minha atenção seus efeitos gerados nas pessoas envolvidas. Muitas vezes, os clientes relatam que esse formato conversacional facilita que eles ouçam e percebam aspectos de vida de si mesmos e dos outros (cônjuge, filhos, pais, irmãos) que não eram percebidos por eles em outros momentos. Entendo essa forma de trabalho como um excelente recurso de reflexão e uma oportunidade para os participantes entrarem em contato com o que há de mais genuíno na história de cada um dos envolvidos e menos conhecido, ampliando perspectivas e possibilidades.

A utilização de processos reflexivos não é restrita ao ambiente terapêutico e diversos autores estão difundindo esta prática em espaços diversificados. Os formatos aplicáveis são infinitos, a depender da criatividade de cada um (Andersen, 2005). Essa consideração me motivou a levar tal prática para um colégio particular de um município da Grande São Paulo, após escutar atentamente a demanda da mantenedora da instituição. Havia um pedido para que eu fizesse alguma atividade capaz de estimular um maior envolvimento pessoal de professores do Ensino Fundamental I (1o ao 5o ano) com seus alunos, possibilitando uma ampliação do olhar dos primeiros sobre os últimos.

A mantenedora encontrava-se numa difícil situação entre acolher os alunos e ouvir o que os professores tinham a dizer sobre eles, pois geralmente eram falas carregadas de denotações negativas e depreciativas – focadas em falhas e em diagnósticos de patologias –, reforçadas por um discurso individualista prevalecente na nossa sociedade. Tal maneira de perceber os alunos era entendida pela mantenedora como algo que os rotulava e marcava a forma de interação dos professores com os alunos, reforçando o que denominamos de uma identidade única das crianças.

Sob o enfoque pós-moderno com ênfase nos processos linguísticos, identidade é entendida como uma narrativa em andamento, produzida pelas descrições sobre o self nas interações com outros significativos na vida das pessoas (Anderson, 2011; Gergen, 1992). No contexto escolar, assim como em outros contextos, as identidades construídas das crianças podem marcar o relacionamento com outras pessoas em função dos estereótipos e ideias que se constroem sobre quem sou eu e quem é o outro, como, por exemplo: colegas e professores dirigirem-se a um(a) aluno(a) como “o disléxico”, “a distraída” entre outros rótulos que trazem a força de uma história dominante, emoldurando a forma de interação com o(a) aluno(a).

As tradições individualistas são limitadas, segundo McNamee (2001), pois apresentam apenas uma versão, entre muitas possíveis, ao considerarem o self como o único responsável pelo pensamento e ação do indivíduo, separando-o de seu meio, gerando um sentimento de independência e isolamento, alimentando a competitividade. Dessa forma, o sentido de comunidade e civilidade torna-se enfraquecido na medida em que nossa atenção se volta para aquilo que acontece no interior das pessoas, sem darmos importância ao coletivo.

Sob outra perspectiva, o discurso relacional contempla o self e o mundo como construções conjuntas, em que o significado surge pelo relacionamento. Ao entendermos os problemas como relacionais, nos colocamos como responsáveis e atuantes numa esfera macrossocial, voltando nossa atenção para o que ocorre entre as pessoas. Anderson e Goolishian (2007) afirmam que nosso self está sempre em mudança, colocando bastante ênfase no papel da linguagem, da conversação e da história. Para os autores, o desenvolvimento de novas narrativas traz novos entendimentos e significados e a possibilidade de agir de um outro modo, conduzindo a novos futuros. A responsabilização individual pode ser uma atitude perturbadora e preconceituosa, prejudicando também o entendimento que crianças têm de si mesmas em termos de autoestima e assertividade.

Como uma alternativa ao discurso individualista, penso que os processos reflexivos podem ser úteis na criação de espaços propícios para dar voz a alunos e professores em escolas. Ao promover oportunidades de reflexão, a inserção nestes espaços pode contribuir para a desconstrução de histórias dominantes e rótulos, oferecendo uma outra condição de relacionamento. Dessa forma, convidei professores e alunos para algumas conversas organizadas por processos reflexivos. Com esses espaços, o surgimento de novas construções de identidades e o respeito às individualidades podem se fazer possíveis, colaborando para a formação de cidadãos mais preparados para a vida.

 

Desenhando uma Pesquisa e uma Intervenção Escolar

A partir da demanda recebida, realizei uma intervenção nesta escola, que se configurou em minha pesquisa de mestrado (Paschoal, 2016). A perspectiva do construcionismo social, a filosofia colaborativa e a proposta dos processos reflexivos nortearam a construção desta pesquisa-ação (Tripp, 2005), cujo objetivo foi criar um espaço de conversação dialógica para a promoção de melhores relações entre professores-alunos e alunos-alunos.

O processo foi sendo construído tendo em vista a necessidade local e os objetivos da educação para o século XXI promulgados pela UNESCO (Delors et al., 1996), que aponta a necessidade de o currículo escolar contemplar disciplinas envolvendo os quatro pilares fundamentais da educação: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver juntos; e aprender a ser. Essas quatro aprendizagens estão interligadas e precisam estar inseridas nos programas das escolas, incluindo o desenvolvimento de competências psicossociais consideradas essenciais para o desenvolvimento humano.

Inspirada pelos pensamentos de Anderson (2007), parti de um questionamento inicial para o trabalho em escola, que foi sendo transformado ao longo da pesquisa: Como posso convidar professores e alunos à colaboração? Como posso criar tipos de relações e conversações que permitam a todos o reconhecimento mútuo, o conhecimento de habilidades próprias e a ampliação do olhar sobre si e sobre o outro para o desenvolvimento de novas possibilidades de futuro? Ao ampliarmos a visão de educação e do aprendizado – entendida tradicionalmente como uma transmissão de saber e um processo individual e interno – para um processo conversacional entre pessoas, em que significados são construídos nas suas relações, novas atitudes tornam-se essenciais, como uma prática reflexiva constante. Dessa maneira, esse trabalho em escolas pode contribuir para a formação de cidadãos autônomos, criativos e mais preparados para lidar com um mundo pós-moderno cheio de incertezas.

 

Convivendo e compreendendo com os outros

Com a intenção de trazer novas práticas para o cotidiano escolar, valorizando a relação professor-aluno e o aprender a ser e a conviver (UNESCO, 2016), realizei alguns procedimentos que envolveram o planejamento de ações a serem desenvolvidas. Primeiramente me encontrei com a mantenedora duas vezes para um entendimento da demanda. Em seguida, fizemos uma roda de conversa com os professores para seleção dos participantes; e uma reunião com os pais para apresentação da proposta e assinatura de um termo de consentimento autorizando a participação de seus filhos. Então, marcamos os encontros com professores e alunos no formato de equipe reflexiva, buscando responder às necessidades locais.

Criamos um espaço de conversação para que alunos e professores pudessem construir novas e melhores formas de se relacionar. Nesse contexto grupal, as crianças foram estimuladas a interagirem entre si durante atividades com foco no autoconhecimento e relacionamento interpessoal, enquanto seus professores participaram vendo e ouvindo atentamente, propiciando o surgimento de processos reflexivos (Andersen, 2002). Nomeei esses encontros de “Oficinas de Autoconhecimento”, por ser um tema conhecido e que pudesse gerar uma aceitação maior por parte dos participantes da pesquisa, trazendo linguagem e tema comuns aos pais, responsáveis e professores.

Entendo que um trabalho com ênfase no processo de reflexão pode ser um ponto de início produtivo para o desenvolvimento de novas relações em escolas no sentido de promovermos uma mudança na perspectiva de professores quanto ao seu papel na educação de crianças. Para abordar essas questões de uma perspectiva dialógica e relacional, procurei construir um espaço colaborativo em que a curiosidade dos professores sobre seus alunos pudesse ser despertada, e que estes não compreendessem rapidamente as inquietações, comportamentos, atitudes e outros acontecimentos de crianças – que muitas vezes poderiam ser vistos pelas lentes de uma verdade absoluta, história dominante ou categoria diagnóstica –, trazendo, assim, a possibilidade de novas percepções, descrições e ações. Isto é, um espaço onde os professores não ficassem presos aos rótulos pré-estabelecidos.

Incentivar posturas relacionalmente responsáveis e intervenções mais dialógicas entre professores e alunos e entre alunos e alunos também foi um dos propósitos das oficinas de autoconhecimento, para que as ações de todos pudessem ser mais responsivas. Dando início a uma nova empreitada colaborativa e reflexiva em escolas, pretendi criar este tipo de espaço com potencial generativo e transformador dos olhares para o cotidiano e as relações escolares, trabalhando para que a posição e postura de “não saber” (Anderson & Goolishian, 2007) estivessem vivas em todos nós (pesquisadora e participantes). Esta forma mais aberta de trabalhar inerente aos processos reflexivos tem fortes efeitos na linguagem utilizada pelos participantes, propiciando conversas com menos conotações negativas (Andersen, 2002). As palavras e significados influenciam e produzem efeitos nas pessoas. Assim, este trabalho também lança foco na construção de explicações e descrições que sejam mais úteis para as pessoas que ouvem e falam.

 

Convidando professores e alunos à colaboração e à reflexão

Todos os alunos do Ensino Fundamental I matriculados no período integral da escola participante foram convidados para as oficinas. Marcamos uma reunião com os pais e/ou responsáveis desses alunos e todos os que estiveram presentes autorizaram a participação dos filhos, totalizando 10 crianças entre sete e dez anos de idade, cursando do 1o ao 4o ano do EF I. As professoras dos alunos que foram autorizados a participar também foram convidadas. Desta maneira, 7 professoras (todas do sexo feminino) do 1o ao 4o ano aceitaram o convite.

Com o intuito de preparar as professoras para a experiência de alternância de posições entre escutar e falar (processos reflexivos) no encontro com os alunos, encontrei-me com elas uma semana antes do início das oficinas de autoconhecimento. Para favorecer a construção do lugar de escuta de seus alunos durante as Oficinas, escolhi realizar uma atividade semelhante ao “exercício de relações bem-sucedidas” de London (2012), incentivando conversas sobre professores significativos na vida de cada professora.

Pretendi, dessa maneira, facilitar que estabelecessem as qualidades valorizadas por cada uma, do que é ser um bom professor, conectando com seus próprios recursos, para que no encontro seguinte – durante as oficinas de autoconhecimento com os alunos –, elas pudessem identificar-se com esse professor significativo e reposicionarem-se frente a seus alunos, ao escutá-los como este professor os escutariam.

Nesse momento, vieram à lembrança momentos dolorosos de algumas professoras da época em que eram estudantes e partimos para uma conversa a respeito da importância da postura do educador na formação da identidade das crianças. Convidei-as novamente para se conectarem com histórias de relações bem-sucedidas com professores (histórias de quando eram crianças ou mais recentes) para construirmos – juntas – o lugar da escuta, pela narração de histórias em que apareceram os êxitos e os elementos que possibilitaram tal interação. Em duplas, as professoras desenvolveram um diálogo enfocando relações agradáveis que tiveram com seus professores.

Após essa atividade em pares, construímos juntas uma descrição de um professor capaz de manter relações bem-sucedidas com seus alunos, segundo a experiência das professoras. Elas elaboraram um cartaz com as qualidades que admiram em um professor, com desenhos e palavras como: doce, atenciosa, determinada, guerreira, abençoada, iluminada, olhos iluminados, algodão (alusão ao toque macio), e amor.Essa construção conjunta foi útil para que as professoras pudessem assumir a posição deste professor ideal construído a partir das histórias narradas, mantendo atitudes e qualidades valorizadas no encontro subsequente com os alunos.

Uma semana depois, demos início às oficinas de autoconhecimento, que ocorreram em três encontros de uma hora, com cada um dos dois grupos: Grupo A – 5 alunos do 3o e 4o anos e 4 professoras; Grupo B – 5 alunos do 1o e 2o anos e 5 professoras. Os grupos foram divididos para preservarmos um lugar de fala para cada criança e professora, além de facilitar a participação das últimas, já que elas se alternavam entre os encontros e suas atividades curriculares. Juntamente com a equipe escolar, decidimos realizar três oficinas para totalizar um mês de trabalho com os alunos e levantar informações suficientes para minha pesquisa.

 

Oficinas de autoconhecimento

As atividades em grupo para as oficinas de autoconhecimento com as crianças foram escolhidas visando à possibilidade de estas colocarem em linguagem suas experiências vividas, bem como sentimentos e autodescrições. Na primeira oficina, realizamos uma atividade com bexigas, que explico a seguir. No segundo encontro, fizemos uma brincadeira em que cada criança teria que se apresentar utilizando algum objeto que estava no centro da sala. Já na terceira e última oficina, construímos uma história sobre as diferentes formas de uso da linguagem, estimulando um olhar apreciativo para as pessoas e situações, por meio da metáfora de autor desconhecido: “Mosca ou abelha? Quem somos nós?” (Paschoal, Leão, & Reis, 2014). Tais atividades foram realizadas na presença das professoras, que compuseram uma equipe reflexiva (Andersen, 2002), oferecendo uma escuta atenta e, num segundo momento, contaram algumas ressonâncias e reflexões feitas durante os relatos dos alunos. Os momentos das oficinas estão ilustrados na Figura 1:

 

Figura 1. Momentos da Oficina 1 com os Grupos A e B

1. Crianças na posição de fala – o contar (Grupo A)

2. Professoras na posição de fala – o recontar (Grupo B)

3. Crianças na posição de fala – o recontar do recontar (Grupo B)

4. Vozes de todos os participantes – feedback, apreciação e ajustes (Grupo A)

 

Para a realização das oficinas, organizamos a conversação dos alunos e professoras pela troca de posições entre falar e escutar proposta por Andersen (2002), de tal forma que:

  1. o contar representou as atividades realizadas com as crianças enquanto as professoras escutavam e observavam atentamente (vozes das crianças);
  2. o recontar referiu-se ao momento em que as professoras narraram as reflexões que tiveram durante a posição de escuta, trazendo uma associação às suas histórias pessoais que tiveram ressonância com o que viram e ouviram, ao serem questionadas sobre como foram tocadas em suas vidas (vozes das professoras);
  3. o recontar do recontar foi uma oportunidade para que as crianças contassem como foi para elas ouvirem as reflexões das professoras (vozes das crianças).
  4. finalizávamos o encontro com uma etapa para feedback, apreciação e ajustes, em que todos os participantes eram dispostos em círculo para expor seus sentimentos, reflexões sobre a experiência vivida, expectativas e sugestões.

O meu trabalho, enquanto pesquisadora e coordenadora deste processo, foi de cuidar para que se criasse um clima de respeito entre todos, e que as professoras – durante a posição de fala – fizessem comentários de maneira cuidadosa e respeitosa, em primeira pessoa, e sem interpretações. Durante a realização das oficinas, mantive meu foco no processo relacional, numa postura de estar com os outros, valorizando seus saberes locais, aprendendo e ensinando mutuamente.

 

Momentos marcantes da primeira oficina

As três oficinas realizadas seguiram a mesma sequência com diferentes atividades, em que busquei incorporar os feedbacks e fazer mudanças quando necessário. Inicialmente, eu estava um pouco insegura de como se dariam os processos reflexivos, e preocupada com o compromisso de que aquela experiência fosse útil para as crianças e os adultos. Contudo, quando as professoras começaram a verbalizar as conversas internas que tiveram ao ver e ouvir as crianças já na primeira oficina, uma forte emoção tomou conta da sala de aula e eu pude ver, ouvir e sentir o propósito dos processos reflexivos. Emoção semelhante ocorreu nos outros encontros mas, para ilustrar o processo, escolhi detalhar um pouco sobre a primeira oficina realizada (tanto com o Grupo A, quanto com o Grupo B), pois foram momentos que me tocaram profundamente pela resposta positiva dos participantes ao primeiro contato com esta forma de trabalho.

A atividade escolhida para trabalhar com as crianças nesse primeiro encontro foi estourar bexigas que continham frases para as crianças lerem e responderem. As frases dentro das bexigas eram: Eu gosto de.../ Minha comida predileta é.../ Me irrito quando.../ Fico alegre.../ Eu sou capaz de.../ Minha característica mais positiva é.../ Eu sou um sucesso quando.../ Fico triste quando.../. Os participantes dessa equipe (professoras) receberam a orientação para observarem e escutarem atentamente as conversas e atividades com os alunos.

As crianças começaram uma conversa sobre aspectos valorizados de si e elementos que contribuem para o surgimento de diversos sentimentos.A convivência em família foi bastante enfatizada no Grupo A, enquanto que, no Grupo B, a forma de interação entre as crianças chamou bastante atenção das professoras, convidando para uma responsabilização conjunta dos acontecimentos e um comprometimento com a mudança desejada. A seguir, reproduzo as vozes das crianças durante o recontar da Oficina 1 (Grupos A e B):

Quando dá um problema com minhas amigas, a gente briga... e eu fico magoada, triste, triste, triste... (Aluna 1 – Grupo A)

Não fico muito triste não... tenho felicidade! Quando brinco com minha família... Quando todo mundo entra na piscina. (Aluno 3 – Grupo A)

Eu fico triste quando ninguém brinca comigo. (Aluno 7 – Grupo B)

Eu sou capaz de defender a bola... de andar de skate... é, um monte de coisa... (Aluno 9 – Grupo B)

Após a atividade com os alunos (sistema participante), pedi para que eles fizessem uma pausa para escutarem as reflexões das professoras.As professoras então iniciaram um processo reflexivo, compartilhando brevemente algumas ideias, observações e perguntas sobre o que observaram e escutaram:

Eu percebi que o mais importante é a família, porque em todas as questões eles abordaram a família. Faz a gente refletir do quanto é importante a união, estar junto com a família. (Professora 4 – Grupo A)

Achei legal porque a A1 citou o que realmente acontece, que o que a deixa mais triste é brigar com as amigas... acho que eu vi que realmente é algo que a deixa triste, ela tava brigando demais com os colegas, então o convívio com os colegas também é importante, saber lidar com as diferenças. (Professora 1 – Grupo A)

Olha, eu percebi que não tem muita paciência, esperar o outro pra falar... será que a gente não precisa ter mais paciência com o aluno também? Coloquei assim pra gente refletir, de ter mais paciência, principalmente com aqueles alunos com mais dificuldades. (Professora 6 – Grupo B)

Eu acho que a concentração é fundamental, tanto pra gente quanto pra eles. Então, às vezes, será que eu não sou um pouquinho de cada um na sala de aula? Será que na sala de aula eu deixo todos os meus alunos falar? Escutar cada um? Eu sei que às vezes o tempo é curto da gente, a gente entra num assunto e a aula vai, você tem que prosseguir... e você acaba não deixando alguns alunos falar, mas (...) eu tenho que ter meu limite e eles também tem que ter o limite deles, de respeitar o outro... será que eu tô respeitando o meu aluno? ‘Não respeitou o seu amigo falar, entrou na frente para falar...’, será que eu não faço isso também em sala de aula? Acho que eu também preciso ter mais paciência, mais limite, respeitar o próximo... (Professora 1 – Grupo B)

Após as falas espontâneas de cada professora, perguntei se algo as havia surpreendido, se elas puderam ver, ouvir e/ou conhecer elementos novos que não estavam esperando. Também fiz uma investigação a respeito de como elas foram tocadas em suas próprias vidas ao ouvir as crianças. Muitas ressonâncias pessoais foram relatadas nesse momento do recontar:

Ver o que eles falam e trazer pra mim... o fato de fazer pequenos gestos. Às vezes a gente chega estressada: ‘ah não, não quero conversar com você agora’. Se a criança tá brincando, ficamos explosivos... quando na verdade o que eles realmente querem é um abraço, você chegar um pouquinho pra brincar. Muitas vezes por causa da correria a gente não ouve, acaba passando despercebido. (Professora 2 – Grupo A).

Eu acho que a vida da gente tá tão corrida, a gente acaba atropelando tanto, por estar passando tão rápido. Será que a gente não tá fazendo isso dentro da sala de aula também? Devido a esse tempo que tudo é cobrado? ...será que não tá na hora de a gente dar uma parada, pensar melhor ao invés de correr, ver o que é melhor pra eles? Vamos apertar aí o freio, deixar um pouco o tempo da criança... nós temos que refletir melhor. (Professora 6 – Grupo B)

Então a gente vai se policiando... coisas simples precisam acontecer pra que a gente reflita de fato... pensar numa estratégia pra ser diferente... não significa que a gente não vai errar, porque a gente erra o tempo inteiro... mas vamos fazer o melhor! (Professora 5 – Grupo B)

Eu acho que eu tenho que ser mais paciente, ou até respeitar mais, às vezes a gente quer cobrar muito, mas será que eu sou assim? Será que eu faço isso? Será que eu sei lidar com a diversidade que existe na minha família? Isso serve pra eu pensar também. (Professora 1 – Grupo B)

Criamos, assim, um ambiente acolhedor para a observação do que havia de melhor em quem falou, e oferecer vozes de apreciação com efeitos tocantes.Num terceiro momento, perguntei para as crianças como foi para elas escutarem todas essas reflexões das professoras e um clima de apreciação, reconhecimento e emoção foi gerado durante o recontar do recontar:

Que todas amam a gente. Legal, fiquei alegre que elas pensam isso de nós. Quando elas falaram, eu senti alegria nelas! (Aluna 2 – Grupo A)

E elas brigam com a gente pro nosso bem! (Aluna 1 – Grupo A)

Foi bom. Elas gostam da gente. (Aluno 3 – Grupo A)

Foi um pouco difícil ouvir, porque dá uma vontade de falar e também eu fiquei com um pouco de medo, porque o que elas falaram aqui talvez elas fazem na sala um pouco diferente... porque tem algumas pessoas que pode bagunçar e elas esquecerem do que elas falaram aqui... Vai, eu tô na sala, eu fico com a diretora, a tia, aí quando alguém faz uma bagunça, daí ela [professora] esquece o que ela disse aqui, daí ela precisa falar com o aluno, só que se ele fizer de novo, ela tem que gritar... ela não pode esquecer o que ela falou aqui... que tem que respeitar cada um. ... E que ela não pode gastar muito a voz dela, falar alto assim... gritar com o outro aluno. (Aluno 4 – Grupo B)

E a gente também tem que respeitar quando elas estão falando... Porque elas respeitam a gente quando a gente tá falando com nosso outro amigo ... E sabe o que é bom? Porque o que a gente falou aqui, tem que ser feito na sala de aula. Eu vou tentar! (Aluno 4 – Grupo B)

Legal. Senti alegria! Elas não podem esquecer de falar bom dia, dar um beijo, essas coisas... Eu gosto que elas falam muito, e passam alegria pra gente. (Aluno 9 – Grupo B)

Para finalizar esta oficina, fizemos uma rodada com todos os participantes dispostos em círculo, em que cada um foi completando a frase: “uma coisa que aprendi hoje foi...”, o que consistiu na etapa de feedback e apreciação:

Eu aprendi que às vezes a gente fica tão bravo porque acontece isso, aquilo, mas a gente vê o quanto as professoras se importam com a gente. (Aluna 1 – Grupo A).

O que eu aprendi, é que as professoras se importam com a gente e que agora eu sei um pouco mais delas. (Aluna 2 – Grupo A)

Eu também quero agradecer esse momento, começando agora com eles, muito bom mesmo, porque é uma forma de você parar pra observar e você acaba vendo além do que os seus olhos naturais estão enxergando. Às vezes o fato de você sentar, conversar com um, com outro... você vê a criança de uma forma e quando você senta pra conversar com ela, compartilhar alguma coisa, você entende o que acontece na casa, você nota que é totalmente diferente daquilo que você via, isso foi muito importante pra mim. (Professora 2 – Grupo A)

Eu também tô muito agradecida, porque esse pouquinho que eu tive com eles já me abriu a mente, já começo a pensar de outra forma, foi muito bom e espero que os próximos sejam melhores ainda. (Professora 4 – Grupo A)

Pra gente ter respeito com os outros porque se a gente deixar eles falar, vai que as coisas deles é melhor do que a nossa... (Aluno 4 – Grupo B)

Eu aprendi hoje aqui a ter mais paciência com os meus alunos e na minha casa também, porque eu acho que se a gente tiver paciência, nós vamos respeitar sempre o outro. (Professora 1 – Grupo B)

Hoje eu aprendi duas palavrinhas: a paciência e a atenção. Ter mais paciência e atenção com os meus alunos. (Professora 6 – Grupo B)

Eu adorei, a tia aprendeu a ter mais paciência e ouvir mais! E eu também vou levar isso lá pra minha casa, com minha filha, marido, meu pai com minha mãe... (Professora 5 – Grupo B)

Eu percebi que eu preciso ser mais paciente, preciso ter muito mais compreensão e que cada criança, independente se é da mesma turma, se tem a mesma idade, tem as suas diferenças, tem a sua identidade, tem o seu limite... e eu preciso levar isso. (Professora 7 – Grupo B)

Essa forma de trabalho permitiu o surgimento da pluralidade de vozes e visões de mundo. A cada oficina realizada, novas reflexões e entendimentos se faziam presentes.

 

Aproximando família e escola

Ao serem comunicados sobre o término das oficinas, alguns alunos demonstraram o desejo de envolverem-se em mais atividades. Planejei, então, um encontro com todos os alunos participantes para realizarem alguma produção artística (desenho, música, texto, poesia, dobradura ou outros) que representasse o que eles gostaram e/ou aprenderam nas oficinas.

A última etapa da intervenção foi a abertura de um espaço de conversa com todos os participantes, incluindo os pais e/ou responsáveis para esclarecer como ocorreram as atividades e também ouvir como eles perceberam o processo com seus filhos. Esse encontro teve o propósito de tornar público aspectos percebidos pelos alunos e professoras, em decorrência da participação. Os participantes contaram sobre a experiência, seguida de um recontar dos pais e/ou responsáveis. Todas as crianças e seus familiares estavam presentes. Pedi para que as crianças se juntassem comigo num círculo no centro da sala de aula para falarem o que gostaram e aprenderam nas Oficinas, e/ou algo que quisessem falar para os pais e professoras ouvirem naquele momento:

Eu aprendi que tem que valorizar mais a família, tem que ouvir quando o outro fala e que eu amo muito a minha mãe. Também que não pode brigar, não pode bater no amigo. (Aluna 2)

Eu aprendi a ter paciência. (Aluna 8)

Eu aprendi a respeitar a diferença dos outros e eu quero dizer que eu gosto muito da minha família! (Aluno 4)

Continuamos com as vozes das professoras, que contaram um pouco sobre o que significou participar das Oficinas e os momentos marcantes para cada uma, e a apresentação das produções artísticas feitas pelas crianças:

Eles não falaram só da família, eles falaram do professor também, de chegar... ‘a gente queria um boa tarde’, sabe? Um bom dia da professora, um abraço, um beijo... então a gente vê que eles queriam tão pouco e a gente não conseguia perceber. Às vezes a gente chega, já vai dar nossa aula... Então foi assim, nas coisas tão pequenas que eles demonstraram essa falta que eles têm, sabe? Eu acho que a gente precisa olhar mais. Olhar bem fundo mesmo nos olhos dos nossos filhos, das nossas crianças, pra abraçar, pra beijar... pegar o filho na escola: ‘oi filho, como foi hoje?’ ... Aqueles cinco minutos que você tira com o seu filho pra perguntar como foi o dia dele, ele já vai se sentir uma outra criança e isso eu tenho certeza... (Professora 1)

Esse tempo que eu convivi com eles foi muito bom, as crianças são maravilhosas, elas ensinaram bastante coisa pra gente, ao olhar pra eles de uma maneira diferente, a respeitar o tempinho deles, porque às vezes a gente acha que eles vão além, mas às vezes não é a hora, né? E uma coisa importante também foi a fala deles, que às vezes eles não querem nem um brinquedo muito caro, às vezes um docinho, alguma coisa, pra eles já faz uma diferença enorme! (Professora 4)

Eu aprendi a respeitar o tempo deles, ter paciência com cada um, não querer tumultuar, correr, e assim... eles falaram muito na parte da família, respeitar uns aos outros, eu achei muito interessante isso. E teve uma história da abelhinha e da mosquinha, que a mosquinha gosta de palavras ruins, negativas, e a abelhinha gosta de palavras boas, doces e isso foi bom pra eles verem quando brigam com o amiguinho, quando falam... como o outro vai se sentir, e eles fizeram muito isso e todos disseram que, a partir daquele dia, todos iam ser abelhinhas! (Professora 6)

Foi uma reflexão das atitudes deles e foi muito gostoso, eu gostei muito. Deu pra aprender bastante... às vezes acontece alguma coisa, a gente não tá bem e não vem bem pra escola, às vezes eles também, né, aconteceu alguma coisa em casa... então a gente tem que ter um olhar, ficar atento... (Professora 3)

Foi uma experiência de aprendizado de ambas as partes, porque todos os dias a gente aprende com eles. E aqui foi empregado os valores mesmo, toda essa questão do respeito, paciência, igualdade, tudo isso essas crianças têm... quanta riqueza, quanta coisa boa, e que muitas vezes passa despercebido aos olhos do professor, aos olhos dos pais... porque a vida da gente é muito corrida, e de repente quando as relações acontecem, a gente tem a oportunidade de valorizar o filho, o aluno, reconhecer essa criança como única, que ela tem o tempo dela, que ela vai chegar lá... e os meus olhinhos agora, brilhando... a gente se emociona! (Professora 5)

Em seguida, dei oportunidade para cada familiar, assim como para a mantenedora, dizerem como foi ver e ouvir as crianças e as professoras nesse encontro:

Os professores verem os nossos filhos realmente como seres humanos. ... Pra mim, tá sendo uma experiência muito boa essa união, porque eles vão ter mais confiança no professor e o professor também vai saber melhor e entender o aluno. (Mãe de A2)

Meu pequeno ali, sempre foi uma criança ativa, brincalhona, mas ele também é uma criança muito temperamental, né, e... eu sou uma pessoa muito geniosa, tô mudando, até mesmo vendo isso dele. O meu dia também é difícil, eu não tenho tempo... E hoje a gente pode ver, presenciando isso... porque uma coisa é você falar daquilo que você ouviu dizer... e hoje a gente tá vendo, tá vivenciando a importância de dez minutos que você tem com o seu filho, com a sua família e eu queria agradecer porque eu aprendi muito, tô aprendendo... (Pai de A8)

O A8 era muito egoísta... então era só ele e depois que ele começou, conversou com a senhora [Valéria] desde o primeiro dia, ele chegou todo feliz contando, nisso ele já mudou nitidamente, entendeu? (Mãe de A8)

Eu não participei das reuniões, porque era com as professoras e com as crianças, mas a mudança foi perceptível. ... A gente fica emocionada sim, porque é um sonho sonhado junto com a gente, sabe? É um sonho de educação, mas com amor, aonde a gente mostrasse a diferença, mostrasse que a educação é muito mais... é muito mais que uma sala de aula. Eu tô muito feliz de ter ouvido aqui, de saber que a gente faz a diferença na vida dessas pessoas, é isso, e eu sempre sonhei isso. (Mantenedora)

Finalizamos o encontro com a entrega de certificados aos participantes e encontrei-me mais duas vezes com as professoras para um entendimento das repercussões da prática realizada no contexto escolar.

 

Alguns Efeitos Gerados pela Participação em um Contexto Conversacional de Base Reflexiva, Dialógica e Colaborativa no Ambiente Escolar

A criação de um espaço colaborativo de conversação, organizado pelos processos reflexivos (Andersen, 2002) com a participação da equipe escolar, professores, alunos e seus pais e familiares, permitiu o aprendizado mútuo e a constante revisão de significados pré-existentes, ao dar visibilidade a aspectos de vida que permaneceriam na obscuridade caso não tivessem passado por este processo. Esse formato facilitou o surgimento de novas vozes e novos olhares, em que professores e alunos alternavam-se entre as posições de fala e de escuta, numa horizontalidade.

O contexto organizado dessa forma revelou seu aspecto generativo, capaz de trazer à tona aspectos que antes não eram percebidos, favorecendo a construção de novos significados às experiências e ao seguimento do diálogo. Lembrando que McNamee (2007) considera a educação como um processo conversacional em movimento – em que o conhecimento é construído socialmente (e não transmitido) a partir das relações –, a participação nas oficinas também pôde gerar e motivar outras formas de aprendizado.

Esta prática realizada no contexto escolar foi capaz de abranger alguns aspectos dos dois pilares representantes da função socializadora da escola: aprender a viver juntos e aprender a ser. Os participantes perceberam que puderam desenvolver e fortalecer algumas habilidades e valores para a convivência, reforçando a importância do trabalho no bom convívio entre professor-aluno e aluno-aluno. A responsabilidade foi entendida como sendo compartilhada; o foco não estava mais no indivíduo, mas na relação. Alunos e professoras envolveram-se num processo de corresponsabilização e comprometimento para uma melhor convivência entre todos, construindo coletivamente a necessidade de serem ouvidos, respeitados e valorizados.

As descrições de si mesmo, dos outros e das relações puderam ser ampliadas, uma vez que as explicações não estavam mais focadas no discurso do déficit, mas num movimento de saber com o outro. Incentivar que as professoras focassem em aspectos considerados positivos de seus alunos – para não justificarem o baixo rendimento pelo seu núcleo interno (um self estático), sem possibilidade de mudança – foi um caminho na direção da ampliação das possibilidades de descrição dos últimos pelas primeiras. Assim, foram geradas conversações em busca por outros selves preferidos.

Estimuladas pela posição de não saber (Anderson & Goolishian, 2007) e curiosidade em aprender com os alunos – no sentido de entender de uma outra maneira, que não seria possível caso não houvesse uma disposição das professoras para a prática de uma escuta genuína, orientada para o mundo particular das crianças –, as Oficinas forneceram a abertura de outras possibilidades. Nesse processo, foi percebida a importância de um relacionamento cuidadoso e amoroso com as crianças, numa atitude de saber com as mesmas ao invés de um saber sobre elas, possibilitando que se abrisse mão de explicações prévias, como rótulos ou diagnósticos, quando estas não eram úteis.

O trabalho realizado em todas as suas fases foi percebido pelos alunos e professoras como um momento prazeroso, uma oportunidade para desabafar e cuidar de si. As professoras puderam revisitar suas histórias, ressignificar experiências e ainda rever o papel de professor na atualidade. Foucault (2004) aponta para a necessidade de cuidar de si para envolver-se em relações eticamente responsáveis com os outros. Dessa maneira, o ofício do professor deveria também implicar momentos de cuidado pessoal – como os vividos nessa experiência pelas professoras participantes – oferecendo uma base para que ele possa sustentar uma postura relacional e de parceria com seus alunos.

O formato reflexivo de trabalho também favoreceu um reconhecimento de como a vida das professoras foi enriquecida ao testemunhar as conversas e interações entre as crianças e colegas. A narração de ressonâncias pessoais e os lugares para onde elas foram transportadas – geralmente para a época em que eram estudantes – fortaleciam a capacidade de compreensão e de serem empáticas com os alunos.

A participação nas oficinas despertou a necessidade de uma revisão das atitudes, tanto no aspecto profissional quanto no pessoal, sendo também um estímulo para a ampliação das possibilidades de pensamentos e ações nos diversos contextos de vida dos participantes (professoras e alunos). Alunos e pais e/ou responsáveis também relataram em diversos momentos novas compreensões a partir do que viram e ouviram, trazendo a necessidade de terem outras atitudes no dia a dia, como dedicar mais tempo aos filhos, ou respeitar as professoras quando elas estão falando, entre outras. As professoras sentiram-se convidadas a terem atitudes mais responsivas para com seus alunos, ao se darem conta da grandiosidade do seu trabalho e da influência que podem ter na construção da identidade deles.

As professoras participantes entenderam que o trabalho com as Oficinas facilitou uma aproximação entre a família e a escola e também pôde ser entendido como um recurso de proteção ao desenvolvimento infantil, pelo seu caráter preventivo – possivelmente trazendo uma diminuição na probabilidade de se exporem a fatores de risco (como uso de álcool, outras drogas, violência entre outros). Tal efeito não pode ser compreendido a priori mas, ao abordar valores essenciais para o viver em sociedade – como o respeito à diversidade, a compreensão mútua, a responsabilidade compartilhada, e o reconhecimento do outro como semelhante e diferente –, pode-se favorecer as gerações mais novas a estarem mais preparadas para lidar com os desafios futuros nesse mundo em constante transformação.

Uma atmosfera de confiança foi gerada, na medida em que as vozes, ideias e questionamentos de todos foram escutados e valorizados. Dessa forma, cocriamos uma comunidade de aprendizado colaborativo (Anderson & London, 2012), em que todos envolveram-se na construção de uma nova qualidade de conexão uns com os outros.

 

Desenvolvendo Novas Possibilidades de Futuro

Ao construirmos uma relação em que os participantes puderam se colocar de maneira reflexiva e colaborativa no processo conversacional, as professoras tiveram a oportunidade de perceber algo para além das dificuldades (de aprendizagem ou comportamentais) enfrentadas pelos alunos e referirem-se a eles de uma maneira mais cuidadosa e respeitosa. A intervenção mostrou-se útil no estabelecimento de um contexto propício ao surgimento de questionamentos e possibilidades.

Outras formas de conversação foram cocriadas, em que todos foram encorajados a contribuir com sua versão de sentido sobre o que estava sendo vivenciado, refletido, escutado e observado. Relacionamentos mais colaborativos e conversações dialógicas entre professores e alunos foram estimulados, reforçando-se o hábito de refletir, e de não se ter uma resposta imediata para as dificuldades vivenciadas no espaço escolar.

O respeito à diversidade e a compreensão do outro, essenciais para o exercício da cidadania, foram motivados pela participação nas oficinas. Professoras começaram a perceber as crianças por outros ângulos, entendendo algumas dificuldades de relacionamento por outras perspectivas, não mais apenas apontando quem está certo ou errado, mas compreendendo o aluno inserido em um contexto complexo. Além disso, professoras enfatizaram a importância de esperar, respeitar o tempo de cada um, ouvir e observar mais os alunos. Foi uma rica oportunidade para crianças e professores respeitarem, considerarem, confiarem e aceitarem o outro como legítimo outro na convivência e na sua individualidade.

A partir do diálogo com os participantes, novas possibilidades de ser e de conviver foram sendo construídas. Novas possibilidades que se mostraram significativas e relevantes para suas vidas. Facilitados pelos processos reflexivos, todos os participantes puderam se engajar num processo educacional e relacional capaz de oferecer uma melhora da convivência. Esse processo teve o potencial de gerar mudanças nas relações professor-aluno e aluno-aluno, trazendo diferentes possibilidades de futuro.

Alunos, professores, pais e responsáveis puderam se conhecer mais no aspecto pessoal, facilitando a construção de uma comunidade colaborativa que permita o apoio e seguimento do processo colaborativo, dialógico e reflexivo na escola. Apoiar os adultos que cuidam e ensinam as crianças (professores, pais e responsáveis) é fundamental para a sustentação de uma qualidade na interação e na educação.

São inúmeras as contribuições de Tom Andersen para o contexto escolar, sobretudo na viabilidade de inclusão dos processos reflexivos na sala de aula. Ao dar visibilidade a aspectos de vida que não eram percebidos anteriormente à participação nesses processos, as pessoas podem ampliar os significados e compreensões das experiências e histórias narradas. “Parece que apenas começamos a fazer algo que é suficientemente simples para ser viável, suficientemente criativo para ser útil, suficientemente pequeno para ser transportável e suficientemente repleto de surpresas inesperadas que mantêm viva nossa própria curiosidade” (Andersen, 2002, p. 141).

Essa experiência foi uma forma que encontrei para responder à demanda recebida, considerando as necessidades atuais da educação. De que outras maneiras podemos ouvir e cuidar dos atores envolvidos na tarefa educacional, para lidarem com seres humanos complexos num mundo em transformação? Como poderemos dar seguimento ao processo iniciado nessa e em outras escolas? Ainda teremos muitos desafios no presente e no futuro que não poderão ser resolvidos com respostas únicas – orientados por nossas suposições prévias –, mas enriquecidos com uma pluralidade de vozes e visões de mundo capazes de modificar e influenciar nosso entendimento anterior.

 

 

Referências

Andersen, T. (2002). Processos reflexivos (2a ed.). Rio de Janeiro: Instituto NOOS: ITF.         [ Links ]

Andersen, T. (2005). Procesos de reflexión: actos informativos y formativos. InS. Friedman (Org.),Terapia familiar con equipo de reflexión: Una práctica de colaboración(pp. 1-40). Madri: Amarrortu Editores.         [ Links ]

Anderson, H. (2007). The heart and spirit of collaborative therapy: the philosophical stance – “a way of being” in relationship and conversation. In H. Anderson &D. Gehart (Orgs.),Collaborative therapy: relationships and conversations that make a difference (pp. 43-59).New York: Routledge.

Anderson, H. (2011). Uma perspectiva colaborativa sobre ensino e aprendizado: a criação de comunidades de aprendizado criativo. Nova Perspectiva Sistêmica, 41, 35-53.         [ Links ]

Anderson, H. & Goolishian, H. A. (2007). O cliente é o especialista: uma abordagem para terapia a partir de uma posição de não saber. Vale a pena ler de novo. Nova Perspectiva Sistêmica,27, 66-81.         [ Links ]

Anderson, H. & London, S. (2012). Aprendizado Colaborativo: Ensino de professores por meio de relacionamentos e conversas. Nova Perspectiva Sistêmica, 43, 22-37.         [ Links ]

Delors, J., Al-Mufti, I., Amagi, I., Carneiro, R., Chung, F., Geremek, B., Gorham, W. et al. (1996). Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. São Paulo: Cortez. Recuperado de https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000109590        [ Links ]

Foucault, M. (2004). A ética do cuidado de si como prática da liberdade. InDitos & Escritos V – Ética, Sexualidade, Política (pp. 264-287). Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Gergen, K. J. (1992).El yo saturado: dilemas de identidad en el mundo contemporáneo. Barcelona; Buenos Aires; México: Ediciones Paidós.         [ Links ]

London, S. (2012). La Psicología Positiva en la Educación: Conversaciones y relaciones que generan possibilidades. In A. Tapia, M. Tarragona, &M. T. González (Orgs.), Psicología Positiva(pp. 125-144). México: Edit. Trillas.         [ Links ]

McNamee, S. (2001). Reconstruindo a terapia num mundo pós-moderno: recursos relacionais. InM. Gonçalves &O. Gonçalves (Orgs.),Psicoterapia, Discurso e Narrativa: a construção conversacional da mudança (pp. 235-264).Coimbra, PT: Quarteto.         [ Links ]

McNamee, S. (2007). Relational Practices in Education: Teaching as Conversation. In H. Anderson & D. Gehart  (Orgs.),Collaborative Therapy:relationships and conversations that make a difference(pp.313-335 ). New York: Routledge.         [ Links ]

Paschoal, V. N.(2016).Aprendendo a ser e a conviver: práticas colaborativas e dialógicas no contexto escolar. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP.Recuperado de https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/19540/2/Val%c3%a9ria%20Nicolau%20Paschoal.pdf

Paschoal, V. N., Leão, D., & Reis E. A. (2017). Construindo um olhar apreciativo entre casais: uma perspectiva colaborativa. In M. Grandesso (Org.),Práticas Colaborativas e Dialógicas em distintos contextos e populações: um diálogo entre teoria e práticas (pp. 225-246). São Paulo: CRV.         [ Links ]

Tripp, D. (2005). Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação e Pesquisa, 31(3), 443-466.         [ Links ]

UNESCO. (2016). Repensar a Educação:rumo a um bem comum mundial? Brasília, DF: Autor.

 

 

Recebido em: 10/10/2019
Aprovado em: 30/01/2020

 

 

* Artigo originalmente escrito e publicado para o livro em homenagem a Tom Andersen, editado pelo TAOS Institute, a saber: García, A. G., Rodriguez, L G., & Cruz, H. M. (Orgs.). (2019). Palabras, Movimientos y Emociones. Nuestro homenaje a Tom Andersen. Chagrin Falls, OH: Taos Institute Publication

 

I Valéria Nicolau Paschoal (orcid.org/0000-0001-8282-545X) é psicóloga, terapeuta de família, casal e comunitária, com Mestrado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Certificada Internacionalmente em Práticas Colaborativo-Dialógicas pelo Interfaci, Houston Galveston Institute e Taos Institute. Membro da equipe INTERFACI; membro associada do TAOS Institute, APTF e ABRATECOM. Sócia-fundadora da Sanga 8: Consultoria para TransformAção Institucional. Trabalha com orientação, consultoria escolar e facilitação de processos grupais. Atua em consultório particular, realizando atendimento psicoterapêutico individual, de casal e família. E-mail: valeria_np@hotmail.com

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons