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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.31 Canoas Apr. 2010

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Psicologia e presença feminina nos discursos médico e católico na primeira metade do século XX

 

Psychology and female presence in medical and catholic discourses in the first half of the 20th (twentieth) century

 

 

Flávia Moreira Oliveira; Adriana Amaral do Espírito Santo; Marcela Peralva Aguiar; Ana Maria Jacó VilelaI

I Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende analisar as interfaces da produção científica feminina no início do século XX com a constituição do espaço psi no Brasil, utilizando para tanto um artigo do periódico católico "A Ordem" e uma tese da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Para sermos mais precisos, nosso recorte temporal situa-se nos primeiros 40 anos do século XX, uma vez que datam desse período os primeiros trabalhos de caráter psicológico escritos por mulheres encontrados por nós, dentre as teses de Medicina e as edições da revista "A Ordem" consultadas. As produções da Medicina e da Igreja Católica foram eleitas como fontes privilegiadas a partir de constatações de uma pesquisa mais ampla, que demonstrou a grande importância que esses discursos – o médico e o religioso – tiveram na construção do campo da psicologia no Brasil.

Palavras-chave: Mulher, Medicina, Catolicismo.


ABSTRACT

This article aims at analyzing interfaces of female production in the beginning of the 20th (twentieth) century with the creation of the "psi" space in Brazil, using for this purpose an article from a catholic journal "A Ordem" and a thesis from Rio de Janeiro School of Medicine. More precisely, our focus is the first decade of the century, since the first female productions of psychological features we had access to at the School of Medicine and the consulted editions of the journal date from this period. Medicine and Catholic Church productions were elected as privileged sources based on a deeper research that demonstrated the great importance religious and medical discourses had in the construction of the psychology field in Brazil.

Keywords: Woman, Medicine, Catholicism.


 

 

Introdução

Este estudo busca analisar as interfaces da produção científica feminina no início do século XX com a constituição do espaço psi no Brasil, utilizando para isto um artigo do periódico católico "A Ordem" e uma tese da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

As produções da Medicina e da Igreja Católica foram eleitas como fontes privilegiadas a partir de constatações de uma pesquisa mais ampla, que objetivava compreender a participação de médicos e católicos na construção do espaço psicológico no Brasil no período que vai de 1808 – quando da chegada da Corte Portuguesa ao Brasil – a 1962, quando ocorre a regulamentação da profissão de psicólogo no país.

A revista "A Ordem", fundada em agosto de 1921, teve papel fundamental na disseminação dos ideais católicos. De periodicidade irregular desde seus primeiros anos, a revista tinha a intenção de promover a divulgação da doutrina católica, atingir as elites intelectuais e se posicionar politicamente. Dessa atividade editorial se desdobraram o Centro Dom Vital, a Ação Universitária Católica e o Instituto Católico de Estudos Superiores que, em 1947, se tornou a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, não por acaso onde se instalou o primeiro curso de Psicologia do Brasil.

Já as teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, entre 1832 e 1930, eram, em sua maioria, trabalhos apresentados obrigatoriamente quando da conclusão do curso. Elas refletem a chamada "intervenção médica na sociedade", movimento alavancado principalmente pelos higienistas, que propunham transformações sociais, enfocando, para tanto, a normatização dos hábitos da família brasileira.

Estes dois conjuntos materiais se ligam a um terceiro elemento: a presença da mulher na psicologia. A importância de se estudar a participação feminina na constituição da Psicologia brasileira reside na instigante constatação de uma grande defasagem de informações no que se refere à produção intelectual feminina em Psicologia. Embora nas salas de aula dos cursos de graduação e na prática profissional estejamos acostumados a encontrar uma maioria de mulheres – o que é corroborado por pesquisas a respeito deste tema (Castro & Yamamoto, 1998; Conselho Federal de Psicologia, 1988) – em nossas leituras sobre a história da psicologia os personagens, por outro lado, são, em sua quase totalidade, homens. Para esta análise, é de nosso interesse lançar nosso olhar para além de uma visão que dicotomize homens produtores do conhecimento/mulheres reprodutoras do mesmo. Para tanto, buscaremos analisar as publicações de base para o nosso estudo com foco no tema abordado e seu contexto.

Nosso estudo irá se dedicar aos primeiros 40 anos do século XX, uma vez que os primeiros trabalhos de caráter psicológico escritos por mulheres encontrados por nós, tanto nas teses de Medicina quanto em "A Ordem", inserem-se neste período.

As duas publicações que são objeto de nossa análise são representativas da produção da pequena e nobre parcela das mulheres brasileiras letradas e ilustradas da época. A primeira é uma tese apresentada por Maria da Glória Fernandes, formada em Medicina em 1903, intitulada "Da educação sob o ponto de vista da hygiene pedagogica"1. A outra é o artigo "Chronica Feminina: o perigo do feminismo", publicado em "A Ordem" em 1932 e de autoria de Lucia Miguel Pereira.

Ambas as produções discutem a atuação profissional da mulher, sua educação e caracterização, coincidindo tanto com o pensamento mais tradicionalista da época como com o de vanguarda. Poderemos analisar como um determinado conhecimento que chamaremos de "médico-psicológico" – por apresentar argumentos fisiológicos e psicossociais a respeito do comportamento feminino – encontra-se presente em ambos os trabalhos que, por outro lado, partem de perspectivas bastante diferentes.

Assim, apresentamos uma pesquisa bibliográfica focada especialmente em textos sobre gênero e história, além de obras do mesmo período ou referentes ao período estudado. O trabalho se inicia com um breve retrospecto sobre a constituição de espaços de saberes no Brasil do final do século XIX e início do século XX, passeia através das relações entre mulher, educação e trabalho, e por fim analisa as obras das duas autoras à luz do entendimento do contexto que as circundava.

Objetivamos, com esta articulação, pensar a produção científica da mulher no Brasil no período estudado em contraste com a constituição da Psicologia em nosso país, atentando para as peculiaridades dos primeiros trabalhos de caráter psicológico escritos por mulheres que foram encontrados por nós em pesquisas mais amplas.

Um campo de possibilidades para a construção da Psicologia

Até o século XIX preponderou no Brasil a influência da Igreja Católica, sustentada, entre outras coisas, pela aliança com o Estado Português. Com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, em 1808, ocorre uma aceleração do "processo civilizatório", uma busca de aproximação dos modos culturais e sociais europeus, apoiado anos mais tarde por diversos movimentos políticos e transformações sociais que tornam necessária a construção de uma identidade nacional. Surge uma classe média intelectualizada, orientada pelas palavras de ordem: abolição, república e democracia (Jacó-Vilela, 1999).

Ao mesmo tempo, invade o Brasil "um bando de ideias novas" (Romero, 1926), de cunho cientificista, como o positivismo de Comte e o evolucionismo de Spencer e Darwin, ampliando o entendimento do comportamento humano para além da esfera moral e religiosa. Dessa forma, observa-se uma inversão de valores no que diz respeito às entidades dotadas de respeitabilidade para produzir e assumir o papel de formadoras e informadoras de conhecimentos válidos acerca da realidade. O discurso católico, que tradicionalmente era reconhecido como a base para qualquer entendimento da natureza, da sociedade ou do homem, passa a ser percebido como conservador, defasado, uma vez que se mantém embasado na teologia e não na ciência, discorrendo sobre a alma e seus atributos, perdendo cada vez mais espaço no universo social.

Em contrapartida, vê-se a ascensão do discurso médico, representante da vertente científica, que se torna hegemônico a partir do último quarto do século XIX, sendo um dos legítimos representantes dos ideais de modernidade a que aspirava a elite brasileira. Consequentemente, ganha destaque um discurso do corpo, numa progressiva fisiologização da alma, que se torna objeto da ciência (Alberti, 2003; Keide & Jacó-Vilela, 1999). A unidade entre corpo e alma se perde, uma vez que esta passa a ser conhecida através daquele, principalmente através da anátomo-fisiologia do cérebro, órgão onde se entende localizarem-se as propriedades e funções da alma.

Até este período o serviço médico no Brasil se apresentava de forma extremamente precária. Inicialmente contava com pouquíssimos profissionais formados por universidades portuguesas ou francesas, ficando a maior parte dos cuidados médicos destinada aos barbeiros e boticários. Posteriormente o ensino da medicina no Brasil começa a se estruturar, as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia sendo criadas em 1832 (Jacó-Vilela, Esch, Coelho & Rezende, 2004). Como especialistas, os médicos, ou conforme os denomina Schwarcz (1993), os "homens de sciencia", vêm reivindicar e ocupar o lugar de transformadores da sociedade, num esforço de criação de saberes próprios à realidade brasileira. A Medicina passa a ser vista como um meio de cura e intervenção em inúmeras moléstias, inclusive as sociais, constituindo a missão higienista de curar o “corpo doente da sociedade” (Schwarcz, 1993).

Um dos objetivos desta medicina era produzir um conhecimento acerca do povo brasileiro. Se a intelectualidade intentava construir um Brasil moderno, tornava-se essencial conhecer a real composição do nosso povo para que fosse possível operar as ações necessárias para sua imperiosa transformação. Nesta perspectiva, os médicos se tornaram os agentes que poderiam conhecer, reconhecer e modificar a identidade nacional; seriam aqueles que poderiam atender à necessidade corretora das mazelas do país para que este ingressasse na modernidade (Kropf, 1994; Mota, Lopez & Coser, 1994).

As práticas médicas baseavam-se na constatação da grande miscigenação racial e dos efeitos que dela poderiam advir. Na construção de imagens do Brasil e de seu povo – realizada por intelectuais como Silvio Romero –, que logo se tornaram tão disseminadas como as do negro indolente ou do índio preguiçoso, começam a se constituir conceitos psicológicos, como o de caráter, entendido como a forma, o aspecto externo daquilo que o indivíduo é, em contraposição a temperamento, ideia que, decorrente da medicina hipocrática (Massimi, 2005) diz respeito aos humores que percorrem o corpo.

Estes conceitos, compreendidos e embasados na cientificidade da Medicina, produziram um tipo de conhecimento que subsidiou em grande parte as ações higienistas, eugênicas e da medicina legal, caracterizando a atuação médico-psicológica preventiva e terapêutica no Brasil do início do século XX.

Diante disso, podemos destacar o início da constituição de uma "Psicologia Cientifica", através, inicialmente, da criação de laboratórios experimentais e, posteriormente, do uso de testes. Esta nova Psicologia Científica vinha se contrapor à "Psicologia Religiosa", aquela forma de conhecimento sobre o homem oriunda das doutrinas teológicas e complementada, algumas vezes, com a observação empírica (como a realizada pelos jesuítas em seu contato com os indígenas) (Massimi, 2006).

A Igreja, que vinha tendo menor influência no campo político, devido ao rompimento, desde o final do Império, da tradição lusa de total junção entre Igreja e Estado, e sendo ainda confrontada pelo materialismo e pelo positivismo, busca meios de atrair os intelectuais que se dispersavam ou que se deixavam levar unicamente pelo aclamado pensamento científico. Entre suas principais iniciativas está a fundação da revista "A Ordem", que, como dissemos, foi criada em 1921.

O exame de artigos dessa revista nos mostra que há, nesse momento, uma busca pela conciliação entre o pensamento religioso e o científico, e consequentemente, com o emergente pensamento psicológico. Como exemplo, citamos um artigo de 1922, em que Hamilton Nogueira discute a maior ênfase dada pela ciência aos mecanismos de funcionamento do corpo, especificamente sobre a importância do cérebro em detrimento da alma. Entretanto, diferentemente do que ocorria em um momento anterior, o autor reconhece avanços da ciência e chega a considerar possível a existência de centros nervosos no corpo humano, contanto que o meio científico reconhecesse que estes seriam controlados pela alma, que teologicamente se situa além da matéria.

Mas essa aproximação não ocorrerá sem percalços. Mais tarde, conforme o discurso psicológico se torna mais sólido, indo de encontro à doutrina da Igreja, percebemos que os artigos da "A Ordem" passam a combatê-lo com mais força (Aguiar, Fabrício & Jacó-Vilela, 2003).

Mulher, educação e trabalho

As transformações que vinham ocorrendo na sociedade brasileira no final do século XIX e primeira metade do século XX atingiram de forma diferenciada as mulheres, que começavam a sair de uma longínqua invisibilidade. Se até então eram consideradas como seres de pouco importância para a constituição social e política da nação, as condições que permitiram a instauração da República possibilitam que elas ocupem um papel distinto, transformando-se em pessoas-chave para a constituição moral da sociedade.

A mulher no século XX representa o alicerce de um novo país, o centro moral e unificador da família e do Brasil moderno que se intentava construir (Caulfield, 2000). Entretanto, esta aparente abertura que lhe é conferida não deixa para trás preconceitos e estruturas de convivência social, profissional e política há anos arraigadas. Junto a um possível reconhecimento de sua importância, várias exigências comportamentais e morais foram acrescidas às antes existentes.

Um traçado da trajetória das mulheres brasileiras, neste período, aponta para uma grande "oportunidade controlada" de crescimento pessoal, social e político. A repercussão das duas grandes guerras ocorridas na primeira metade do século XX fez com que a mão- de-obra feminina se tornasse essencial para a manutenção da produção e do mercado consumidor, inclusive no Brasil. Assim, estava aberto o caminho para o trabalho. Em contrapartida, esta entrada na área profissional favoreceu o surgimento de questões antes abafadas e até não cogitadas, como os direitos políticos e trabalhistas e a necessidade de melhoria da educação formal feminina.

Foi em meio a este clima que os primeiros movimentos feministas se estruturaram no Brasil. Surgidos na segunda metade do século XIX, em sua maioria, tinham como adeptas as poucas mulheres mais instruídas da sociedade, algumas que, por terem estudado fora do país, tiveram contato com os pensamentos e com organizações feministas estrangeiras, trazendo consigo os ideais propagados lá fora (Hahner, 2003).

É interessante notar, no entanto, que as reivindicações das nossas feministas não se encontravam dissociadas do pensamento moderno brasileiro. Na maioria das vezes, todo movimento libertário, seja relacionado à conquista de voto ou a melhores condições de trabalho ou de qualidade no ensino, estava integrado ao ideal maior de colocar a mulher no centro da nação moderna, civilizada e desenvolvida que se pretendia construir. Assim, enquanto por um lado alguns liberais, como Rui Barbosa (1849-1923), consideravam temas como a educação feminina pertinentes às questões da desigualdade de gênero da época (Araújo, 1993), outros pensadores respaldavam as possíveis conquistas com a justificativa de que, quanto mais instruída e competente para algumas decisões a mulher se tornasse, mais eficiente seria a sua atuação junto aos homens que a cercavam, fossem eles seus pais, maridos ou filhos. Ou seja, em sua maioria, as lutas feministas deste período circunscreviam-se no rol de possibilidades que a imagem da "santíssima trindade" oferecia à mulher: ser filha, esposa e mãe (Hahner, 2003).

O conhecimento básico ministrado às mulheres na escola envolvia principalmente as atividades de aprender a ler, escrever, costurar e bordar. A instrução mais profissionalizante dedicada à mulher era aquela ministrada pela Escola Normal, que a preparava para exercer uma função que, a partir deste momento, passa a ser identificada ao papel de mãe: o exercício da docência para crianças e adolescentes (Araújo, 1993). Então, pode-se dizer que, caso um trabalho fora do lar fosse desejado ou necessário, as suas responsabilidades deveriam corresponder ou se aproximar das mesmas assumidas dentro de casa.

É claro que não podemos descartar a iniciativa e coragem de algumas mulheres que conseguiram seguir carreiras "masculinas" como o Direito, a Medicina, a Engenharia, porém, estas mulheres representavam uma grande exceção. Hahner (2003) destaca duas brasileiras – Maria Augusta Generosa Estrela e Josefa Águeda Felisbela Mercedes de Oliveira – que, no final do século XIX, deixaram o Brasil, financiadas basicamente por suas famílias, para estudar medicina nos Estados Unidos, no New York Medicall College and Hospital for Women2. Cabe destacar que no caso de Maria Augusta as despesas com sua educação também tiveram auxílio da realeza, através de uma bolsa concedida por Dom Pedro II que durou todo o período de sua formação (Hahner, 2003; Maia, 1996).

O argumento destas pioneiras, em sua busca de formação profissional, era o de ser necessária uma pessoa que pudesse compreender de perto os problemas da mulher e que não a intimidasse na hora de falar sobre suas mazelas: "... elas garantiam que a suave médica inspiraria a necessária confiança nas pacientes, em geral relutantes em expor seus corpos e seus males aos médicos, no Brasil. E elas proclamavam, em nome da ‘moral' e das ‘leis da igualdade': ‘Cure o homem ao homem, cure a mulher à mulher'." (aspas no original. Hahner, 2003, p.144).

Tendo em vista a situação da mulher no período estudado, pode-se dizer que o trabalho feminino em prol da construção de espaços diversificados de atuação e reflexão fora silenciado pela desvalorização da intelectualidade feminina, pelo pressuposto de sua fraqueza física, com um cérebro anatomicamente inferior. Isto impediria pensamentos abstratos e profundos, o que tornava inviável que exercesse um papel de literata, de estudiosa, de livre-pensadora, de médica, advogada ou qualquer função que exigisse maior dedicação da razão (Hahner, 2003).

Deste modo, ao mesmo tempo em que encontramos mulheres plenamente inseridas nos modelos mais tradicionalistas, também observamos exemplos femininos de luta contra os padrões socialmente determinados de como ser mulher no início do século XX. Cabe ressaltar, no entanto, que nem sempre uma posição de vanguarda se apresentava de forma clara. Em alguns momentos, vemos uma verdadeira mistura entre comportamentos femininos mais "avançados" e sua vertente tradicional. Assim, nos modelos que utilizaremos em nossa análise, poderemos ver duas formas de captura da subjetividade por vieses opostos: uma apontando para a emancipação feminina, através da vivência pessoal de nossas personagens, ao mesmo tempo que, ao lado deste caminho emancipatório, surge o alerta em relação a ideias e posturas vanguardistas.

Assim, poderemos notar que os trabalhos escolhidos para serem analisados representam provavelmente a produção de uma pequena parcela de mulheres instruídas, que ousaram se posicionar politicamente e discutir alguns temas que, mesmo sendo tradicionalmente considerados afins com seu sexo – educação, pedagogia, psicologia e papel social da mulher –, assumem um tom especial devido ao local de sua veiculação (as teses de medicina e o periódico "A Ordem"), em que predominava a produção masculina.

A presença feminina nas teses de medicina e em "A Ordem"

A construção da história da mulher vem sendo ressaltada como um aspecto de grande importância para a compreensão de nossa realidade, tendo em vista a mesma ter sido negligenciada por bastante tempo. Perrot (1989) destaca que a excessiva atenção dada ao espaço público nos escritos históricos, em detrimento da vida privada – reservada historicamente à mulher –, favoreceria o esquecimento do feminino. Com a chegada do século XIX e consequente "abertura" dos portões dos lares para os passeios das mulheres, poderíamos pensar que tal problema se dissolveria. No entanto, a história das mulheres não teve, como poderia parecer, uma trajetória tranquila.

Apesar do início da circulação das mulheres no espaço público, os registros sobre as mesmas dizem respeito principalmente a aspectos que não relatam o seu cotidiano, o que pensavam, como consideravam a realidade em que viviam, o que desejavam, os temas que as perturbavam ou guiavam suas vidas. O registro sobre as mulheres no século XIX é feito sob o olhar crítico e prioritariamente masculino dos cronistas, que as retratam sob a ótica da ostentação do poder de seus maridos, refletida em suas vestes e ornamentos (Perrot, 1989), apontando para a construção de um único sentido das ações ou relações que as mesmas estabeleciam com o meio e/ou com as pessoas que as circundavam.

Ainda segundo esta autora, a história da mulher pôde ser mais bem construída a partir do momento em que os historiadores passaram efetivamente a se interessar por registros até então considerados como "menos nobres", interesse este iniciado e bastante evidenciado pelos historiadores da denominada École des Annales que se desdobrou no movimento da História Nova.

Assim, ao adentrarem as casas de seus personagens, ao buscarem uma compreensão mais aproximada e refinada do dia-a-dia de cada época, os pesquisadores puderam penetrar nos porões e locais mais escondidos dos lares, encontrando os registros íntimos das mulheres, tais como seus diários. Estes documentos apresentaram aos historiadores outras visões sobre a realidade, propiciando novas possibilidades de interpretação e (re) construção do momento histórico.

Após um longo período de reclusão, os escritos femininos foram ganhando espaço através das lutas travadas para o efetivo reconhecimento da mulher como sujeito social e político. Será através destes primeiros escritos inseridos no território brasileiro que poderemos analisar a presença feminina na constituição de novos espaços sociais para a mulher e a sua participação na construção de temas e espaços que possibilitaram erigir a disciplina/profissão da Psicologia.

O início de um contraponto: a tese de Maria da Glória Fernandes

Os dois trabalhos que destacamos para este estudo são provenientes de ambientes onde o discurso e a produção masculina "reinavam". O primeiro é o meio acadêmico do início do século XX. Não um meio acadêmico qualquer, mas o médico, que vinha se firmando no Brasil como o principal local de disseminação do pensamento científico, tão valorizado e importante para a construção do Brasil moderno.

Neste momento, era exigência para finalização do curso de medicina a apresentação de uma tese e foi exatamente em uma tese de 1903, intitulada "Da educação sob o ponto de vista da hygiene pedagógica", que encontramos o primeiro material científico com teor psicológico escrito por uma mulher, Maria da Glória Fernandes, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. É importante destacar a existência, neste período, da afirmação da incapacidade intelectual de alguns segmentos sociais e raciais, e as mulheres, na maioria dos casos, eram consideradas como incapazes de realizar uma construção intelectual profunda. Deste modo, encontrar um material produzido por uma mulher no legítimo lugar da razão é algo que merece destaque.

Nas 140 páginas de sua tese, a autora discorre sobre a higiene educacional, de grande importância à época, enfocando a psicologia e a mulher na educação. Podemos observar no texto sua grande capacidade em se apropriar do conhecimento vigente, recorrendo a autores e teorias reconhecidos, denotando uma preocupação com a validação científica de seu discurso. Procura, assim, construí-lo como combate ao moralismo reinante e à forma tradicional de se compreender a educação, as capacidades intelectuais do povo brasileiro e a função social da mulher.

Sua perspectiva afir ma a constituição orgânica inata de cada indivíduo, ressaltando os aspectos genéticos, relativos à hereditariedade e deformidades congênitas, como fatores decisivos para a possibilidade de desenvolvimento intelectual dos sujeitos. Entretanto, diferentemente da tendência eugênica da época, a autora ressalta que estas características não são circunscritas estritamente pelo nível social, sexo e pela raça das pessoas. Acredita que as diferenças genéticas relacionadas à aptidão para a aquisição de conhecimentos não se restringem a uma etnia ou gênero, mas podem ser encontradas em qualquer um, sendo necessária a criação de estratégias que venham a facilitar a sua identificação. Neste assunto a autora destaca os estudos experimentais sobre fadiga intelectual de Binet e Henri3, através dos quais se demonstra a fisiologia deste processo, estudando-o não como patologia, mas sim buscando o bom direcionamento intelectual das crianças.

Maria da Glória defende que, paralelamente aos cuidados com a saúde física, deve-se dar atenção à saúde mental das crianças, o que chama de "hygiene pedagogica". Para isso, aponta como essencial a utilização da Psicologia Experimental, considerada como o estudo que possibilita a caracterização, a demarcação do caráter e das capacidades de desenvolvimento apresentadas por cada indivíduo, ressaltando que, ao identificarmos tais atributos, também devemos levar em consideração aspectos como a vontade, qualidade intimamente relacionada ao caráter. É ela que nos leva à ação e assim proporciona o aflorar da inteligência.

Este pensamento é consonante com o processo que ocorrerá na Psicologia a partir do século XX: apropriada pela pedagogia, afasta-se da medicina, seguindo na busca de sua cientificidade. Esta união promove a compreensão psicológica da criança nas diferentes fases do desenvolvimento. Para isto, são importantes os trabalhos que redundaram na elaboração de testes, como os de Binet e Simon, que permitiram a medição das capacidades intelectuais das crianças que entravam nas escolas4. Assim, seria possível organizar as salas de acordo com as possibilidades de desenvolvimento de cada um, sendo despendidos maiores esforços com os que efetivamente poderiam se tornar pessoas produtivas para a sociedade. É com base neste pensamento que algumas propostas de estruturação pedagógica do ensino, como as classes homogêneas, serão construídas, tal como a Escola Nova, que se desenvolve no Brasil através de personagens como Lourenço Filho (1897-1970) e Anísio Teixeira (1900-1971).

Porém, não só através da descrição de caráter efetuada pela Psicologia Experimental ou da identificação das capacidades para o desenvolvimento se baseia a argumentação da autora. Ao abordar as questões relativas à educação, ela traz à cena outro pensamento bastante presente em sua época e que permeava fortemente tanto a medicina como a engenharia e a pedagogia do início do século XX: o higienismo.

Podemos dizer que um dos suportes do higienismo dizia respeito à assepsia dos ambientes corruptores, através da educação da população. Esta educação adentraria as casas transformando cada agente social em um multiplicador do ser civilizado, saudável e bem adaptado ao século XX (Mota & cols., 1994). A tese de Maria da Glória enfatiza o fato da educação não se dar apenas no ambiente escolar, mas fazer parte do seio familiar, atingindo também os meios social e pessoal. Ela ressalta o papel fundamental da família como educadora moral dos indivíduos e, neste ponto, ao colocar o lar como um dos ambientes centrais da educação, aponta para uma discussão bastante pertinente à época: a situação da mulher em relação à educação e à sociedade.

Guiando-se pelo pensamento da época a autora nos mostra que a mulher, antes de qualquer instituição educacional, é a melhor educadora para as crianças. Aponta a necessidade da existência dos Jardins de Infância, principalmente para as crianças de classe social baixa que abandonam os estudos muito cedo (por volta dos 14 anos) e que também precisam de uma iniciação educacional precoce, mas considera que "... a educação da crença nas primeiras idades devia ser como a das plantas, ao ar livre, confiada ás jardineiras da infância, que são as mães." (itálico no original. Fernandes, 1903, p.84).

Sob esta perspectiva poderíamos dizer que a função da mulher apresentada por Maria da Glória se coaduna com aquela socialmente aceita à época. Entretanto, aprofundando a análise de sua tese, vemos a exploração do tema da educação feminina em termos bastante vanguardistas. Ela vai nos dizer que a mulher deve, sim, ser educada para fortalecer a nação através dos ensinamentos que transmitirá à sua prole. Porém, não necessariamente tudo o que a mulher deve aprender terá que se limitar ao campo familiar.

A mulher, como o homem, deve se capacitar para compreender a realidade como um todo, instrumentalizando-se inclusive para o trabalho fora do lar. O objetivo é promover sua educação completa, para que possa se tornar "... uma entidade economica independente" (Fernandes, 1903, p.58), principalmente quando se pensa que nem todas terão a possibilidade de abraçar os laços do matrimônio.

Defende a ideia de que, para a mulher ter uma vida "regular e honesta", deve lutar por direitos iguais entre os sexos:

Poderá faze-lo ou será isto uma utopia? Será realmente um paradoxo a igualdade social dos sexos? Porque há de ser o casamento ou a vida da família a única aspiração natural da mulher?
(...) Além da educação moral e domestica a mulher deve ter uma instrucção intellectual, superior e profissional. Em uma sociedade organisada conforme a natureza das cousas, a mulher será educada desde a infancia com o mesmo objectivo que o homem – viver de seu trabalho.
(...) O trabalho sendo a lei da natureza, querer ficar ociosa, é querer oppor-se a essa lei, é, pois, tornar-se immoral. (Fernandes, 1903, p.57)

Apesar de acreditar na possibilidade de igualdade entre os sexos, Maria da Glória Fernandes (1903) reconhece que há um longo caminho a ser percorrido até o dia em que seus ideais possam se concretizar. Afirma que este caminho será de luta, devido ao longo período em que a mulher esteve submissa, porém acredita ser possível a construção de uma sociedade mais igualitária, inclusive com a participação feminina no mercado de trabalho.

Através de um discurso pró-ativo que percorre toda sua tese, podemos considerar que Maria da Glória Fernandes é um exemplo de postura de vanguarda em uma sociedade tradicionalista e, principalmente, em um ambiente marcado pelo conceito de que muitos saberes são inalcançáveis pela "restrita" mente feminina.

Nem tanto ao mar, nem tanto a terra: o artigo de Lúcia Miguel Pereira

Contudo, nem todas as falas das mulheres referentes à questão da emancipação feminina coincidiam com este posicionamento mais avançado e combativo. O artigo de Lúcia Miguel Pereira na revista A Ordem – segunda obra por nós estudada – representa o pensamento mais aceito socialmente no início do século XX acerca da possibilidade de emancipação feminina. A autora destaca que o desenvolvimento intelectual não implica independência financeira nem igualdade profissional entre os sexos, mas uma possibilidade de pacificação social através da inserção das características femininas no espaço público.

Nascida em Barbacena (MG), Lúcia Miguel Pereira (1903-1959) passou toda a sua vida no Rio de Janeiro. Filha do médico Miguel Pereira e pertencente a uma família de mulheres cultas, que valorizavam a leitura, encaminhou-se para o mundo das letras, tornando-se crítica literária e uma das intelectuais mais prestigiadas de sua época.

Publicou artigos em importantes jornais, como "Gazeta de Notícias", "Correio da Manhã" e "Revista do Brasil", escreveu romances – sendo o mais conhecido "Cabra cega", de 1954 – e caminhou pela literatura infantil, recebendo o Prêmio Literatura Infantil, do Ministério da Educação. Foi nacionalmente reconhecida por sua análise estética da obra machadiana no ensaio "Machado de Assis" (1935), tendo inclusive conquistado o Prêmio Felipe de Oliveira, do Círculo Literário do Brasil, em 1936 (Schumaher & Brazil, 2000).

Católica, preocupada com a situação de seu país, acreditava ser necessária uma transformação espiritual para que os problemas sociais pudessem encontrar uma solução. Esta característica de nossa autora representa uma marca de um grande número de intelectuais da década de 1930, que incluem a opção religiosa em seus discursos. Entretanto, cabe ressaltar que tal característica de fervor espiritual nas obras de Lúcia Miguel Pereira foi sendo amenizada com o passar do tempo, transformando-se numa visão ética em relação à literatura e à sociedade.

Dentro do clima religioso da década de 1930, publica na revista católica "A Ordem", em 1932, o artigo "Chronica feminina: o perigo do feminismo", alvo de nossa análise. Em suas duas páginas, tece considerações acerca da função social da mulher. Embora despreocupada com uma fundamentação científica de seus argumentos, a maneira como versa sobre o caráter feminino acena para um dialogismo existente entre o seu pensamento e aqueles que circulavam no meio intelectual da época, especialmente acerca da constituição do caráter do povo brasileiro.

A autora busca demarcar o papel tradicional da mulher – ser esposa e mãe –, como o aspecto fundamental para a constituição do traço mais forte encontrado na sociedade brasileira: a organização familiar. Acredita que a permanência daquelas funções através dos tempos criou "uma nítida consciência do dever" (Pereira, 1932, p.449) entre as mulheres: "Longos séculos de dedicação, de paciência, de humildes labores e ignorados heroísmos, de existência de mães de família, em suma, o que resume tudo, disciplinaram-na e lhe deram uma clara e simples compreensão de sua missão." (Pereira, 1932, p.449).

No entanto, ressalta que as transformações sociais devem ser observadas e acompanhadas de modo a adaptar as funções femininas a cada época vivida: "... hoje já não podemos ser somente mães de família, não podemos imitar em tudo as nossas admiráveis avós. Para servir com eficácia é imprescindível fazê-lo de acordo com a época. A vida moderna está a exigir a colaboração feminina." (itálico no original. Pereira, 1932, p.449).

É importante lembrar que neste período a sociedade brasileira estava envolta em projetos de cunho sanitarista e eugênico, que buscavam a purificação do povo, através da eliminação da corrupção física e moral. O sexo masculino encontrava-se numa situação bastante vulnerável, tendo em vista seu contato direto com as áreas mais viciadas da sociedade. Podemos destacar as várias campanhas contra o alcoolismo, o jogo e a devassidão, que permearam a primeira metade do século XX, endereçadas principalmente aos homens.

Deste modo, a mulher, que até então vivera protegida pelos muros do lar, começa a ser vista como elemento capaz de transmitir à vida política suas características mais puras, combatendo toda forma de conspurcação social. Destacamos que desde a década de 1920 as mulheres começam a ser chamadas para participar, mesmo que indiretamente, dos processos eleitorais. Um claro exemplo desta tendência pode ser observado nas matérias publicadas no Jornal das Moças, que apresentava às suas leitoras a candidatura presidencial de Rui Barbosa, caracterizando-o como o "candidato da mulher brasileira". Esta revista dedicou várias matérias a ele, enfatizando a necessidade das mulheres o apoiarem, influenciando o voto dos homens de sua família e sua presença nos comícios do candidato, através de conversas com seus pais, maridos e filhos que enaltecessem as qualidades de Rui Barbosa (Oliveira, 2004).

Com as mudanças advindas da modernidade, principalmente através da conquista feminina do direito ao voto, ocorrida em 1932 (ano de publicação do artigo de Lúcia Miguel Pereira), a mulher agrega novas responsabilidades e deveres que lhe abrem mais uma forma de inserção social. A conquista do voto é vista pela autora como um fato consumado, acreditando na capacidade feminina de dar conta de suas novas funções para com a nação.

Lúcia considera que a mulher deve estar inteirada dos acontecimentos, mas teme a possibilidade de que perca o foco principal de sua participação na sociedade. A partir do momento em que se deixa tomar pela força das transformações, inserindo-se num ambiente que originalmente não é o seu, corre o risco de se contaminar por características menos nobres, como ambições, angústias, ódios e inquietações, produzidas por uma sociedade organizada predominantemente por homens. É esta sociedade que gera a demanda da inserção da mulher "... como um elemento moderador, de doçura, que trouxesse para a vida de fóra o suave ambiente do lar" (Pereira, 1932, p.450).

Podemos dizer que Lúcia Miguel Pereira aparentemente se esquiva, em seu discurso, de um posicionamento mais claro em relação às tantas conquistas e deveres que passam a ser atribuídos às mulheres, ora nos levando a pensar que talvez apóie uma posição mais emancipatória, ora mais tradicionalista. Isso ocorre principalmente porque em nenhum momento se implica, seja no processo das reivindicações feministas, seja assumindo o lugar de filha, esposa e mãe. A sua fala aponta para uma "neutralidade típica do comportamento científico" ao observar seu objeto de estudo, colocando suas personagens como atores sociais distanciados de sua própria existência.

 

Considerações finais

O período estudado se caracteriza por muitos conflitos no que diz respeito ao papel social da mulher. A sociedade se dividia entre a manutenção de sua tradicional função social e a construção de uma nova posição, indicando uma emancipação intelectual, profissional e política.

As obras analisadas são bastante representativas dessa situação. Vemos que, apesar de o escrito de Maria da Glória Fernandes ser ainda do início do século XX, apresenta um discurso de vanguarda, reivindicando direitos e afirmando a possibilidade de desenvolvimento intelectual da mulher. Assim, ela se posiciona de forma clara em relação ao processo de emancipação feminina, tomando para si as questões abordadas em sua tese. Já o trabalho de Lúcia Miguel Pereira, escrito quase trinta anos mais tarde, percorre a visão tradicional sobre a posição social da mulher, apontando para a necessidade de transposição das características tradicionais femininas em sua ascensão política, favorecendo a construção de uma sociedade mais pacífica e pura. Em seu texto, utiliza uma reflexão mais distanciada dos acontecimentos, aparentando ser uma mera observadora dos fatos.

É interessante notar que ambas possuem um lugar privilegiado na sociedade. No entanto, em relação a Maria da Glória, mesmo sendo uma das primeiras mulheres a se formar em medicina no Rio de Janeiro, trazendo ideias inovadoras com relação à posição da mulher na sociedade e fazendo parte de um saber em plena ascensão, nada pudemos encontrar acerca de sua biografia, o que nos leva a pensar como era difícil uma mulher estar inserida no meio científico, marcadamente masculino. Por outro lado, verificamos uma pluralidade de referências em relação a Lucia Pereira, que se encontrava em uma área – a religiosa – que perdia seu espaço de construtora do conhecimento social para a ciência, mas que acaba tendo sua atuação profissional amplamente valorizada e reconhecida em âmbito nacional.

Apesar das notadas diferenças entre as autoras, tanto no que se refere à sua produção como ao seu reconhecimento, ambas trabalham com a possibilidade de descrição do caráter dos sujeitos que estudam, contribuindo, sem mesmo o saber, para a constituição do campo da Psicologia. Maria da Glória aponta as características necessárias para um bom desenvolvimento educacional, valorizando a capacidade intelectual da mulher, enquanto Lucia Miguel Pereira discorre sobre as diferenças de caráter encontradas entre homens e mulheres. Isso ressalta o emprego de um mesmo princípio norteador para a análise operada pelas duas, qual seja, a utilização de um dos principais conceitos do pensamento psicológico da época: a noção de caráter.

É assim, com pequenas contribuições do que hoje, disciplinarmente, denominamos como diferentes áreas do saber – a medicina, a literatura, a religião, a educação.... – que a camada intelectual das primeiras décadas do século XX cria, aos poucos, um conhecimento psicológico e realiza sua divulgação no país.

Consideramos, portanto, o panorama apresentado pelas duas obras aqui estudadas importante para a compreensão desta ascensão da psicologia no Brasil, com notória participação feminina. Fazem-se necessários novos estudos no sentido de compreender os caminhos que fizeram com que, no jogo de forças da História, muitas empreitadas de mulheres não tenham obtido o mesmo destaque daquelas dos homens, sendo silenciadas e, muitas vezes, esquecidas no tempo.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: adriana_aes@hotmail.com

Recebido em março de 2009
Aceito em setembro de 2009

 

 

Adriana Amaral do Espírito Santo: Psicóloga; Mestre em Psicologia Social (UERJ)
Ana Maria Jacó Vilela: Psicóloga, Doutora em Psicologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social/UERJ.
Flávia Moreira Oliveira: Psicóloga, Doutora em Psicologia Social (UERJ).
Marcela Peralva Aguiar: Psicóloga; Mestre em Saúde Coletiva (UERJ).
1 Na transcrição de trechos dos trabalhos analisados, respeitaremos a grafia original.
2 Esta escola destinava-se exclusivamente ao ensino para mulheres. Com Maria Augusta Generosa Estrela formaram-se duas norte-americanas e uma alemã na turma de 1881 (Maia, 1996).
3 Na época da tese, não era usual fazer-se a referência bibliográfica dos autores e textos citados. No entanto, supomos tratar-se, aqui, de Alfred Binet (1857-1911) e Victor Henri (1872-1940), que publicaram, no ano de 1898, o livro A fadiga intelectual, primeiro a versar sobre o tema sob uma perspectiva experimental. Os dois autores defendiam uma nova Pedagogia, baseada num sólido fundamento científico (observação e experimentação) e estudaram, a partir desta metodologia, as consequências psicológicas do trabalho intelectual (Rocha, 1998).
4 Para mais informações sobre o teste de Binet-Simon e outros, cf. Castro, A. C., Castro, A. G., Josephson, S. C., & Jacó-Vilela, A. M. (2006).

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