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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.24 no.2 Ribeirão Preto jun. 2016
https://doi.org/10.9788/TP2016.2-10
ARTIGOS
Repercussões da morte do filho na dinâmica conjugal de casais religiosos
Repercussions of the death of his son in the marital dynamicsof religious couples
Impacto de la muerte del hijo en la dinámica de las parejas matrimoniales religiosas
Ana Bárbara Morelli; Fabio Scorsolini-Comin
Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG, Brasil
RESUMO
O presente estudo teve por objetivo compreender as repercussões da morte do filho na conjugalidade dos genitores e como a espiritualidade pode interferir nesse processo. Trata-se de um estudo de caso coletivo, de corte transversal e qualitativo. Participaram cinco casais heterossexuais, praticantes de alguma religião e que haviam perdido um filho. Os participantes foram entrevistados individualmente e em casal, totalizando 15 entrevistas. Os dados foram submetidos à técnica de análise de conteúdo e organizados em eixos temáticos. Notou-se que a morte do filho despertou tanto a rejeição do parceiro em alguns casos/momentos, como maior intimidade. Considerar a conjugalidade é, portanto, atentar-se também para os elementos individuais e as necessidades de cada membro da díade. A espiritualidade foi um recurso encontrado diante do escasso acesso a um apoio psicológico estruturado.
Palavras chaves: Conjugalidade, morte, espiritualidade.
ABSTRACT
This study aimed to understand the impact of some children's death in parent's marital and how to the spirituality can interfer in this process. It is an exploratory, cross-sectional and qualitative research. We interviewed five heterosexual couples who practice some religion and lost a child. The participants were interviewed individually and with their partner, totaling 15 interviews. All the data were passing to the technique of content analysis and organized into themes. It was noted that there children's death created both the rejection of the partner in some instances/moments, and more intimacy in others. Consider the marital relationship is therefore also pay attention to the individual elements and the needs of each member of the dyad. The spirituality was a feature found in face of limited access to a structured psychological support.
Keywords: Marital relationships, death, spirituality.
RESUMEN
Este estudio tuvo como objetivo comprender el impacto de la muerte del niño en el matrimonio y de cómo la espiritualidad puede interferir en este proceso. Se trata de un estudio de caso colectivo, transversal y cualitativo. Participaron cinco parejas heterosexuales, practicantes de una religión y que habían perdido a un hijo. Los participantes fueron entrevistados individualmente y como pareja, por un total de 15 entrevistas. Los datos fueron sometidos a la técnica de análisis de contenido y organizados en temas. Se señaló que la muerte de su hijo provocó tanto el rechazo tanto de la pareja en algunos casos, como una mayor intimidad en otros. Pensar en el matrimonio es, por tanto, prestar atención también a los elementos individuales y las necesidades de cada miembro de la pareja. Espiritualidad es un recurso que se encuentra cuando falta acceso a un apoyo psicológico estructurado.
Palabras clave: Matrimonio, muerte, espiritualidad.
Mesmo sabendo que a morte é parte do ciclo vital, ainda é considerada um tabu em nossa sociedade. A incessante busca do prazer imediato e da felicidade, o hiperconsumo e o avanço tecnológico exaltando o prolongamento da vida a todo custo refletem nossa fragilidade diante da assimilação da morte. Dessa forma, procura-se cada vez mais colocá-la como grande inimiga a ser combatida ao invés de encarar com naturalidade sua existência (Lipovetsky, 2007).
Crescemos em uma sociedade na qual nos ensinaram a temer a morte, a evitar o contato com as fragilidades humanas, o que contribui para a indignação de todos quando alguém jovem morre ou quando a morte se aproxima, e logo se pensa que o indivíduo não teve tempo suficiente para ser feliz, para provar sua potencialidade e capacidade (Bittencourt, Quintana, & Velho, 2011; Oliveira, Quintana, & Bertolino, 2010). Embora haja diversos estudos sobre esse tema, poucos enfatizam a perda do filho e, principalmente, a repercussão desse evento sobre o casal parental (Bousso, Serafim, & Misko, 2010; Carlesso, 2008; Faraj, Cúnico, Quintana, & Beck, 2013; Ferreira, Lira, Siqueira, & Queiroz, 2013; Fonseca & Rebelo, 2011; Lima & Kovács, 2011; Santos & Hormanez, 2013).
Na literatura científica da Psicologia, poucos estudos buscam compreender o luto vivenciado pelos casais que perderam um filho. Há uma dificuldade de lidar com a morte, até mesmo para os profissionais que trabalham no contexto do adoecimento, pois é exigido deles uma disposição interior (Ferreira et al., 2013). Os estudos encontrados sobre essa temática são, por vezes, referentes à área hospitalar, sobre cuidados paliativos (Chapple & Ziebland, 2010; Fonseca & Rebelo, 2011; Nascimento & Roazzi, 2007; Nascimento, Rocha, Hayes, & Lima, 2005). O fato reforça o tabu existente de que há um lugar propício para se falar sobre a morte: os ambientes hospitalares (Bendassolli, 2001).
O luto, segundo Freud (1917/1990), diz respeito a um rompimento involuntário de vínculo que traz consigo diversos temores e sentimentos como desânimo, tristeza e perda de interesse nas atividades externas. No luto sadio, o mundo do enlutado se torna empobrecido, diferentemente do melancólico, no qual o ego da pessoa enlutada é que se torna empobrecido e desvalido. Em alguns casos, a melancolia pode vir acompanhada de perturbações do sono e da fome, vindo a se agravar com o tempo. Isso ocorre porque o enlutado internaliza o objeto perdido devido à sua intensa identificação com o mesmo. Dessa forma, o indivíduo volta toda sua agressividade contra seu próprio ego, causando destrutividade e sofrimento, que são subsídios da pulsão de morte. Para Bowlby (1985), o luto doentio é a exacerbação dos processos presentes no luto sadio, com uma duração prolongada e com características de obsessividade que configuram um processo patológico. Para este autor, o luto dependerá de diversas variáveis envolvidas como, por exemplo, as causas e circunstâncias da morte.
Os pais diante de tal vivência podem entrar em choque, pois o esperado culturalmente é que estes morram antes dos filhos (Alarcão, Carvalho, & Pelloso, 2008; Bittencourt et al., 2011). A morte acidental provoca o corte brusco, enquanto a morte por doença permite uma preparação prévia dos enlutados. Ambas despertam sofrimento e angústia mesmo diante de suas diferenças (Bowlby, 1985). A perda de um filho é uma ferida narcísica, haja vista que é por meio da perpetuação da espécie que os pais buscam burlar a morte, satisfazendo o desejo inconsciente de obter a imortalidade, presente em todo ser humano.
O luto parental dependerá da relação de proximidade estabelecida com o filho (Carlesso, 2008; Monti, 2008; Morelli, Scorsolini-Comin, & Santos, 2013, 2014). Geralmente os pais encaram a fatalidade como uma grande frustração, fracasso e culpa por não terem conseguido proteger seu objeto amado, pois fantasiam que são capazes de tudo pelo filho, que é seu dever protegê-los em prol do amor que sentem (Alarcão et al., 2008; Bittencourt et al., 2011; Carneiro, Souza, & Paula, 2009; Oliveira & Lopes, 2008; Rogers, Floyd, Seltzer, Greenberg, & Hong, 2008).
Apesar do sofrimento do enlutado ser inevitável, por vezes a sua demonstração pode ser vista como fraqueza e, então, ser reprimida e recriminada. Nem sempre é oferecido apoio adequado aos pais, que buscam reagir à dor a partir de seus recursos pessoais. É comum que os enlutados busquem o consolo das pessoas mais próximas, como amigos, familiares e o parceiro. Portanto, o desenvolvimento do luto dependerá do apoio social recebido, além de outros fatores como maturidade do enlutado, personalidade, relação com o ente falecido, entre outros (Gonçalves, 2001; Morelli et al., 2014).
A religiosidade/espiritualidade é uma ferramenta comumente utilizada e mencionada na literatura científica, pois as crenças religiosas/espirituais podem amenizar o sofrimento emocional e auxiliar no encontro das forças necessárias para a restauração (Alarcão et al., 2008; Carneiro et al., 2009; Foster et al., 2009; Tayeb, Al-Zamel, Fareed, & Abouellail, 2010; Walsh, King, Jones, Tookman, & Blizard, 2002). Desse modo, pessoas que frequentam alguma religião ou que possuem alguma crença espiritual tendem a buscar explicações para a experiência da morte, obtendo apoio emocional diante da perda, o que pode contribuir para um enlutamento mais sadio.
A partir desse panorama, o presente estudo teve por objetivo compreender as repercussões da morte do filho em casais religiosos, de modo a evidenciar os possíveis impactos dessa experiência na conjugalidade dos genitores e como a espiritualidade pode interferir nesse processo.
Método
Tipo de Estudo
Trata-se de um estudo descritivo, exploratório e de corte transversal, amparado na abordagem qualitativa de pesquisa, por meio de um estudo de caso coletivo. No estudo de caso coletivo, o pesquisador investiga um determinado fenômeno característico de um grupo de casos individuais. Busca-se, assim, obter uma maior compreensão sobre casos relacionados a esse fenômeno previamente delimitado, podendo até mesmo estender a teorização, mas sem menosprezar as particularidades de cada caso e as limitações envolvidas (Alves-Massotti, 2006).
Participantes
Participaram deste estudo cinco casais heterossexuais em união estável (consensual ou civil) há, no mínimo, cinco anos, praticantes de alguma religião (a especificação "praticante" refere-se às pessoas que relatem participar das manifestações religiosas com certa regularidade, no mínimo, uma vez a cada 15 dias) e que tivessem pelo menos um filho falecido há, no mínimo, um ano, que residisse com os pais em ocasião anterior à sua morte. Nessa amostra de conveniência, não houve qualquer restrição quanto à classificação socioeconômica do casal, à profissão/ocupação, ao grau de instrução, religião praticada, ao tempo máximo de morte do filho, à quantidade de filhos do casal ou a causa de morte.
Instrumentos
Técnica da História de Vida. No primeiro momento, foi solicitado aos cônjuges que relatassem livremente sua história de vida, com suas próprias palavras e do modo como julgassem conveniente. Dessa forma, seria possível abarcar de que modo o sujeito constrói explicações e descrições para a própria trajetória, elencando momentos, eventos, situações e relacionamentos que sejam considerados relevantes para a construção da sua identidade.
Entrevista Semiestruturada. Teve como objetivo investigar como os pais vivenciaram o luto individualmente e enquanto casal, como o evento repercutiu sobre os processos desenvolvimentais, da família e do casamento. Em linhas gerais, foram coletados dados referentes à idade dos cônjuges, escolaridade, renda familiar, emprego/ocupação, religião, tempo de namoro antes do casamento, união conjugal, história da família de origem, experiência da parentalidade, experiência da perda do filho, dificuldades e possibilidades no processo de construção da conjugalidade antes e depois da morte do filho, bem como tópicos sobre a influência da religião e da união amorosa no processo de elaboração do luto. Os roteiros de entrevista semiestruturada (individual e coletivo) foram construídos a partir de uma revisão de literatura nacional e internacional sobre a temática.
Procedimento
Coleta de Dados. Ocorreu após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem dos autores. Os participantes foram recrutados a partir da rede de contatos dos pesquisadores em uma cidade de pequeno porte do Estado de São Paulo e formalizaram sua anuência a partir da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Primeiramente, os cônjuges (identificados por nomes fictícios) foram entrevistados individualmente e, posteriormente, em casal, para que fosse possível perceber como eles compreendem o próprio casamento diante da perda do filho (processos de transformação ao longo do tempo) e a sua interação. No primeiro momento, foi solicitado aos cônjuges que relatassem livremente sua história de vida. Posteriormente, os participantes responderam verbalmente dois roteiros de entrevista semiestruturada (individual e coletivo). A coleta de dados foi realizada no domicílio dos participantes. Foram realizadas três entrevistas com cada casal (uma com o esposo, uma com a esposa e outra com o casal), totalizadas 15 entrevistas face a face, audiogravadas mediante consentimento dos participantes e transcritas na íntegra e literalmente, que compuseram o corpus da pesquisa.
Análise dos Dados. Foram analisadas verticalmente (cada entrevista individualmente, destacando-se, em um primeiro momento, os eixos temáticos encontrados a partir das falas de cada um dos respondentes) e horizontalmente (conjunto formado por todas as entrevistas). Os dados foram categorizados e analisados com base na análise de conteúdo temático. A análise do conjunto de entrevistas permitiu a construção de dois eixos temáticos diretamente relacionados aos objetivos do estudo: (a) Diferentes repercussões do óbito do filho para a união conjugal dos genitores; (b) A religiosidade/espiritualidade e o processo de enlutamento. A discussão dos achados ocorreu a partir da literatura científica disponível sobre luto, conjugalidade e parentalidade (Berttran & Gomes, 2013; Carlesso, 2008; Farinasso & Labate, 2012; Magagnin et al., 2003; Oishi, 2014; Scorsolini-Comin & Santos, 2012).
Resultados e Discussão
No que diz respeito à caracterização da amostra, a média de idade foi dos pais foi de 45,5 anos e das mães de 40,5. Os casais estão unidos há 21,5 anos, em média. Os motivos de morte do filho foram: acidente automobilístico (dois casos), adoecimento (dois casos) e aborto espontâneo (um caso). Todos os pares perderam filhos do sexo masculino. Nenhum casal recebeu auxílio profissional durante o enlutamento. Dentre as religiões dos cônjuges, destacam-se a religião católica (dois casos), evangélica (dois casos) e espírita (um caso) (Morelli et al., 2014).
Os participantes Fátima e Pedro (Casal 1) possuem quatro filhos, o terceiro filho faleceu aos 19 anos de acidente automobilístico. José e Maria (Casal 2) possuem três filhos, perderam o filho caçula quando tinha 19 anos, em acidente automobilístico. O casal 3 (Margarida e Bento) possui dois filhos, o caçula faleceu de câncer aos 27 anos. Os participantes Nayara e Tales (Casal 4) perderam os filhos (gêmeos) quando a mãe estava no quarto mês de gestação. O casal 5 (Elisa e Carlos) tem dois filhos, o filho caçula faleceu com 37 dias de vida por pneumonia (Morelli et al., 2014). A seguir, apresenta-se a análise dos casos a partir dos eixos temáticos elencados.
Diferentes Repercussões do Óbito do Filho para a União Conjugal dos Genitores
Nos casais 4 e 5 a morte do filho não repercutiu negativamente na relação amorosa dos pares. Alguns elementos são fortemente expressos nestes casais, como a cumplicidade, a identificação com o parceiro e a capacidade de "sentir-com" o outro, para que juntos pudessem caminhar rumo a uma reconfiguração do matrimônio e da família. O fato de o casal 4 ter enfrentado a morte do filho na gestação pode estar relacionado a esse processo de rápida reestruturação, uma vez que após a perda vieram outros filhos e houve a oportunidade de uma experiência satisfatória de parentalidade. Elisa e Carlos (casal 5) exaltaram que se fortaleceram, a fim de ofertar à filha força para ajudá-la a entender e aceitar a dolorosa perda do irmão, apesar de se encontrarem em um dilaceramento emocional.
O casal 2 também expressou que reestabeleceu a homeostase familiar, pois conseguiu ressignificar o evento da perda, buscando ampliar sua percepção para além do sofrimento, identificando aspectos positivos da trama para o enlace marital e para a família. O casal verbalizou que seus outros filhos se reaproximaram após a perda do irmão e, por sua vez, os cônjuges também ficaram mais próximos. "Foi assim, ele [esposo] deu muita força pra mim e eu dei muita força pra ele, os dois dando força um para o outro e os filhos também" (Maria, entrevista com o casal, casal 2).
A morte de um membro da família coloca em risco a homeostase familiar e suscita importantes desdobramentos sobre a relação familiar e marital dos pais (Bolze & Castoldi, 2005; Labate & Barros, 2006; Morelli et al., 2013). Scorsolini-Comin e Santos (2012) veem o arranjo conjugal como um fenômeno dinâmico, uma construção permanente que está suscetível a transformações com o decorrer dos anos. A união vai se modificando durante o ciclo da vida familiar, ajustando-se diante dos conflitos e crises, assim como os cônjuges vão negociando possíveis soluções, visando à adaptação e preservação do equilíbrio.
Na prática clínica em Psicologia, o chamado "sentir-com" diz respeito a uma empatia com o outro, onde o indivíduo, ao se colocar no lugar do seu semelhante, passa a sentir o mundo a partir do outro. A empatia colaboraria para tornar possível uma melhor compreensão do outro e para o estabelecimento de uma intimidade real. Concebe-se, assim, que em alguns casais (2 e 5) esse processo de sentir e estar-com o parceiro ocorreu naturalmente, mesmo diante dessa ruptura brusca com o filho, possibilitando a reestruturação do casal. Em contrapartida, os casais 1 e 3 explicitaram que vivenciaram a fase do luto individualmente, o que mostrou-se complexo para a díade conjugal. Declara-se que, além desse aspecto, outros perpassaram o luto desses casais, como sentimento de culpa, rigidez de crenças religiosas, entre outros.
Observa-se, desse modo, que o compartilhamento da experiência por parte da díade foi importante para que os casais suportassem o sofrimento. Embora seja importante compreender que cada membro possui mecanismos específicos para reagir à perda e mesmo um modo particular de lidar com o sofrimento, notou-se uma superação mais rápida nos casais que se ajudaram mutuamente, colocando em destaque a conjugalidade como recurso privilegiado no enfrentamento da morte, haja vista que ambos são genitores e sabem, de fato, como é passar pela experiência da perda do filho (Morelli et al., 2014).
No casal 4 observou-se o enlutamento em relação à expectativa da gravidez, o que evoca a necessidade de compreender as especificidades da perda perinatal, considerada de grande repercussão para o casal parental, confrontado em suas potências e no rompimento brusco dos planos e sonhos construídos em relação ao filho. Há consenso que a perda perinatal envolve sentimentos complexos que disparam conflitos relacionados à identidade feminina, ao papel da mulher na sociedade, bem como à morte e seus tabus (Duarte & Turato, 2009). Os estudos existentes apenas tangenciam a questão da conjugalidade no contexto da perda perinatal (Muza, Sousa, Arrais, & Iaconelli, 2013), com pouco espaço para a observação do casal tanto como depositário de um processo de sofrimento e frustração, como de possibilidade de reestruturação do psiquismo (Morelli et al., 2014).
Os cônjuges entrevistados apontaram mudanças em diferentes facetas do matrimônio após a perda dos gêmeos. A notícia da gestação ocorreu pouco tempo depois da consolidação da união. Este casal teve dificuldade no processamento do luto de forma conjunta, mas a nova gestação trouxe renovação do casamento e fez ressurgir a expectativa da parentalidade. A esposa destaca mudança na postura emocional do esposo, enquanto ele aponta mudanças na família e em suas metas. Essas mudanças foram provenientes de muitos fatores além da perda dos filhos, como a oficialização da relação. Tales, atualmente, consegue ver a relação sob a lente da identidade conjugal "... o casamento pra mim agora é tudo, não tem mais aquelas brigas, muito raro ter, eu acho que cada vez mais, meu jeito de expressar meu amor por ela é diferente sabe..." (Tales, entrevista individual, casal 4).
A parentalidade tem grande impacto na conjugalidade, incitando reorganização do sistema familiar e das relações, ao atualizar sentimentos positivos (Magagnin et al., 2003; Morelli et al., 2014). Todavia, a morte dos filhos ainda no útero culminou no sentimento de frustração em relação à gestação e a idealização construída em torno do processo inicial do "tornar-se pais". Muitos casais podem apresentar problemas psicossociais durante esse decurso, caso não recebam acolhimento. É comum que busquem explicações a fim de justificar o acontecimento, atribuindo um sentido ao fato, como foi constatado nas falas de Tales e Nayara. O casal sente-se morto enquanto pais, já que com a morte do bebê se perde a função de pais daquela criança tão esperada (Consonni & Petean, 2013). Esse desamparo ocorrido na perda perinatal evoca a necessidade de uma rede social de apoio, além de uma ajuda profissional, por exemplo, nos hospitais, a fim de auxiliar a família, notadamente o casal, em sua estruturação após a morte do filho (Muza et al., 2013).
No casal 1, o esposo, enrijecido em seu papel de "homem da casa", não expressava seus sentimentos, e a esposa, que precisava de apoio incondicional, não se identificava com o parceiro. Dentre os fatores que repercutiram sobre este casal, pode-se dizer que o sentimento de culpa da mãe contribuiu para a intensificação do seu sofrimento e o esposo sentia-se impotente frente ao fato, não conseguia estar com a esposa. É importante frisar que, nesses momentos, somente a presença física do cônjuge não é o bastante. Esse legado familiar permite que Fátima expresse e exalte toda a sua tristeza diferentemente do esposo "... chegava em casa não queria alimentar direito, não queria saber de nada, aí fizeram oração pra mim ... eu sentia assim só vontade de morrer, pensava muita bobeira, foi muito difícil pra mim..." (Fátima, entrevista individual, casal 1). Por esses e outros movimentos, Pedro e Fátima se distanciaram durante o enlutamento. Pedro destaca que o sofrimento foi maior na esposa pelo fato de que as mães naturalmente sofrem mais com a perda, uma vez que "carregaram" os filhos no útero, havendo uma ligação mais forte. Individualmente foi capaz de se reerguer após a morte do filho com a crença de que Deus estaria ao seu lado e de que tinha ocorrido a vontade divina. Mesmo diante das diferenças, o casal fez uso da espiritualidade e de seus mecanismos internos para sanar a emergência da dor e cessar possíveis desacordos que pudessem ameaçar a união.
No casal 3, por vivenciar diferentes fases do luto, a esposa ainda estava na fase de negação, enquanto o esposo já havia aceitado a perda antecipatoriamente. Para Bento, que acompanhou o filho durante o longo processo de quimioterapia, a morte do filho colocou um fim ao sofrimento gerado pelo tratamento, trazendo alívio para aquele que o acompanhou. O "luto antecipatório" ocorre quando o outro ainda está vivo e a sua perda é sentida relacionada tanto a aspectos concretos, por exemplo, da saúde, como aspectos subjetivos (Fonseca, 2004; Morelli et al., 2013). O esposo mostrou-se resignado frente à problemática, mas não conseguiu ajudar Margarida. A esposa se sentiu sozinha por não encontrar semelhanças em sua dor com a de Bento e verbalizou que o casamento estava perdendo o sentido. Essas peculiaridades do caso contribuíram para que se emanassem sentimentos de solidão e incompreensão na mãe "... minha família é grande, eu tenho muito apoio, eu tenho, nós dois [se refere ao esposo], só que assim eu me vejo, me vejo sozinha porque ele não tá mais, eu me vejo sozinha" (Margarida, entrevista individual, casal 3).
Todos os casais vivenciaram grande sofrimento em decorrência da morte do filho, que envolveu sentimentos de impotência, desamparo e angústia. Entretanto, Margarida, diferentemente dos demais, sente como se tivesse se perdido junto com a morte do filho, perdeu o sentido da vida, do matrimônio e se vê extremamente desamparada. Infere-se que diante da culpa que sente, gerada a partir da sua ausência durante o tratamento quimioterápico, introjeta a figura do filho morto, identificando-se plenamente com o objeto perdido. A composição básica desse desamparo foi a culpa e o excesso de ansiedade gerado dessa experiência traumática que ocasionou desajuste interno, como também ocorreu no estudo de Carlesso (2008).
Percebeu-se que os mecanismos de defesa foram amplamente utilizados por todos os casais, surgindo como reação à angústia, com objetivo de evitar danos maiores aos enlutados com dificuldades de aceitação. A negação e a repressão da existência da morte são os mecanismos mais frequentemente utilizados para suportar a dor, reestabelecer o equilíbrio e evitar a consciência de sua própria finitude. As manifestações de angústia são subsídios da pulsão de morte presente em diversos momentos da vida do ser humano. A angústia de castração, para Freud, diz respeito a uma reação frente a qualquer ameaça à vida e ao ego e se faz presente em situação de limitações (Gonçalves, 2001). Para Klein (1948/1991), a angústia de aniquilamento é uma fonte de ansiedade que surge por medo de ser destruído, resultado da luta entre a pulsão de vida e de morte. Desse modo, fica clara a analogia existente entre a vivência dos pais e o sentimento de impotência relacionado à angústia de castração e aniquilamento.
Diante da angústia de aniquilamento, a perda do filho pode despertar a sensação de se perder e da desintegração. Com base na teoria winnicottiana, o enlutado que encontra no parceiro um espaço psíquico, uma sustentação para que possa passar por essa experiência sem se desestruturar e desintegrar-se terá mais facilidade de superação. Essa sustentação nomeada por Winnicott de holding diz respeito ao manejo clínico utilizado por analistas a fim de ofertar um setting adequado de acordo com necessidade dos pacientes até que ele seja capaz de desenvolver seu verdadeiro self e assumir os desafios da vida. O holding também deve ser ofertado pela mãe ao filho desde os primeiros cuidados para que diante de experiências angustiantes possa confiar nas relações estabelecidas e tirar bom proveito das experiências ruins que são parte do ciclo vital de todos (Winnicott, 1972/1991).
Quando existe compreensão e acolhimento, as chances do enlutamento saudável ocorrer são maiores do que se o casal estiver em conflitos, como pode ser notado nos casais 2 e 5 (Gonçalves, 2001). Oishi (2014) destaca que o envolvimento prévio do casal auxilia no ajustamento do par após a perda, pois a reconfiguração da vida pode se tornar complicada caso um dos cônjuges permaneça fixado na perda. Bolze e Castoldi (2005) afirmam que a morte de um filho, especialmente de uma criança, pode ser extremamente perturbadora e devastadora para a relação marital. Fica claro que a conjugalidade e parentalidade estão entrelaçados de forma tão íntima que qualquer crise em um dos lados pode afetar o outro. Portanto, uma crise como o óbito do filho pode fragilizar e colocar em pauta a união amorosa, como foi notado no casal 3, em que a conjugalidade foi fortemente atacada (Berttran & Gomes, 2013).
Alguns cônjuges estavam em momentos muito distintos, mergulhados em uma dor individual tão emergente que não conseguiram enxergar a dor do outro, o que pode ter provocado distanciamento na relação, como pode ser verificado no casal 3, em que se observou afastamento e intensa crise conjugal (Morelli et al., 2013). Destaca-se, desse modo, que a conjugalidade pode ser tanto uma dimensão que contribui para que os cônjuges permaneçam juntos diante das fatalidades da vida como uma dimensão diretamente afetada pelo enlutamento, o que pode repercutir de modo negativo para o relacionamento marital. No entanto, uma ressalva faz-se necessária: ainda que o compartilhamento da experiência de sofrimento pelo casal seja potencializador de um enfrentamento sadio, como observado na maioria dos entrevistados, é importante não desconsiderar as especificidades de cada cônjuge, de modo que a individualidade não pode ser considerada o avesso da conjugalidade, mas uma dimensão que a constitui e que contribui permanentemente para a sua recriação e atualização (Scorsolini-Comin & Santos, 2012). Considerar a conjugalidade é, portanto, atentar-se também para os elementos individuais e as necessidades de cada membro da díade. O respeito pela dimensão pessoal de cada cônjuge e de sua história com o filho falecido pode contribuir para uma abordagem conjugal que considere os movimentos de cada um, sendo a conjugalidade um processo também de ajuda, mas não de padronização do sofrimento, como se ambos tivessem que experienciar os mesmos sentimentos e ao mesmo tempo. Reconhecer essa temporalidade na experiência individual do luto também pode ajudar nesse processo de enfrentamento, sendo a conjugalidade um espaço para que isso possa se manifestar e ser acolhido e compreendido.
A Religiosidade/Espiritualidade e o Processo de Enlutamento
A religiosidade/espiritualidade pode ocupar um papel importante no modo como o casal irá se posicionar diante da morte do filho. A prática religiosa/espiritual pode interferir na resiliência dos indivíduos, fazendo com que encontrem recursos internos para a superação da perda, ao mesmo tempo em que pode oferecer explicações sobre a morte e sobre o sofrimento, o que tende a gerar maior conforto nos enlutados (Adrião, 2013). É notória em todos os casais a interferência da crença na forma como a dor da perda é enfrentada, o que recupera também o próprio status da conjugalidade, pois todos os casais entrevistados foram unidos pelo casamento religioso. O fato de constituírem um casal também possui uma ressonância diante da religião professada, que proporcionou recursos para o enfrentamento da angústia:
Jesus, eu te devolvo essa joia que o Senhor concedeu para nós, eu te agradeço os 19 anos que o Senhor deixou comigo ... eu tô com uma espada transpassada em meu coração e só o Senhor pode me ajudar. Fui louvando, fui agradecendo, fazendo aquele louvor do fundo do meu coração, eu senti um alívio, sabe? Um alívio grande, fui até lá ver meu filho, vi que ele tava no caixão... (Maria, entrevista individual, casal 2)
No caso de Maria, observa-se uma compreensão da morte do filho como um desejo divino, como se a perda fosse o desfecho de uma história ou o cumprimento de uma missão. A mãe compreende que atuou cuidando do filho em sua experiência terrena, mas que a sua maternidade não se sobreporia aos desígnios de Deus ou à vontade de um ser espiritual que estaria acima de todos. Por compreender a importância desse momento, a morte acaba por ser experienciada como um momento de cumprimento de jornada, de efetivação de algo que deveria mesmo ocorrer por diferentes motivos: vontade de Deus, para que o filho não sofresse, para que os pais cumprissem sua missão, entre outros. Ao ressignificar o sofrimento como parte de um processo divino e transcendental, Maria sente alívio e diminui sua angústia como se tivesse ocorrido uma revelação. Essa revelação se dá em um momento de oração, o que repercute posteriormente no modo como ela compreende essa dor e a explicita para as pessoas ao seu redor.
Desse modo, mostra-se a importância de se buscar refletir e compreender a interferência dessas crenças no desenvolvimento desses casais após a perda do filho (Nascimento & Roazzi, 2007). Pelos casos relatados, nota-se que a revolta, a tristeza, a angústia, a indignação e os sentimentos de culpa e impotência minimizam-se diante do suporte que as religiões oferecem, por meio das premissas religiosas e/ou apoio social, justamente por proporcionarem aos enlutados forças e renovação das energias diante do processo de reestruturação de suas vidas (Alarcão et al., 2008; Bousso et al., 2010; Farinasso & Labate, 2012).
Enlutados que possuem crenças religiosas ou uma vivência de espiritualidade conseguem elaborar o luto de modo mais sadio e com menos complicações (Farinasso & Labate, 2012). Apenas Margarida (casal 3) aponta para uma rigidez de crença religiosa que lhe despertou inquietação. A esposa não se sente à vontade para expor suas tristezas por acreditar que isso colocaria em questão a sua fé. Como já foi esclarecido, Margarida está passando por um enlutamento complicado, haja vista que a intensa identificação com o filho morto resultou na perda do "sentido" em várias facetas de sua vida: casamento, familiar e até mesmo de sua religiosidade. Fato que afirma sua total condição de desamparo e sua dificuldade de encontrar recursos internos e reconhecer recursos externos que possam lhe ajudar.
A crença de cada indivíduo e a forma como cada um interpreta as crenças religiosas e atribui sentido e significado à morte podem contribuir positivamente ou não com o enlutamento. A espiritualidade mostrou-se neste contexto de intenso sofrimento como um recurso, justamente por oferecer respostas aos cônjuges em termos de explicação para a morte e para a fase de dor experienciada pelos participantes. Como explicitado por Pedro (casal 1):
... Se não fosse Deus eu não aguentava também não, que é difícil perder um filho, perder não, devolver para Deus, mas Deus me deu tanta força que no outro dia eu já tava na igreja, graças a Deus, eu sei que ele tá num bom lugar, por isso fico feliz, sei que está com Deus.
A certeza de que o filho estava amparado após a morte, a crença na continuidade da vida e na efemeridade da experiência da vida terrena (o filho foi "devolvido" para Deus) fizeram com que o luto pudesse ser elaborado de modo sadio pelo esposo, que pode ajudar a companheira, mais abalada com a notícia.
A mesma crença no "empréstimo" do filho aparece no relato de José (casal 2): "Deus não dá para nós os filhos, ele empresta! Nós não sabemos quando é pra devolver, ele leva pra ele e fale 'é meu', e assim é Deus, empresta o filho para gente". Esse modo de conceber a parentalidade como algo transitório na vida ou como uma experiência ao longo da passagem pelo mundo terreno gera nesses pais a sensação de que o desempenho da função paternal cumpriria os desígnios de Deus, de modo que a verdadeira filiação dar-se-ia no plano espiritual. Essa forma de compreender os laços estabelecidos entre as pessoas (notadamente entre pais e filhos) ao longo da vida permite certo conforto aos pais justamente por eles "delegarem", em certa medida, a responsabilidade pelos acontecimentos e fatalidades a uma entidade divina (Deus), o que diminui a culpa dos genitores sobre os eventos traumáticos, aliviando a dor e possibilitando uma nova compreensão sobre a morte.
Contudo, nem sempre essas crenças conseguirão minimizar o sofrimento e responder satisfatoriamente a todos os questionamentos daqueles que vivem essa busca de explicações (Bousso et al., 2010). Consonni e Petean (2013) confirmam essa afirmação destacando que a religião é um forte mecanismo de enfrentamento; entretanto, para muitos, pode incitar fortes sentimentos de culpa e punição, o que tende a dificultar a aceitação e o enlutamentamento. No caso de Margarida ocorre algo semelhante, pois sua religião prega que ela precisa compreender o sentido da experiência da morte como parte natural da evolução espiritual, o que desperta a sua angústia justamente por sentir muita saudade e estar muito apegada à imagem do filho e suas memórias. Em seu relato, sente dificuldade de aceitar a perda do filho e não compreende como esse sofrimento pode ser acolhido ou explicado por uma religião. Mesmo assim, considera o apoio recebido pela comunidade religiosa como algo importante nesse momento, ainda que as explicações para esse evento traumático oferecidas pela religião não consigam confortá-la ou diminuir o seu sofrimento. Nesse momento de dor, as pessoas podem tanto usar a religião como apoio como também questionar seus dogmas, em um movimento considerado natural devido ao intenso sofrimento (Morelli et al., 2013, 2014).
Os casais 2 e 5, que elaboraram o luto satisfatoriamente, realizam, com frequência, depoimentos de superação em suas igrejas, elencando a morte do filho como parte do processo de amadurecimento e de provação: "Falar dele não me entristece, falar dele é até gostoso. Tem gente: 'Aí você vai ter que dar testemunho, não te faz mal?'. Eu falei: 'Não! Pelo contrário, é bom a gente falar nele'" (Maria, entrevista individual, casal 2). Ao falar da perda do filho na igreja, esse casal promove um duplo papel: relembra-se a memória do ente querido, notadamente as suas características positivas, perpetuando uma boa imagem de filho, ao mesmo tempo em que permite apoiar outras pessoas que passam pelo mesmo problema, destacando a possibilidade de superação a partir do engajamento espiritual e de uma compreensão mais ampla acerca da morte e das experiências ao longo do ciclo vital. Desse modo, oferecem a possibilidade de ampliar as experiências dolorosas em busca de uma ressignificação que promove um movimento contrário à dor, que é a aceitação do evento como parte do processo de crescimento, evolução e aprendizado ao qual todos estão submetidos.
Relembrar o filho perdido é reviver sentimentos ligados a ele, o que funciona como um dos mecanismos mantenedores do vínculo pais-filho e contribui com a adaptação e elaboração da perda a cada vez que são trazidas à tona essas memórias (Consonni & Petean, 2013; Farinasso & Labate, 2012). A religião permite a construção de um espaço subjetivo em que, ao narrarem suas histórias, podem elaborá-las, ressignificar o fato, atribuindo-lhes novos sentidos de acordo com o acolhimento e as concepções religiosas em vigor. Uma das formas saudáveis de entender a morte é acreditar que deste evento trágico pode resultar um aprendizado, a família pode se unir, formar uma nova identidade e evoluir. Os casais 2 e 5, por exemplo, acreditam que a partir de seus experiências e do aprendizado acumulado podem ajudar outras pessoas enlutadas na mesma comunidade religiosa. Esse sentimento de poder ajudar o outro a partir de uma vivência dolorosa contribui, pelos relatos, para um abrandamento do sofrimento e para a ressignificação do mesmo como algo maior e que se crava na experiência de vida de cada um, associando também à ordem do divino, ou seja, de uma experiência espiritual significativa.
A espiritualidade e religiosidade permitem que haja uma renovação, uma restauração e, assim, o indivíduo vai conseguindo resgatar seus recursos internos para que consiga lidar com eventos traumáticos, como a morte do filho (Bousso et al., 2010). As consequências positivas da interferência da religião no evento traumático em questão dependem de vários fatores relacionados com o mesmo que tecem o contexto da perda. A religiosidade pode interferir na maneira como o casal atribui significados ao mundo, à morte, à vida e à forma como constrói suas concepções que conduzem seus pensamentos e ações (Alarcão et al., 2008), conferindo um sentido mais amplo sobre as experiências da conjugalidade e da parentalidade.
Nos casais entrevistados, no entanto, deve-se destacar que a espiritualidade não se processou sozinha, estando atrelada à vivência do casal e ao modo como a conjugalidade já era experienciada anteriormente. A integração dessas dimensões contribuiu para o enfrentamento na maioria dos casais, embora tenha permitido também alguns questionamentos, notadamente no casal 3, sumarizados na necessidade de utilizar as explicações religiosas para a morte e na dificuldade de compartilhar o sofrimento com o companheiro. De qualquer forma, a dimensão espiritual, pelos relatos deste estudo, parece atrelada ao modo como esses pares constroem a própria conjugalidade, o que se observa desde a oficialização do matrimônio diante de alguma religião. Ser casado nessa amostra é também partilhar de uma espiritualidade, em alguns casos como um modo de demonstrar a força da união e dos sentimentos que unem maritalmente homem e mulher.
Observamos nessa discussão duas possibilidades: (a) a espiritualidade vivenciada de modo coletivo e promovendo a união do casal para que este possa ser um exemplo de resiliência e de reestruturação diante da comunidade de referência (Casal 2); (b) a espiritualidade vivenciada de modo individual, sendo uma dimensão na qual cada cônjuge, mesmo na conjugalidade, pode ter uma experiência própria em relação ao que acredita e ao modo como essa crença interfere no processo de enlutamento (Casal 3).
Considerações Finais
Diante das experiências trazidas neste estudo, notou-se que a morte do filho interferiu na vivência conjugal, tanto unindo os cônjuges em alguns casos (ou em momentos específicos da experiência) quanto os afastando, repercutindo na forma como atuam enquanto casal. É também inegável a utilização das premissas religiosas na aceitação da morte e no enfrentamento da dor. As explicações sobre a morte oferecidas por algumas religiões podem não apenas acalmar os enlutados, como favorecer a retomada da vida e dos projetos pessoais após o período de maior sofrimento. Assim, tanto a conjugalidade quanto a espiritualidade foram mecanismos de enfrentamento utilizados pelos casais no momento da dor, em um cenário com escasso acesso ao acolhimento psicológico ou de qualquer profissional de saúde (Morelli et al., 2014).
No entanto, há que se reconhecer que as crenças religiosas também podem dificultar o processo de enlutamento em alguns momentos, justamente por não permitirem a livre expressão de sentimentos de angústia e sofrimento diante da perda. Não é pelo fato da experiência da morte ser explicada por uma religião que o sofrimento não possa ocorrer e não deva ser trabalhado pelo enlutado. Assim, a explicação do sofrimento não seria capaz, por si só, de ajudar o enlutado, o que nos faz atentar para o fato de que uma rede social de apoio mais ampla, bem como um serviço de apoio psicológico estruturado, possa promover, de fato, maior bem-estar após esse evento traumático.
Obviamente que essas fontes de apoio emergiram em casais que relatavam satisfação em seus relacionamentos amorosos e que já praticavam uma religião mesmo antes do evento traumático. Desse modo, a conjugalidade e a espiritualidade já faziam parte das experiências dessas pessoas, de modo que a potencialização dessas dimensões pode ter ocorrido por se tratarem de aspectos diretamente relacionados a aspectos como o cuidado, a compreensão, a assimilação da perda e à promoção do bem-estar. A busca por casais praticantes de alguma religião já apontava para uma hipótese do estudo: estariam esses casais mais preparados para a experiência do luto ou, em outras palavras, tais pessoas poderiam compreender essa experiência de modo menos doloroso? O delineamento proposto não nos permite estabelecer comparações, mas há que se destacar que o apoio espiritual advindo de diferentes religiões contribuiu, na maioria dos casais, para que a experiência de sofrimento pudesse ser abrandada a partir de uma maior compreensão sobre a morte e também do apoio social promovido pela comunidade religiosa.
Algumas limitações podem ser identificadas neste estudo, como a diversidade dos casos abarcados, uma vez que um dos casais perdeu um filho recém-nascido, outro perdeu os filhos durante a gestação e há, ainda, casais que perderam filhos já adultos. As perdas ocorreram por adoecimentos, acidentes automobilísticos e aborto espontâneo. Essas limitações foram apontadas na discussão e a sua existência não diminui o potencial do estudo, que traz contribuições enriquecedoras para a literatura da área. A maior delas talvez seja a consideração da conjugalidade e da espiritualidade como fontes de apoio e de enfrentamento, o que não coloca tais dimensões como soluções, mas como aspectos que podem ajudar os casais a compreender o sentido dessa experiência. Não se descarta, com isso, a existência de outras fontes também importantes, como uma rede social de apoio composta por familiares, amigos, colegas de trabalho, entre outros, bem como a própria oferta de apoio psicológico estruturado. Investigar casais que não sejam frequentadores de uma religião, em estudos futuros, pode contribuir para a compreensão de como ocorre essa elaboração e se a espiritualidade é uma dimensão que pode promover uma diferença significativa neste contexto de intenso sofrimento.
O presente estudo pretende incentivar novas pesquisas na área, possibilitando a construção de serviços de apoio psicológico aos enlutados. Fortalecer os vínculos conjugais e promover uma rede de ajuda centralizada, por exemplo, em alguma instituição religiosa, pode permitir que os casais não apenas ressignifiquem a experiência da dor da perda, mas que também possam ampliar o repertório de apoio social e emocional para outras circunstâncias da vida. A visibilidade desses casais pode despertar o interesse de outros pesquisadores e também de delineamento de intervenções nas diversas fases do enlutamento. Dessa forma, podemos também refletir sobre a prevenção do sofrimento tanto em equipamentos de saúde como em instituições religiosas, o que ainda deve ser mais investigado e ampliado diante do conhecimento científico já disponível e ainda vindouro.
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Endereço para correspondência:
Fabio Scorsolini-Comin
Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Rua Conde de Prados, 155, Nossa Senhora da Abadia
Uberaba, MG, Brasil 38025-260
E-mail: anabarbaramorelli@hotmail.com e fabioscorsolini@gmail.com
Recebido: 10/12/2014
Aceite final: 16/05/2015
Agência de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).