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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.10 no.1 Rio de Janeiro June 2007

 

 

O acompanhamento psicológico a óbitos em unidade pediátrica

 

Psychological assistance to death in pediatrics unit

 

 

Aniele Lima de Souza1; Shana Hastenpflug Wottrich2; Cynthia SeeligI, 3; Evelyn Soledad Reyes ViguerasI, 4; Patrícia Pereira RuschelI, 5

Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul. Fundação Universitária de Cardiologia (IC/FUC)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Introdução: Vivemos em uma sociedade propensa a ignorar ou evitar a morte (Kübler-Ross, 2005), pois é uma experiência que expõe o ser humano a sua própria impotência (Freitas, 2000). A confrontação com a perda, bem como a dor física e emocional advinda dessa experiência, parecem ser ainda mais intensos quando se trata da morte de um filho, visto que há interrupção de uma seqüência esperada (Freitas, 2000). Objetivo: Descrever aspectos da experiência do Serviço de Psicologia Clínica de um hospital de referencia em cardiologia no RS relacionados ao acompanhamento de familiares mediante óbito de crianças internadas em Unidades Pediátricas.Método: Relato de experiência profissional. Foram estudados 35 relatos de casos de óbitos, registrados nos prontuários do Serviço, atendidos nas Unidades Pediátricas do hospital, no ano de 2006. Os encaminhamentos são realizados pela equipe médica e de enfermagem das respectivas Unidades. O acompanhamento pode, em alguns casos, iniciar exatamente no momento da notícia do óbito que é anunciada pelo médico. Resultados: O impacto psicológico dessa situação de perda causa reações de revolta ou desnorteamento nas quais, por vezes, é necessária a contenção física. O Serviço de Psicologia é colocado como referência, oferecendo um espaço que contemple acolhimento e escuta. Além disso, o profissional encarrega-se de identificar o membro da família com condições de encaminhar os trâmites legais para o sepultamento, encaminhando-o ao Serviço Social ou a outros serviços de referência para realização da parte burocrática do óbito. Os familiares também são acompanhados no morgue do hospital, onde podem permanecer com a criança falecida. É nesse momento que a confrontação com a morte dá-se de forma direta. Acompanha-se o trânsito entre as fases iniciais do processo de luto, intervindo-se no sentido de mediar esse momento de tanta dor. Conclusão: Percebe-se que essa modalidade de acompanhamento permite maior acolhimento dos aspectos psico-emocionais presentes diante da morte, buscando auxiliar no começo de um processo saudável de luto, tanto por parte dos familiares das crianças, quanto da equipe.

Palavras-chave: pediatria, Óbito, Atendimento psicológico, luto.


ABSTRACT

Introduction: We live in a society that tends to ignore or avoid death (Kübler-Ross, 2005), since it is an experience that exposes the human being to his own impotence (Freitas, 2000). The confront with the loss, as well as the physical and emotional pain which comes from this experience, seem to be even more intense when it is the loss of a child, because there is an interruption of the expected sequence (Freitas, 2000). Objective: To describe aspects of the experience of the Clinic Psychology Service of a reference hospital in cardiology in RS concerning the assistance given to family members during the moment of death of children attended to at Pediatric Units.  Method: Professional experience report. 35 case-reports of death assisted in the Pediatric Units of the hospital, in 2006, registered on the files of the Service, were studied. The requests for psychological assistance are accomplished by the physicians and nurses in the respective units. Assistance can begin exactly in the moment the death is communicated by the physician, in some cases. Results: The psychological impact of the situation of loss causes reactions of revolt or confusion. Such reactions sometimes require physical contention. Psychology Service is offered as a reference, providing a space which contemplates listening and refuge. Besides, the professional identifies the member of the family that is emotionally capable of carrying on the legal procedures of the burial, directing him or her to the Social Service or to other reference services for the accomplishment of the bureaucratic part of the death. Family members are also followed to the morgue of the hospital, where they can remain with the death child. In such moment the confrontation with death happens in a direct manner. The transit through the mourning process initial phases are followed by the professionals, intervening as mediators in this painful moment. Conclusion: This type of assistance provides wider contemplation and understanding of the psycho-emotional aspects related to death, aiming to help the beginning of a healthy mourning process, both for the family members of the child and for the hospital team.

Keywords: Pediatrics, Death, Psychological assistance, Mourning.


 

 

Introdução

A morte constitui ainda hoje, um evento de medo universal, algo temido e evitado a qualquer preço. De acordo com Kovacs (apud Ismael, 1995), a morte é um tema universal para o homem, portanto para cada pessoa possui um significado emocional, relacionado às suas vivências anteriores, experiências frente à morte e características de personalidade.

Na sociedade moderna, a morte é, ainda, encarada como tabu. As pessoas evitam falar no assunto e se afastam de qualquer situação de dela se aproxima. Quanto mais se criam avanços tecnológicos e científicos, parece que mais se nega a realidade da morte.

O ato de morrer se torna solitário e impessoal. A pessoa que está morrendo é afastada e isolada e mesmo após a morte consumada, os mitos e o afastamento da pessoa morta acontecem (Kubler-Ross, 1998).

Segundo Kovacs (apud Ismael, 1995), a morte está presente desde o inicio do desenvolvimento humano. Ela é experienciada e experimentada já a partir do nascimento até os últimos dias de vida, porém, apesar de “certa”, em algum momento da vida, ela parece não fazer parte de um processo natural. Fala-se dela não como um fato inevitável e natural do ciclo de vida, mas como um acidente, um erro, um fracasso, algo a ser evitado.

O homem tenta se defender de vários modos contra o medo da morte e contra a incapacidade de prevê-la, dominá-la e evitá-la. No inconsciente humano, não se pode aceitar a própria morte, mas acredita-se na própria imortalidade. Embora todo homem tente adiar ou impedir o contato com a morte e com as questões referentes a ela, só se sentirá capaz de enfrentá-la quando iniciar um processo de reflexão sobre a finitude de sua própria existência (Kubler-Ross, 1998).

A morte representa a perda “real” e irreversível de um objeto de amor ou de uma situação investida de afeto. Existem outros tipos de morte, àquelas, nas quais, a morte se dá sem que nenhuma morte concreta tenha ocorrido, como no caso das separações, perdas de emprego, aposentadorias, entrada na adolescência, casamentos, saída dos filhos de casa, perdas materiais e financeiras, perda da saúde e muitas outras. Nesses casos, ninguém morreu, é preciso “matar” o outro dentro de si (Bromberg, Kóvacs, Carvalho, & Carvalho, 1996).

Esses autores complementam suas idéias, pontuando que o processo de luto tem que se instalar, mesmo sem ocorrência de uma morte concreta, pois a sua vivência está presente. Diversos desfechos podem ocorrer, desde uma elaboração da perda e uma reorganização da vida, retomada das atividades diárias e novos investimentos, até uma reorganização que origina desorganização psíquica mais duradoura.

Conforme Ruschel (2006), o impacto e o significado do luto podem ter variações de acordo com a fase do ciclo vital em que a pessoa se encontra. Isto se aplica tanto ao desenvolvimento do indivíduo, como da família, que também passa por constantes processos de transição.

No luto normal, o impacto das perdas pode ser diminuído na medida em que ocorre a formação de novos vínculos, investimento afetivo em novas atividades e apoio social (Ruschel, 2006).

A mesma autora aponta que o luto é uma resposta á separação de uma figura vincular. Quando essa figura vincular é perdida, ocorre a perda de uma base segura, que servia como apoio e refúgio, tornando as experiências ameaçadoras (Bromberg et al.,1996).

De acordo com Parkes (1998), o luto gera desconforto e também altera as funções, porém não causa dor física.  Já as doenças caracterizam-se pelo desconforto e pela alteração da função que atingem, causando, na maioria das vezes, a dor física. O luto assemelha-se a uma ferida física mais do que qualquer outra doença. Como no caso do machucado físico, o “ferimento” aos poucos “cicatriza”. Em algumas situações, a cura é mais lenta ou um ou outro ferimento se abre novamente.

No luto patológico, o vínculo com a pessoa morta, ou com o objeto ou situação perdida, permanece intenso, prejudicando a elaboração saudável e novos investimentos, gerando reações como negação, ambivalência, distorção e fixação no passado, podendo levar ao desequilíbrio pessoal e à doença (Ruschel, 2006).

Segundo Darwin (apud Parkes, 1998), o luto tem uma expressão facial característica. A elevação das sobrancelhas, a testa e a base do nariz franzidos produzem uma expressão parecida com a da pessoa que tenta se proteger da luminosidade. A boca fica bem aberta, mas os cantos ficam puxados para baixo, como a da pessoa que chora. Os soluços irregulares expressam a sufocação da dor do luto.

A dor é uma expressão subjetiva, relativa à necessidade de encontrar o objeto perdido, o que demonstra o impulso de procura que o adulto tem. Quando o processo de luto chega ao fim, a necessidade de encontrar ou reativar a representação do falecido deixa de ter uma intensidade diária (Parkes, 1998).

 

Doença e Hospitalização

Para Bromberg et al. (1996), o diagnóstico de uma doença com prognóstico reservado traz consigo o sentimento de fragilidade humana e o contato com sua finitude. As doenças como câncer, aids e as doenças cardíacas, estão carregadas de um estigma de “sentença de morte”. Essas doenças carregam um fardo, um estigma, que muitas vezes, não correspondem à realidade.

Pacientes com estas ou outras doenças, são chamados de “terminais”, devido ao prognóstico reservado e a representação da proximidade temporal da morte, novamente, nem todos os casos correspondem à realidade. É a presença da possibilidade de morte que assusta, mesmo que as fronteiras entre a vida e a morte não estejam demarcadas e conhecidas (Bromberg et al.,1996).

Temoshok (apud Bromberg et al., 1996) destacou quatro modos de enfrentamento da doença, com diferentes graus de adaptação: o espírito de luta, em que ocorre uma busca intensa por diversos tipos de tratamento; o estoicismo, no qual a pessoa aceita e suporta tudo com resignação e conformismo; a negação e o evitamento do contato com a doença e com a desesperança, em que a pessoa se entrega ao desespero e desiste de lutar, na maioria das vezes, apressando a morte.

A hospitalização também pode ser sentida como uma morte, envolvendo algumas perdas, como mudança de ambiente, afastamento da família, dos amigos, a perda da privacidade, autonomia e solidão, mesmo no meio de muitos “estranhos”. O medo do sofrimento e da dor, podem fazer com que o indivíduo se sinta morto ou prefira à morte do que viver com limitações e medos (Bromberg et al., 1996).

Ainda, conforme os mesmos autores, nas hospitalizações infantis também não é diferente. A criança hospitalizada também passa por todas restrições e sofrimentos psíquicos que o hospital impõe. A criança necessita de outra pessoa, desde o nascimento, e durante a hospitalização também. A criança deixa sua casa e sua família para internar-se em um hospital, indo para um lugar completamente desconhecido, intensificando sua dor psíquica.

Fundamentados nesta revisão sobre o assunto, os autores deste artigo se propõem a realizar um relato de experiência do trabalho realizado, a partir de casos acompanhados e atendidos pela Psicologia, de familiares que enfrentaram a perda de crianças que realizavam tratamentos para cardiopatia, no decorrer do ano de 2006.

 

Método

Relato de experiência profissional, onde foram estudados os registros de 35 casos de óbitos nas Unidades Pediátricas, atendidos pelo Serviço de Psicologia Clínica, em um hospital de referência em cardiologia no Estado do Rio Grande do Sul, no ano de 2006.

O foco do trabalho da psicologia com os familiares referidos tem sido mediar e acompanhar o início de processos de enlutamento.

Os encaminhamentos são realizados pela equipe médica e de enfermagem das respectivas unidades. Na maioria dos casos a assistência da psicologia já iniciou e existe um vínculo estabelecido tanto com o paciente, que foi a óbito, como com a família.   De forma diferente pode, em alguns casos, iniciar exatamente no momento da notícia do óbito que é anunciada pelo médico.

 

Resultados:

O impacto psicológico dessa situação de perda causa reações de revolta ou desnorteamento nas quais, por vezes, chegando a ser necessária a contenção física. O Serviço de Psicologia é colocado como referência, oferecendo um espaço que contemple acolhimento, escuta e trabalho dos sentimentos despertados. Dentre eles destacam-se: a negação da morte da criança; a impossibilidade de visualização da criança morta ou “distorção” do que estão vendo diante de seus olhos, acreditando que a criança ainda está viva e que a qualquer momento vai acordar; a culpa por terem gerado um filho doente, “não saudável”; a impotência por não conseguirem salvar e curar esse filho doente, bem como desesperança frente ao futuro e novos investimentos afetivos.

Além disso, o profissional encarrega-se de identificar o familiar com condições de encaminhar os trâmites legais para o sepultamento, encaminhando-o ao Serviço Social ou a outros serviços de referência para realização da parte burocrática do óbito.

Os familiares também são acompanhados no morgue do hospital, onde podem permanecer com a criança falecida. É nesse momento que a confrontação com a morte dá-se de forma direta. Acompanha-se o trânsito entre as fases iniciais do processo de luto, intervindo-se no sentido de mediar esse momento de tanta dor.

 

Discussão e Considerações Finais:

Percebe-se que essa modalidade de acompanhamento ocasiona maior acolhimento dos aspectos psico-emocionais presentes diante da morte, buscando auxiliar no começo de um processo saudável de luto, tanto por parte dos familiares das crianças, quanto da equipe.

Acompanhar estes familiares permite ao psicólogo observar o momento e a maneira mais adequada para intervir, de acordo com as características emocionais de cada familiar enlutado, bem como ajudar na realização do enfrentamento desse processo, vivenciando as fases peculiares do luto.

É comum a observação de que a vivência assemelha-se a uma ferida física que precisa de atenção e cuidados. Neste momento, é possível acolher e auxiliar aos familiares que se defrontam com a dor da perda de um filho a manifestarem suas dores, entenderem a perda e a “tranqüilizarem-se”. Além disso, cabe ao psicólogo apontar a importância de seus papéis de pais, investimentos realizados e limitações inerentes do ser humano,  aliviando possíveis sentimentos de culpa que já são naturais pela patologia, em muitos casos.

Nos casos em que, tanto a família como o paciente, vinham sendo assistidos ao longo da internação existe um vínculo estabelecido através das sessões psicoterapêuticas realizadas. No caso dos familiares, as observações auxiliam no trabalho pela maior proximidade e conhecimento das características do caso e dos perfis de personalidade. Nestas situações é comum que o profissional também seja exigido afetivamente por enfrentar um processo de luto por seu paciente falecido.

Quando não existia o conhecimento prévio do caso, esta abordagem fica dificultada, na maioria das vezes, por não haver a relação de confiança estabelecida. 

Conforme aponta Parkes (1998), ao final do luto, a representação do falecido deixa de ter uma intensidade diária e vai tornando-se menos presente e constante para os familiares.

No momento em que perdem seu familiar, especialmente uma criança, é muito difícil imaginarmos que esta etapa um dia possa chegar. É nesse aspecto que o trabalho da psicologia se insere e se organiza, propiciando um adequado e especializado apoio, além de um reforço dos vínculos e da rede de apoio familiar, para que a superação do luto possa ser mais provável e menos “devastadora”, evitando, dessa forma,  o luto patológico e suas previsíveis conseqüências físicas e emocionais.

 

Referências Bibliográficas

Bromberg, M.H.P.F; Kovács, M.J; Carvalho, M.M.M.J & Carvalho,V.A. (1996). Vida e Morte: Laços de Existência. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Freitas, N.K. (2000). Luto Materno e Psicoterapia Breve. São Paulo: Summus.

Kovács, M. J. (1995) O profissional de saúde em face da morte. In: Oliveira, M.F.P; Ismael, S.M.C. (orgs.)  Rumos da Psicologia Hospitalar em Cardiologia. São Paulo: Papyrus.

Kübler-Ross, E (1998). A Roda da Vida: memórias do viver e do morrer. Rio de Janeiro: GMT.

Kübler-Ross, E (2005). Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo: Martins Fontes.

Parkes, C.M (1998). Luto – Estudos sobre a Perda na Vida Adulta. São Paulo: Summus.

Ruschel, P.P. (2006). Quando o Luto Adoece o Coração - : luto não-elaborado e infarto. Porto Alegre: EDIPUCRS.

 

 

Endereço para correspondência
Serviço de Psicologia Clínica do IC/FUC
Avenida Princesa Isabel, 395 - Santana
9620-001 Porto Alegre-RS
Tel.: +55 51 3230-3913
E- mail: psicologia.clinica@cardiologia.org.br

 

 

1 Psicóloga Esp, em Cardiologia pelo Programa de Residência Integrada em Saúde: Cardiologia do Instituto de Cardiologia do RS.
2 Psicóloga Esp, em Cardiologia pelo Programa de Residência Integrada em Saúde: Cardiologia do Instituto de Cardiologia do RS.
3 Psicóloga Esp, Psicóloga do Serviço de Psicologia Clínica do Instituto de Cardiologia do RS.
4 Psicóloga Dda, Psicóloga do Serviço de Psicologia Clínica do Instituto de Cardiologia do RS.
5 Psicóloga Ms, Coordenadora do Serviço de Psicologia Clínica do Instituto de Cardiologia do RS.

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