SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número49Articulações da psicologia no território: intersetorialidade na proteção social básicaBioética enquanto emoção e consciência em atos e o contexto de exclusão/inclusão do humano índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.49 São Paulo set./dez. 2020

 

DOSSIÊ - ESTUDOS SOBRE CONTEXTOS DE DESIGUALDADE SOCIAL E A PSICOLOGIA SÓCIO HISTÓRICA

 

Tensões no campo do político e da prática profissional da assistência social1

 

Tensions in the field of politician and professional practice of social assistence

 

Tensiones en el campo de la práctica política y professional de la asistencia social

 

 

 

Katia MaheireI; Marcela de Andrade GomesII; Tatiana MinchoniIII; Felipe Augusto Leques TonialIV; Marcelo Felipe BruniereV Ana Paula Silva HiningVI

IDoutora em Psicologia Social pela PUC/SP, com posdoc em Educação (UNICAMP), Psicologia Social (Universitat Autónoma de Barcelona) e Psicologia Social (PUC/SP). Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, onde integra o Núcleo de Pesquisa em Práticas Sociais, Estética e Política (NUPRA) e pesquisadora do CNPq / maheirie@gmail.com
IIDoutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e professora do depto. de Psicologia desta mesma universidade. Coordenadora da linha de pesquisa "Psicanálise, Políticas Públicas e Direitos Humanos", inserida no Núcleo de Estudos sobre Migrações, Psicologia e Culturas (NEMPsiC). Membro pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Práticas Sociais, Estética e Política (NUPRA) / marceladeandradegomes@gmail.com
IIITatiana Minchoni é doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, na área de Práticas Culturais e Processos de Subjetivação. É membro do Núcleo de Pesquisa em Práticas Sociais, Estética e Política e do Coletivo Sarau do Binho / minchoni.tatiana@gmail.com
IVDoutor em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor do curso de Psicologia do Centro Universitário Estácio de Santa Catarina (São José/SC). Editor da Revista Rizoma: Experiência Interdisciplinares em Ciência Humanas e Sociais Aplicadas / felipetonial@gmail.com
VDoutorando pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Integra o Utu Suru Baco Smica, Grupo de Teatro, Música e Terapia dos Usuários do CAPS-II e o NUPRA (Núcleo de Pesquisa em Práticas Sociais, Estética e Política), do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC. Compõe a Rede de Articulação Psicólogos e Povos da Terra de Santa Catarina / marcelo2x2@hotmail.com
VIÉ mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC / anahining@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo aponta desafios e possibilidades que se apresentam no cotidiano de trabalhadoras de CRAS. Baseando-nos em Jacques Rancière, analisamos as tensões no campo e seus desdobramentos em práticas profissionais. Para tanto, 42 trabalhadoras/es responderam um questionário e participaram de entrevistas coletivas. Para proceder a análise, elaboramos aqui duas categorias: as relações do CRAS/equipe com a gestão e a PNAS; e as condições, rotinas e práticas de trabalho. Os resultados indicam uma tensão entre modelos de atenção, uma assistencialista caritativa, voltada à lógica do Estado mínimo, e outra preconizada pela Constituição de 88, bem como duas lógicas de atuação, uma voltada às ações coletivas e à família, e outra à individualização e judicialização da vida. Mas, indicam, ao mesmo tempo, um exercício de reinvenção das equipes, pautado por processos de desnaturalização e desidentificação, bem como pela construção de estratégias para coletivizar demandas e construir redes intersetoriais.

Palavras-chave: Assistência social; Política; Político; CRAS; Território.


ABSTRACT

This article aims to point challenges and possibilities that arise in the daily lives of CRAS workers. Based on Jacques Rancière, we analyze tensions in the field and their consequences in professional practices. Therefore, 42 workers answered a questionnaire and participated in collective interviews. To proceed with the analysis, we elaborate here two categories: the relationship between CRAS/ managers/PNAS; and working conditions, routines and practices. The results indicate a tension between models of care, a charitable assistance, focused on the logic of the minimal State, and another advocated by the Constitution of 88, as well as two logics of action, one focused on collective actions and the family, and another on individualization and judicialization of life. But, they indicate, at the same time, an exercise in reinventing teams, guided by processes of denaturalization and de-identification, as well as the construction of strategies to collectivize demands and build intersectoral networks.

Keywords: Social assistance; Politics; Political field; CRAS; Territory.


RESUMEN

Este artículo indica los desafíos y posibilidades que surgen en la vida diaria de los trabajadores del CRAS. Basados en Jacques Rancière, analizamos tensiones en el campo y sus consecuencias en prácticas profesionales. Para ello, 42 trabajadores respondieron un cuestionario y participaron en entrevistas colectivas. Para proceder con el análisis, elaboramos aquí dos categorías: la relación entre CRAS/gestión/PNAS; y condiciones de trabajo, rutinas y prácticas. Los resultados indican una tensión entre los modelos de atención, una asistencia caritativa, centrada en la lógica del Estado mínimo, y otra defendida por la Constitución del 88, así como dos lógicas de acción, una centrada en acciones colectivas y la familia, y otra en la individualización y judicialización de la vida. Pero, indican, al mismo tiempo, un ejercicio para reinventar equipos, guiados por procesos de desnaturalización y desidentificación, así como la construcción de estrategias para colectivizar demandas y construir redes intersectoriales.

Palabras clave: Asistencia social; Politica; Politico; CRAS; Territorio.


 

 

Introdução

Este artigo é fruto de uma pesquisa mais ampla2, que teve por objetivo identificar os processos de subjetivação política e experiências coletivas a partir do discurso das equipes técnicas que atuam nos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) localizados na região sul do Brasil. Ao longo do processo de pesquisa, observamos algumas tensões no campo que se desdobram em desafios para a prática de profissionais no âmbito da assistência social. Essas tensões dizem respeito às contingências históricas da assistência social brasileira, que passa a ser um direito garantido após um longo passado de funcionamento sob as lógicas caritativa e assistencialista.

Este artigo se propõe a problematizar desafios e possibilidades que se apresentam no cotidiano de trabalhadoras dos CRAS e, especificamente, identificar os tensionamentos presentes nas relações entre equipe de trabalho do CRAS com a gestão e com as diretrizes preconizadas na Política Nacional de Assistência Social (PNAS); e caracterizar as estratégias desenvolvidas por tais profissionais para a operacionalização da PNAS, bem como as dificuldades enfrentadas para sua efetivação. Assim, tem-se por um lado os desafios em relação às novas diretrizes, práticas e racionalidades em torno dos trabalhos desenvolvidos na assistência social e, por outro, uma compreensão assistencialista pautada no serviço composto por uma Psicologia ainda individual e de certa forma distante dos Direitos Humanos. A análise desse cenário foi conduzida com base em alguns conceitos desenvolvidos pelo filósofo Jacques Rancière, voltados a ideia de um campo político composto pela tensão entre polícia, compreendida genericamente como o que impera nos processos sociais hegemônicos e, política, compreendida como aquilo que marca rupturas nesse mesmo processo, na forma hegemônica de partilhar o sensível da vida coletiva.

Analisamos as tensões no campo e seus desdobramentos em práticas profissionais em 10 CRAS de um município da Região Sul do país. Para tanto, 42 trabalhadoras/es do serviço responderam um questionário e, a equipe específica de cada unidade participou de entrevistas coletivas. A partir das informações produzidas, elaboramos sete categorias de análise, das quais duas serão aqui abordadas: as relações do CRAS/equipe com a gestão e com a PNAS; e as condições, rotinas e práticas de trabalho. Os resultados indicam uma tensão constante entre as determinações da PNAS e as práticas possíveis no território, mas apontam, ao mesmo tempo, múltiplas estratégias inventivas de atuação junto aos usuários, abrindo potências no campo, na política e no horizonte de fazeres de equipes de assistência social no país.

 

A Assistência Social no Brasil

A assistência social no Brasil traz as marcas do entrelaçamento entre a construção histórica do país e as práticas realizadas neste campo. De um passado fundamentalmente assistencialista, caritativo e filantrópico à direito garantido constitucionalmente, a assistência social encarnou diversas facetas no que tange ao trato à pobreza por parte do Estado.

Iniciada com o primeiro damismo na era Vargas, a assistência social se concretizou por décadas via Legião Brasileira de Assistência (LBA) que, em uma parceria público-privado, tinha em seus objetivos congregar sujeitos e organizações de "boa vontade", resultando em ações focalizadas, descentralizadas, assistencialistas e com traços conservadores, operando sob a lógica da caridade. Somente no ano de 1988 com a promulgação da Constituição Brasileira, fruto da luta e reivindicação de movimentos sociais no período da transição democrática pós ditadura civilmilitar é que a assistência social entrou como um dos tripés da seguridade social. Tal mudança situa a assistência social como direito, de caráter universalista e igualitário, que devem ser garantido juridicamente pelo Estado a todas as pessoas.

Entretanto, a garantia desse direito foi morosa, tanto pelos processos políticos que envolviam as eleições diretas após a ditadura, quanto pelo avanço da agenda neoliberal no Brasil, sobretudo a partir da década de 1990, já implementada de forma significativa no cenário mundial (Yamamoto & Oliveira, 2010). Dentre outros aspectos, a redução do Estado, principalmente sob o aspecto de sua responsabilidade social na abertura de espaço para o controle do mercado, é o mote do neoliberalismo, o que impacta diretamente os programas sociais e a breve tentativa de um Estado de Bem Estar Social no Brasil (Draibe, 1993).

Com a promulgação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) e a criação do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) foram dados passos rumo à efetivação do direito. Porém a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) foi lançada somente em 2004, com princípios e diretrizes norteadoras que se mostram desafiadores no que tange à operacionalização da política por parte da equipe técnica até os dias de hoje.

Na PNAS, as famílias, independente dos arranjos que as constituem, são o foco primordial de ação, devendo considerar sob quais condições materiais vivem e que estratégias criam para sobrevivência, em um país com profundas marcas da desigualdade social que se delineiam de diferentes formas nos territórios que o compõem (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004). Assim, a territorialização também aparece na PNAS como diretriz para a organização e atuação da assistência social, por possibilitar a identificação de "problemas concretos, as potencialidades e as soluções, a partir de recortes territoriais que identifiquem conjuntos populacionais em situações similares" (p. 44). Por conseguinte, isso propicia o desenvolvimento da atuação intersetorial, a partir da articulação com demais políticas sociais do território, por meio da qual se tece uma rede de atenção às famílias, fazendo-se, assim, mais uma diretriz da PNAS.

Somadas a essas diretrizes, ainda encontramos a descentralização político-administrativa, cabendo à esfera federal a coordenação geral e às esferas estaduais e municipais, a coordenação e execução dos programas e serviços, tendo em vista: as diferenças socioterritoriais; a participação da população na formulação das políticas e no controle social; a primazia do Estado na responsabilidade da execução da PNAS (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004).

Tais diretrizes serão capilares na construção e execução do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), implementado a partir de 2005. O SUAS é um sistema que regula e organiza as ações socioassistenciais, visando a padronização de serviços e a qualidade no atendimento (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004). Os serviços estão distribuídos por níveis de complexidade da proteção social: a básica e a especial.

O foco específico de nossa análise é a atuação de profissionais na proteção social básica, especificamente, em seu serviço de referência, o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS). A Proteção Social Básica visa prevenir situações de risco social, por meio do desenvolvimento de potencialidades e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. É destinada às pessoas consideradas em situação de vulnerabilidade em função da situação de pobreza, alguma privação material ou de acesso à serviços públicos, além da fragilidade de vínculos afetivos e de pertencimento. Os objetivos dos CRAS são: ofertar o serviço Programa de Atenção Integral à Família (PAIF), assim como programas e projetos socioassistenciais de proteção social básica, para as redes familiares em situação de vulnerabilidade social; articular e fortalecer a rede de Proteção Social Básica local; e prevenir as situações de risco em seu território de abrangência, fortalecendo vínculos familiares e comunitários e garantindo direitos.

A implementação do SUAS nos municípios e a organização da equipe técnica dos serviços é realizada de acordo com a densidade populacional, e tem se configurado como um forte campo de empregabilidade para a psicologia (Macedo, Sousa, Carvalho, Magalhães, Sousa, & Dimenstein, 2011). A prioridade na escolha desta/e profissional para atuar com assistentes sociais e demais profissionais estava prevista na NOB/RH-SUAS (Ministério do Desenvolvimento Social, 2006), tornando-se obrigatório pelo CNAS. Assim, profissionais de psicologia são convocadas/os a atuar com populações e demandas que historicamente não foram seu foco, emergindo a necessidade de discutir e ampliar as práticas e fazeres, enquanto verdadeiros desafios para área.

Dentre os muitos desafios encontrados neste campo relativamente novo de atuação está a necessidade de reinvenção das práticas psi, exigindo de profissionais a "criação de novos conhecimentos e posturas" para atuar junto à população pobre (Yamamoto & Oliveira, 2010, p. 21). Entretanto, esse desafio colocado à psicologia como área não pode ser visto deslocado da história do trabalho voltado à assistência social no Brasil ou da realidade cotidiana dos serviços, correndo o risco de cair em uma culpabilização de profissionais que atuam na ponta. É recorrente a afirmação, por exemplo, de que a formação profissional na Psicologia é insuficiente para atuar no cotidiano do CRAS (Cruz, 2009; Macêdo, Alberto, Santos, Souza, & Oliveira, 2015). A formação acadêmica pautada em uma perspectiva clínica, individualista e liberal também foi apontada como hegemônica nas pesquisas de Isabel Oliveira, Candida Dantas, Solon e Keila Amorim (2011) e Souza e Gonçalves, (2017) que, conforme estes estudos, a precariedade da formação dificulta as possibilidades de fazeres comunitários e comprometidos com as diversas expressões da questão social.

Além disso, vemos que a naturalização de um fazer assistencial voltado à caridade e ao primeiro damismo têm provocado tensões no trabalho por garantia de direitos, trazendo à prática profissional tensões para a efetivação do mesmo. Esta tensão tem trazido muitos desafios à prática profissional, seja por não se afirmar este serviço como um direito da população, seja conflitando com a gestão neoliberal do Estado, acarretando em pouco investimento e posturas evasivas em relação à política, ou seja, por terem que lidar cotidianamente com o imaginário da caridade nos programas e serviços.

Percebemos, também, nas publicações consultadas, uma precarização nas formas de contratação na assistência social. Macedo e Dimenstein (2011) identificaram que, no ano de 2011, 65,3% de profissionais de psicologia não possuíam vínculos de trabalho permanente, o que se associa à insegurança quanto ao emprego, baixos salários e falta de perspectiva futura, a exemplo de capacitações e da ascensão na carreira. Senra e Guzzo (2012) também evidenciaram os baixos salários e a alta rotatividade de profissionais de psicologia no serviço de assistência social no Estado de São Paulo, muitas/os contratados via organizações nãogovernamentais (ONG's). Oliveira e cols. (2011) evidenciaram a mesma precariedade nos vínculos empregatícios no Rio Grande do Norte, em que dos 20 psicólogos/as entrevistados/as, quase todos/as possuíam contratos de trabalho flexíveis ou até mesmo sem registro formal de trabalho. A insegurança trabalhista, a subserviência hierárquica e as decisões verticais tomadas pela gestão que se altera conforme a política de Governo, também foi verificada na pesquisa de Souza e Gonçalves (2017) realizada em Minas Gerais.

Outro dado interessante é que alguns estudos apontam que, por conta dos baixos salários e contratos instáveis de trabalho, a maior parte dos/as psicólogos/as que atuam nos CRAS possuem algum tipo de outra atividade laboral, acenando para uma precarização do trabalho do/a psicólogo/a que culmina em jornadas múltiplas de trabalho em diversas áreas. Estas pesquisas ainda evidenciam que a maior parte atua no consultório privado em paralelo à sua atividade no CRAS, o que pode gerar ainda mais confusões sobre as diferenças e especificidades do trabalho realizado no consultório daquele previsto pela PNAS (Macêdo et al., 2015, Oliveira et al., 2011; Souza & Gonçalves, 2017).

As/os trabalhadoras/es concursadas/os, ainda que assegurada uma certa "estabilidade financeira" propiciada pela condição de servidor/a público/a, também são afligidas/os pelas negociações políticas de cargos administrativos, sobretudo nas gestões municipais, estando à mercê dos jogos políticos-partidários em torno do interesses de poucos que, frequentemente, pouco ou nada tem a ver com as necessidades e desafios colocadas à execução da PNAS. De qualquer forma, os servidores estatutários são uma pequena parcela: no Brasil, são apenas 34,3 % do total de trabalhadoras/es da assistência social (Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, 2016).

Outra questão que impacta os processos de trabalho da equipe técnica é a falta ou a precariedade da infraestrutura para o cotidiano dos serviços. O relato de profissionais acerca da instabilidade do local de referência, sendo prática comum que os serviços de referências funcionem em locais alugados e não em propriedades do Estado. No Brasil, do total de 8240 CRAS, 39,6% destes são alugados, 8,7% são cedidos e 51,7% são próprios da prefeitura (Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, 2016). Ou seja, embora temos metade destes espaços sob posse do Estado, há também uma outra metade que fica sujeita às frequentes mudanças por serem alugados ou cedidos. Isso gera consequências problemáticas, pois muitas vezes a estrutura não é propícia para as atividades desenvolvidas, gerando dispêndio de recursos para adaptar as instalações aos propósitos do serviço e garantir a acessibilidade (Xavier, 20163) e/ou pode gerar um prejuízo para as atividades.

Além disso, a mudança frequente de local pode ser motivo de perda da referência para usuários que, às vezes, não são informadas/os sobre as mudanças, ou passam a não conseguir mais chegar ao local por diferentes motivos (distância, não ter dinheiro para transporte, dentre outras).

Ainda, conforme o Censo SUAS (Ministério do D. Social e Agrário, 2016), 793 CRAS dividem o espaço com outro serviço (Secretaria Municipal de Assistência Social, Conselho Municipal de Assistência Social, Conselho Tutelar etc.). Para Xavier (2016), isso pode ser complicador, pois dificulta a oferta de serviços e prejudica o fator identitário de referência para a população. A identidade do CRAS também é prejudicada quando as instalações sequer têm seu nome, realidade de 870 equipamentos do Brasil (Ministério do D. Social e Agrário, 2016).

Além de dificuldades em nível nacional, algumas são específicas dos municípios. No caso do município foco deste estudo, existe defasagem de profissionais nas equipes, sem contratação da quantidade mínima de profissionais prevista para a equipe técnica, o que faz com que as/os profissionais atuantes tenham que se revezar em turnos de trabalho para garantir o funcionamento do serviço no tempo pré-estabelecido pela PNAS, realizando o trabalho de forma mínima e precária. Associado a isso, o período de funcionamento dos equipamentos é de 40 horas e a jornada de trabalho dos profissionais é composta por 30 horas.

Outras limitações se impõem no cotidiano de trabalho, como: a ausência de recursos materiais (telefone, computador, internet etc.); o número e espaço inadequado de salas para atendimento, comprometendo o desenvolvimento de trabalhos e acessibilidade para pessoas com deficiência; pouca disponibilidade de veículos para incursões no território (visitas domiciliares, institucionais e ações com outros fins); falta de segurança; condições precárias de iluminação, higiene e ventilação; e a localização do equipamento, por vezes demasiadamente afastado das áreas mais vulneráveis (Xavier, 2016). Frente a esse cenário de tensões entre a garantia de um direito, a precarização das condições de trabalho e as reminiscências do assistencialismo, adentramos às especificidades analíticas de nosso campo de pesquisa.

 

O Campo do Político

O campo do político, para Rancière (2014b), é um campo de disputa que põe em jogo as práticas, os saberes e a partilha do sensível, ou seja, os processos subjetivos inerentes a todas as divisões dos lugares sociais que compõem a vida em sociedade. Ele põe dois processos heterogêneos em disputa: a governança e a igualdade, ou seja, a polícia e a política.

A partilha do sensível chama a atenção para a existência de uma perspectiva da vida em sociedade que é naturalizada. Partilha, então, significa duas coisas no pensamento do Rancière (2014b): primeiro, a constatação de que existe uma forma de viver que é compartilhada por todas/os de determinada sociedade; e segundo, que esta forma de viver é uma divisão, um recorte, que institui uma forma específica de olhar para o social e suas questões, delimitando partes exclusivas, na medida em que partilha o que é compartilhado. Assim, torna a partilha uma comunhão e uma divisão, de forma simultânea. Esta divisão "naturalizada" por todos, instaura partes exclusivas para cada pessoa e segmento humano na medida em que delimita seus lugares e funções em sociedade, contingenciando os possíveis e as experiências para cada um. Com isso, ela delimita um lugar social, estabelecendo as possibilidades de cada segmento e cada singularidade de perceber a vida compartilhada e, por isso, Rancière vincula a noção de 'partilha' a noção de 'sensível', o que remete aos processos subjetivos que compõem e contingenciam nossas experiências.

A forma como a partilha é organizada sempre produz um dano, ou seja, instaura o que Rancière (2014a) denomina de "a parte dos sem parte", ou os sem papéis, aqueles cuja parte é não ter nenhuma parte nesta partilha. Ver ou não este segmento de pessoas que compõem os sem parte é também parte da experiência (com)partilhada em sociedade. Este segmento é composto por pessoas que não detêm nada que lhes permita governar ou propor projetos de futuro. Como exemplo de pessoas que compõem este segmento, temos, dentre outros, as/os usuárias/os da assistência social, os pobres, pretos, LGBTIs etc. São aquelas pessoas que, na partilha social, ficam relegadas a um lugar que é na verdade um não-lugar, sendo identificadas a partir da inferioridade, subalternizadas e obliteradas em relação a seus modos de vida, conhecimentos e possibilidades. Assim, toda partilha do sensível está baseada e sustentada no dano, ela é a própria instauração de um dano, sofrido por quem não tem parte na partilha. A partilha é a base da própria divisão social (com)partilhada, que delimita lugares, funções, identidades, capacidades, possibilidades. É em torno da problematização da existência ou não desse dano que se configuram as tensões do campo político.

O campo do político, então, é composto por dois processos heterogêneos: o processo policial e o processo da política. O processo policial pode ser identificado por nomes como a gestão, o instituído, o naturalizado, aquilo que leva às estratégias que reforçam a partilha hegemônica da sociedade, assumindo os modos de pensar, perceber e experienciar que também são tidos com estatuto de verdade. Este processo busca a permanência da continuidade da divisão dos lugares, das funções e das identidades de cada segmento ou singularidade humana, afirmando e mantendo as experiências e os possíveis já estipulados, fazendo a máquina e a lógica institucional se efetivar no ordinário da vida.

O outro processo, a política, é o que tensiona tensiona a lógica vigente, sendo desta que parte a possibilidade de (re)configuração da sociedade, por ser da ordem da ruptura, da desordem, da negação. Sendo a partilha do sensível uma distribuição que determina, contingência e sustenta, na medida em que é permeada por formas específicas de ver, sentir, pensar, olhar e ouvir os processos políticos, por trazerem a tensão entre os dois pólos, reconfiguram estes modos, nos apontando para os processos de subjetivação política.

Segundo Rancière, (2014b), a subjetivação política é composta por um processo de desidentificação em relação a identidade hegemônica do ordenamento social, e em um movimento em direção ao outro, em uma identificação impossível com a identidade não reconhecida. É um movimento pautado na alteridade, em um processo que desnaturaliza a organização societária, nos voltando a afirmação da igualdade entre todos os seres dotados de fala. A igualdade, para Rancière, é o único universal possível (Machado, 2013), e serve como um operador da política. A igualdade opera um corte na distribuição do sensível, pois é a partir dela que podemos identificar o quão desigual é a partilha em que vivemos, o quão fundamentada em uma hierarquia ela está. A noção de igualdade, tomada como um operador da política, serve para evidenciar o dano inerente à distribuição hierárquica da sociedade.-

Esta tensão entre permanência e a ruptura da ordem é o que caracteriza o político e este processo é eminentemente estético, já que reconfigura o sensível, as formas de ver, ouvir, perceber e pensar um determinado mundo possível. Este jogo que acontece entre o normativo/policial e a política é, de alguma forma, possível em todas as facetas da vida em sociedade, mesmo naqueles lugares em que há muita força policial em atuação.

No campo de análise em questão, a política de assistência social se faz via Estado e representa a governança. Ou seja, em tese, estaríamos diante de determinadas regras de distribuição de benefícios, que caberia a determinado segmento da população: a parte mais pobre do país, que sofre o dano por não ter uma efetiva parte na distribuição da partilha. Esta política pública visa reparar esse dano e recompor um mínimo de dignidade material e subjetiva a suas existências, distribuindo benefícios, ao mesmo tempo em que trabalha seus direitos como cidadãos. Podemos afirmar com isso, que é uma política de Estado menos segregadora, acontecendo de forma a minimizar a intensa pobreza e discriminação social.

A Constituição de 88 instituiu o exercício da cidadania em moldes diferentes do até então existentes: a participação das pessoas na discussão e formulação das políticas públicas passou a ser valorizada, concretizando-se tanto na esfera pública, em instâncias de controle social, quanto no cotidiano dos serviços na medida em que se estabelece relações e vínculos com a população (Costa & Cardoso, 2010).

Dentre os mais importantes princípios está a participação e protagonismo de usuários na construção da rede socioterritorial, levando profissionais a articular o trabalho com os diferentes dispositivos que compõem o território de abrangência. O termo "território" atravessa integralmente as orientações e normas relativas ao trabalho da assistência social, mas nem sempre é compreendido e apropriado por profissionais dos diferentes setores.

Assim, a partir das sistematizações de Milton Santos (1996), compreendemos o território como um conjunto de lugares, considerando "lugares" como as atividades de uso comum de determinado espaço, ou seja, uma espacialidade potencial com a qual nos relacionamos de diferentes maneiras. Estes usos comuns definem contínuos territoriais, gerando valores culturais, antropológicos, econômicos, sociais, financeiros etc. (Santos, 2005). Nesse esquema, o território é entendido como materialidade mediadora de dimensões verticais e horizontais. A dimensão vertical circula objetos regidos por lógicas centralizadoras, binarizantes, sendo a dimensão das leis, das normas, das hierarquias. Já a dimensão horizontal diz respeito àqueles lugares vizinhos reunidos por linguagens locais e regionais, constituídos por processos de transversalidade, por produção de desejos que resistem e reinventam as forças homogeneizadoras verticais. Assim, o território é uma composição socioespacial, material e subjetiva na qual há uma constante produção e tensionamento entre as forças verticais e horizontais, formando territórios homogeneizantes e disruptivos, hegemônicos e contra-hegemônicos.

Podemos entender a sociedade como um conjunto de territórios que são atravessados por diferentes instituições. Por exemplo, os territórios com os quais os CRAS trabalham são atravessados por instituições da urbanidade municipal, da cultura e, nesse caso, da seguridade social. As instituições podem ser apresentadas, resumidamente, como lógicas que dispõe diagramas semióticos, regulando nossas ações com certos encadeamentos de interpretações (Baremblitt, 1994). Podemos identificar tais lógicas em toda regularidade que se apresenta, atualizando-se como leis, como hábitos, ou até como gramáticas específicas de uma língua. Ou seja, se seguirmos a divisão teórica de Santos (2005), as instituições estão na dimensão vertical, enquanto que na dimensão horizontal estariam as diversas organizações ligadas às respectivas instituições.

Os territórios são os espaços privilegiados para intervenções da Política de Assistência Social, pois ela se configura necessariamente na perspectiva socioterritorial. Essa característica da política, em especial, tem exigido cada vez mais um reconhecimento das dinâmicas que se processam no cotidiano das populações. Por sua vez, ao agir nas capilaridades dos territórios e se confrontar com essas dinâmicas, constatamos a complexidade no que se refere a implementar tais propostas, pois os grupos que compõem o território possuem suas próprias concepções sobre o "Estado" e seus agentes. Disso decorre, claro, o reconhecimento do serviço como algo de direito, porém, muitas vezes, também uma resistência em relação às tentativas de implementação da Proteção Social, incorrendo em dificuldades para a formação de vínculos com a comunidade.

 

Procedimentos Metodológicos

Com vistas ao alcance do objetivo proposto para a pesquisa, realizamos visitas institucionais nos CRAS dos municípios, além de entrevistas coletivas com cada equipe de trabalhadoras/es do serviço, as quais foram gravadas em vídeo e áudio e posteriormente transcritas na íntegra. Foi assinado por todas as participantes um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os nomes de participantes e dos CRAS pesquisados foram substituídos por nomes fictícios.

No município foco deste artigo foram realizadas onze entrevistas coletivas nos dez CRAS existentes no município, a partir de um roteiro norteador previamente estabelecido. Ao total, participaram das entrevistas coletivas 24 assistentes sociais e 18 psicólogas/os, que também responderam à um questionário com informações sobre formação, trajetória e qualificação de tais profissionais em momento antes da entrevista.

Após a transcrição das entrevistas e a tabulação das informações do questionário individual, criamos as categorias, a partir do roteiro das entrevistas na interface com as informações produzidas em campo. Depois de transcritas, as informações foram discutidas repetidas vezes e, a partir daí, foram criadas sete categorias de análise, organizadas a partir de dois eixos norteadores. Para a produção deste artigo, em específico, focamos na análise sobre duas categorias, quais sejam, as relações do CRAS/equipe com a gestão e com a PNAS; e nas condições, rotina e práticas de trabalho.

O material foi analisado com foco em uma análise crítica do discurso. Tal foco produz objetivações discursivas que criam uma cena de tensões entre os fazeres historicamente construídos nas formas tradicionais de se fazer assistência social em contraposição às formas pelas quais ela é compreendida como um direito do cidadão e um dever do Estado. A partir da tensão entre estes dois campos, os sujeitos pesquisados reinventam fazeres, construindo novas cenas no campo.

Todo conhecimento é sempre constituído pela relação e inter-relação entre pessoas (Vygotsky, 1991), de forma que a construção de um conhecimento na pesquisa é sempre um processo social e compartilhado que dela é consequência. A análise e o processo de pesquisar devem se voltar para tentativa de compreender as questões em toda sua complexidade, e isso nos faz ir ao encontro da situação no seu acontecer e no seu processo de desenvolvimento (Freitas, 2002), mesmo que tenhamos um objetivo central e uma questão orientadora.

Compreendemos que os discursos são produzidos contextualmente de forma que o diálogo estabelecido entre pesquisadores e participantes possibilitou reflexões e produções discursivas que não se referem somente à pesquisa, mas estão situadas em um contexto histórico, político, social mais amplo, o qual constitui tais discursos.

 

Tensões entre o Estado e as Unidades

A partir das entrevistas realizadas com as equipes dos CRAS, podemos verificar que o formato atual das políticas de assistência social vem tensionando o fazer naturalizado no campo do trabalho assistencial, saindo de uma prática assistencialista à uma promotora de direitos e voltada à formação de coletivos, como potência deste serviço. Todas as equipes entrevistadas se mostraram cientes das normas e orientações trazidas pelos programas da PNAS dos últimos anos. Naquele momento, em 2017, contaram que o contexto da assistência social no município havia passado por uma transição de um modelo assistencialista - que se concentrava em repasses de benefício - para um modelo de acompanhamento e centralização dos mesmos nos serviços. Foram apontadas mudanças nas demandas dos/as usuários/as, que vinham deixando de ser voltadas, eminentemente, para o atendimento de carências, aumentando a busca por orientações, informações e formações sobre como, por conta própria, conquistar a garantia de seus direitos. Parte destas observações se concretizam na fala de um dos profissionais de psicologia:

Eu entendo que isso nos obriga a pensar mais em termos de processualidade, por que, antes, quando a demanda era pontual 'eu vou lá no CRAS para pedir cesta básica', isso é pontual, atende essa necessidade e a relação acabou por aí, praticamente, não é? Hoje a gente tem que pensar mais em termos de uma processualidade mesmo. Bom, tem uma necessidade de informação, às vezes de escuta, de acolhimento, também aparece esse tipo de demanda e, como a Susana (colega de trabalho) pensou, a gente já pode ir pensando, ou, pelo menos, apontando demandas que podem ser utilizadas, é... necessariamente nos obriga a pensar em termos mais processuais, um acompanhamento mais estendido, de longo prazo, né, porque tem uma série de passos a serem dados que não precisam, de uma certa maneira, de acompanhar, né, acho que esse é o reflexo imediato. (Franco4, CRAS A)

Há uma perspectiva afirmativa com relação a esta forma de objetivar a política de assistência social que, embora se trate de leis e normas, as/os profissionais entrevistadas/os entenderam as mudanças como necessárias. Entretanto, como apontado por uma das assistentes sociais entrevistadas, se pensarmos que essas mudanças estão relacionadas apenas a uma mudança de postura profissional, estaremos incorrendo em equívocos ligados a outro tipo de tutela, pois considerar o protagonismo das populações nas políticas públicas significa que o serviço e as/os usuários/as devem caminhar juntas/os, ainda que em ritmos diferentes, em constante relação com essas inovações.

As equipes contam que são confundidas constantemente com o Conselho Tutelar e com os aspectos meramente punitivos do Estado. Mesmo que as relações com a população estejam mudando, ainda é bastante presente a procura do serviço para o cumprimento de trabalhos de fiscalização, que não correspondem, de fato, ao que as unidades deveriam oferecer. Uma das trabalhadoras entrevistadas pontua que nas relações históricas da população com o Estado existem posturas profissionais que podem levar os usuários a terem essa impressão, deixando aí a reflexão sobre quais aspectos isso pode estar relacionado. Nesse sentido, é ímpar experienciar os processos que estamos chamando de subjetivação política, ou seja, de se desidentificar do próprio lugar identitário e discursivo, possibilitando sentir esses atravessamentos sob óticas de estranhamento.

Temos esses dois atores sociais - usuários e profissionais da assistência - que, interpeladas/os pelas mudanças na política de assistência, se vêem num processo de desidentificação com a parte que lhe foi atribuída na partilha. Se antes os/as profissionais se viam como agentes de uma tutela do Estado nesta relação com a população alvo dos trabalhos assistenciais, agora precisam se desidentificar com este lugar naturalizado para conseguir propor outras lógicas de ação e funcionamento, outras práticas no campo da assistência social, menos caritativas (principal característica da lógica tutelar). Por outro lado, temos os/as usuários/as que são impelidos à tensionar seu lugar na partilha, questionando o já instituído, seus lugares, funções e identidades nesta sociedade. Se antes eram vistos e se viam como sujeitos passivos em relação à uma lógica caritativa de assistencial social, agora passam a ocupar o lugar de sujeitos de direitos que devem ter seus direitos garantidos pelo Estado. Esta tensão é uma reconfiguração do campo da experiência, tanto dos/as profissionais quanto dos/as usuários/as.

Quando questionadas/os sobre a visão que as/os profissionais têm de sua atuação e seu trabalho com usuários, prevalecem os atravessamentos relacionados ao próprio recorte que a política de assistência social faz, ou seja, "aqueles que mais necessitam". Um dos profissionais chega a colocar esse critério como "enlouquecedor", pois abarca elementos que, em princípio, diriam respeito a universalidade de direitos das/os cidadãs/ãos; mas, ao mesmo tempo, são extremamente restritivos, uma vez que diariamente diversas famílias necessitadas têm de ouvir que "não são carentes o suficiente para tal benefício". Portanto, mesmo empenhados em uma superação dessa visão a respeito dos/as usuários/as, as/os servidores da assistência social, de maneira geral, precisam lidar cotidianamente com as marcas da pobreza e outras mazelas decorrentes da desigualdade social, ficando submetidos e engessados na lógica policial das diretrizes.

A assistente social Joana diz que existe no trabalho de sua equipe um esforço para transcender os rótulos que lhe saltam ao pensamento quando estão lidando com as demandas nos atendimentos. Vemos, então, que as/os profissionais muitas vezes ficam entre dois lugares: de um lado, são servidores do município e representam o Estado e, de outro, criam uma perspectiva afirmativa com relação a multiplicidades de processos com os quais essas/es usuárias/os estão envolvidas/os.

Porque muitas vezes estar com esse papel representativo do Estado te possibilita muito mais o contato com a população, então, a gente tenta fazer (...) uma estratégia de tentar se aproximar da população. A gente traz também as impossibilidades do Estado, e que a gente também partilha dessa percepção da pessoa com relação àquelas problemáticas que ela está visualizando. 'A gente precisa de vocês [população] atuando para gente conseguir, porque isso também vai nos potencializar enquanto Estado'. (...) a gente tenta fazer esse ponto, porque isso nos aproxima como população. (Jurandir, CRAS E)

Outro conflito diz respeito ao lugar ambíguo ocupado pelo CRAS, o qual coloca em cena os efeitos da lógica capitalista e atua gerindo-os (Oliveira & Heckert, 2013) - e que interpela as/os profissionais a se questionarem sobre sua identidade como profissionais do Estado. As seguintes falas de duas profissionais do CRAS C ilustram essa questão, e apontam para uma desidentificação que emerge da posição ocupada pelos/as profissionais da assistência social como "representantes do Estado". Segundo Helena

é meio contraditório, porque é o próprio Estado às vezes que violenta essas pessoas, de não garantir o direito, de diversas formas. E nós, enquanto agentes do Estado, somos funcionários públicos, né, ouvindo essa violência e como isso às vezes fica meio tenso.

Viviane comenta algo similar:

"É a gente do Estado, com o papel de possibilitar essa família esse direito mesmo, indo contra o Estado. Vou te dizer que, no dia-a-dia, 70% das intervenções são contra o Estado, contra os gestores."

As/os profissionais vêem em sua atuação, na forma como interpretam a política e gerenciam seu trabalho, a potência de tensionar o entendimento do que é/deveria ser o Estado, e evidenciar contradições de seu funcionamento. O que Rancière chama de polícia/ordem policial extrapola o Estado e a política institucional, entretanto, o Estado cumpre um papel importante dentro dessa ordem, já que ele representa determinadas garantias desse ordenamento (Machado, 2013). Para Rancière (1996), existem polícias e polícias, ou seja, algumas ordens policiais podem ser mais equânimes ou mais hierárquicas e desiguais, e nos parece que quando os/as profissionais se questionam sobre o Estado, é para pensar sobre como as técnicas de governo condicionam os jogos entre as lógicas da política e da polícia, possibilitando (mais ou menos) reconfigurações e rupturas:

Assim, é uma disputa pelo tamanho do Estado, né? Vai ser nada? Vai ser mínimo? (...) Vai ser pra quem? ... acho que uma questão que tá colocada pra psicologia, pensando no projeto ético-político, é entender como que a gente pensa, como categoria, o modo de produção. A questão que eu vejo mais é que o Estado também não é monolítico. Ele comporta, no abstrato "o Estado" (...) milhões de perspectivas políticas e horizontes. A própria política tem dentro dela muitos horizontes. (Alberto, CRAS B)

Vemos exposta nestas falas uma tensão que se faz presente na efetivação desta política que denuncia os paradoxos de quem trabalha pelo Estado. Tais paradoxos são historicamente construídos no contexto ocidental no qual, capitalismo, direitos humanos e violências se emaranham produzindo seus ambivalentes efeitos até os dias atuais, especialmente, no contexto de quem atua nas políticas públicas e sociais.

Desde o golpe de 20165, uma efetiva diminuição nos investimentos do Estado nas políticas de assistência social é visível e crescente. Contrapondo-se a uma lógica neoliberal de Estado, Safatle (2010) aponta que em uma sociedade democrática, o Estado deve se fundar a partir de sua capacidade de criar estruturas institucionais que promovam experiências de liberdade e igualdade6 para a população. Nessa esteira, Lima e Silveira (2016) destacam que a formação de um Estado Mínimo corresponde mais a lógica da hegemonização dos interesses do capital e da restrição social do papel do Estado do que a um modus operandi de luta contra as desigualdades sociais e sua respectiva efetivação de um Estado Democrático. Conforme os autores, o atual Estado brasileiro atua sustentado na racionalidade econômico-institucional- pautada na produtividade, meritocracia e gerencialismo, voltado aos interesses conservadores e ao mercado financeiro, provocando mais uma gestão e criminalização da pobreza do que o seu embate efetivo em prol da defesa dos direitos de todo e qualquer ser humano.

Em uma lógica neoliberal de gestão estatal, investimentos que aumentem o tamanho do Estado, contrariando a lógica do Estado mínimo, não são bem vistos. Isto traz um conflito permanente em relação a esta política, no caso dos/as gestores/as considerarem que a lógica neoliberal de gestão deve ser priorizada. Como garantir a efetivação dos serviços previstos na PNAS em um Estado que se quer mínimo? Como equilibrar esta relação? Entendemos que a lógica do Estado mínimo não garante direitos e, assim, deve ser questionada e enfrentada. O que podemos perceber pelas entrevistas realizadas é que este conflito tem gerado dificuldade à prática e à efetivação desta política na medida em que a gestão, por partir de uma lógica que contradiz a garantia de direitos democráticos, não têm assegurado o investimento mínimo necessário para o funcionamento da PNAS. As dificuldades mais comumente apontadas entre as diferentes equipes dizem respeito à defasagem de recursos para o procedimento padrão da referida política, como é o caso do número precário de pessoas nas equipes: "A gente é boicotado o tempo inteiro, né. O próprio Estado nos boicota, porque a gente incomoda, a gente tirou o equilíbrio que tinha aqui." (Rosângela, CRAS D),

Às vezes a gente tá fazendo um trabalho com determinada comunidade ou aqui mesmo no CRAS e aí a gente tem várias coisas que são cortadas e que a gente não consegue mais levar adiante né. Mas, principalmente, a falta de equipe, né, a falta de técnicos. Todas as equipes em todos os CRAS estão incompletas. (Giovana, CRAS E)

Sem exceção nenhuma, em termos de proporcionalidade, os territórios de cada CRAS superam grandemente os limites que cada equipe poderia abraçar, de forma que se tem muito território para poucos profissionais.

Outro empecilho destacado pelos profissionais e que foi comum a todos os CRAS pesquisados é a falta de imóveis próprios, já que os estabelecimentos ocupados são alugados pela prefeitura e, eventualmente, precisam ser desocupados. As frequentes mudanças de endereço em nada ajudam a resolver os problemas já existentes, mas, ao contrário, tendem a produzir um trabalho perdido, cada vez que se muda a referência física do serviço.

Dificuldades em relação a gestão municipal também apareceram no discurso das pessoas entrevistadas. Até 2017, os cargos gestores na assistência social do município eram usados como "moeda de troca" de cabos eleitorais, o que gerou prejuízos para os serviços. A experiência local do município investigado se revelava como a singularização do que Lima e Silveira (2016) denominam de um modelo meritocrático, conservador e capitalista de proteção social, fruto de uma história marcada pela colonização, autoritarismo e dependência econômica do Brasil. Tal perspectiva acarreta conquistas tardias e inconsistentes no campo dos direitos sociais, e ineficiência, fragmentação e descontinuidade das políticas públicas e sociais.

Em um dos CRAS, quando questionadas/os sobre a relação com a gestão, a resposta dada, de maneira sarcástica, foi: "que gestão?". Como os interesses político-partidários eram priorizados, cargos de coordenação e secretaria podiam por vezes ser ocupados por pessoas que nada entendiam da política de assistência social: "Na verdade, tem uma ingerência política muito grande, tem uma questão política muito forte aqui, desse espaço ser usado para cabo eleitoral." (Rosângela, CRAS D).

Eu acho que isso sempre vai ser um entrave no nosso trabalho, né, porque são pessoas que elas tão ali de passagem, elas não têm um compromisso como a gente tem (...) essa questão política [partidária], a meu ver, não deveria existir né. Teriam que ser cargos técnicos, cargos efetivos, e a gente sabe que cada secretaria é ligada a um partido né. Então isso é péssimo. (Angela, CRAS F)

Com objetivo de pressionar a gestão por melhores condições de trabalho - recursos materiais, número de profissionais suficiente para desempenhar as tarefas, pagamento de horas extra etc., alguns profissionais não fazem o que poderiam fazer por não dispor do suporte adequado para execução de suas tarefas. Um exemplo claro disso é a falta do carro para deslocamento:

para gente fazer o trabalho na comunidade a gente precisa ter garantias, precisamos ter sim o instrumento que é o carro, pra que a gente se desloque até lá. Então, aí pode ser continuado [o trabalho], mas desde que combinado em equipe e que a gente consiga ter essas garantias né (...) para não parecer que a gente não vai por falta de vontade (...) isso é uma forma de cobrar né, a prefeitura não nos dá esse suporte. (Diana, CRAS J)

Dentro desse cenário, fazem o possível, de forma que a própria continuidade de cada pessoa nas equipes envolve certa consciência de que o número de pessoas é bem reduzido para o trabalho, caracterizando-o enquanto uma luta à precariedade de recursos e a prevalência de uma resistência às dimensões verticais envolvidas.

Quando se trata dessas demandas sem condições materiais para executá-las, as/os profissionais se sobrecarregam com tarefas das mais diversas e, muitas vezes, se responsabilizam por esse processo no qual a única alternativa é registrar a insatisfação e impotência da equipe. As/os profissionais de outro CRAS queixaram-se da falta de tempo para conseguirem organizar suas atividades e fazerem estudos de casos, afirmando que é uma situação que as/os acompanha desde o início do serviço naquela unidade, e que não conseguem superar essa dificuldade que influencia, praticamente, todos os planejamentos que fazem.

Soma-se a esse contexto o direito às férias de cada trabalhador/a e/ou licença maternidade. Tais afastamentos, ainda que garantidos por lei, não se efetivam de maneira tranquila, pois toda vez que alguém se afasta, há uma sobrecarga de trabalho para quem permanece no serviço, já que a PNAS tem sido operada na lógica das equipes mínimas exigidas e, consequentemente, na precarização do trabalho das equipes.

Os/as trabalhadoras/es de um outro CRAS, usam como estratégia a negociação com a Secretaria para conquistarem seu direito a hora-extra:

Então, a gente esse ano resolveu botar o pé na porta com isso, assim, porque a secretaria não paga hora-extra pra pessoas que, sabe como é né, é brinde a hora-extra, é gratificação, né, então se não é prioridade para a secretaria, se não é uma política de Estado a gente não vai tocar por conta e fazer no voluntariado, a gente é servidor e colocou isso com bastante clareza esse ano. Então, a gente só vai fazer na hora que a secretaria pagar. (Paula, CRAS H)

A fala de um/a profissional de outro CRAS complementa:

O que que acontece: os profissionais, eles fazem pela boa vontade deles, né, que a maioria dos grupos acontece a noite ou nos finais semana. Mas assim, não é pago hora extra, não é reconhecido como trabalho pelo município (...) os profissionais fazem banco de horas, mas não é reconhecido o banco de horas (...) juridicamente, se acontecer qualquer coisa, a gente não tem amparo nenhum... eu não faço, aqui a gente não costuma fazer. (Rosângela, CRAS D)

Atentamos aqui para a necessidade de ter cuidado com análises que culpabilizam as/os profissionais pela precariedade dos serviços em que estão alocados. Não se trata disso. Assim, apresentamos diferentes estratégias de modo a propiciar uma reflexão sobre como a diferença nas posturas políticas das equipes e nas escolhas que delas decorrem, produzem efeitos sobre as populações usuárias dos CRAS e também sobre as/os trabalhadoras/es da assistência social. As condições precárias atravessam todos os serviços - de maneiras e intensidades distintas - entretanto, parece-nos que as/os profissionais possuem agência nesse jogo de forças. Fazem escolhas a partir do local em que se encontram e de acordo com suas posições ético-políticas.

A partir dos entraves e impasses até aqui pontuados - que não incidem de maneira homogênea sobre todos os CRAS entrevistados, mas certamente os atravessavam - as equipes e as/os profissionais vêm criando estratégias para lidar com a precarização e com o descaso do Estado, de maneira a tentar articular uma boa efetividade do serviço para a população.

 

Estratégias de Reinvenção dos Fazeres

A falta de informações por parte da população sobre as possibilidades de ofertas do serviço foi identificada como um problema, assim como a pesquisa de (Souza & Gonçalves, 2017) que constatou um desconhecimento por parte dos/as usuários/as sobre outras possibilidades da psicologia que transcendem ao modelo psicoterápico. A respeito disso, a equipe de um dos CRAS apresenta como estratégia para vencer essa barreira as próprias atividades coletivas, chamando as/os trabalhadoras/es para ajudar no diagnóstico das demandas, organizando redes de apoio com as comunidades, para então, a partir do que a população considerou como prioridade, produzir os respectivos documentos e encaminhar para os órgãos competentes, exigindo as melhorias necessárias.

A partir do momento que as comunidades se apropriam das ferramentas compartilhadas por profissionais, torna-se possível visibilizar sua autonomia, conforme aponta uma assistente social: "Esse é o grande mote do trabalho de... coletivo, né, de a gente poder incentivar e produzir que eles façam... que possam ter autonomia e seguir" (Luciana, CRAS G). Este dado se contrasta com o que foi percebido na pesquisa de Macêdo et al. (2015) cujo estudo constatou o predomínio de atividades de caráter individual, tal como o aconselhamento psicológico e até mesmo a psicoterapia, acenando que os CRAS pesquisados em nosso estudo possuem uma perspectiva mais coletiva e comunitária tal como preconiza e PNAS.

Outra profissional (Susana, CRAS A) pondera que o papel das/os profissionais do CRAS é muito mais desafiador do que, simplesmente, dividir as responsabilidades, pois também é atribuição técnica deste trabalho saber, juntamente com o restante da equipe e usuários envolvidas/os, transformar as demandas que chegam como individuais em demandas coletivas, para que abarquem mais de um caso específico, já que as diretrizes apontam para uma redução progressiva dos atendimentos individualizados em prol dos coletivos.

Não se trata de negligenciar as demandas "espontâneas" que aparecem como individuais, ao contrário, entre as objetividades técnicas dos profissionais da assistência social está, sem dúvida, saber dar acolhimento a todo tipo de situação que apareça. Entretanto, o procedimento recomendado é que, em seguida, comecem a pensar os aspectos coletivos de tal demanda, como aponta uma das profissionais:

Legal é que elas [do grupo de mulheres] trazem uma demanda que aparentemente seria dificuldade delas, só dela como mãe e elas veem que todo mundo ali tem o mesmo problema e acabam tendo estratégias coletivas de resolver e ver que não... às vezes é a creche, é cultural e a gente vai pensando coisas que dá para organizar. Tem umas que é individual, por exemplo do alcoolismo, e a gente acaba fazendo encaminhamento de visita, encaminhamento para a saúde. E aí trabalha o tema, ao final organiza, vê como é que está, se deu conta, se quer continuar discutindo, avalia o encontro e já "ah, então, próximo vamos fazer isso, como é que vai ser? (Denise, CRAS G)

Ainda no sentido de pontuar as ações que visam a efetivação do serviço, foram comentadas maneiras de lidar com essas situações, contextualizando-as nas precariedades apresentadas, trazendo o contraponto dos direitos aos quais essa pessoa pode recorrer e, também, expandindo as redes que culminam no sofrimento, que muitas vezes é reduzido e interpretado apenas como carência econômica. Também foi relatado que, conforme os territórios apresentam sua autonomia e lideranças próprias, é mais fácil vivenciar esses espaços de troca de forma mais horizontal e menos tutelar.

Um dos dispositivos de coletivização das demandas mais comentado nas entrevistas como efetivo, foi a chamada "ação comunitária". As ações comunitárias são eventos realizados por profissionais dos CRAS em conjunto com usuários, que acontecem no território, visando um espaço de confraternização, articulações comunitárias e publicização de programas, benefícios e serviços do CRAS. Conforme os/as entrevistados/as, o processo de construção desse evento dura em torno de três meses, e tem participação efetiva da comunidade e das redes intersetoriais, culminando em algum final de semana/feriado, em que são visibilizadas as potências da comunidade, com programação cultural com os/as artistas locais e a sociabilidade de moradores.

Em dois dos CRAS entrevistados foi bastante enfatizado que existe uma tendência, conforme as disposições de orientação sugerem, das comunidades tomarem a gestão da construção desse evento, conforme ele vai se consagrando nos territórios em questão. É claro que isso, em alguma medida, diz respeito a como as equipes trabalham para construílo, mas que depende igualmente de como a população se implica no processo, como vemos na fala de uma das psicólogas:

A gente vê efeitos depois das nossas ações né, tanto do espaço público, quanto de procura ao CRAS também, né. Não só... até diria que a procura ao CRAS, a gente vê pessoas vindo aqui, pedindo atendimento, mas até acho que a procura ao CRAS é muito mais coletiva do que individual. (...) Porque as ações são sempre exitosas, modéstia parte, mas aí daqui a pouco vem a associação de moradores "ah, vamos fazer de novo". Como agora eles estão... começou com a gente planejando os CRAS na comunidade lá em 2014 e agora a gente não planeja mais nada. É a comunidade que demanda: "Vamos fazer de novo, isso e aquilo" e, então, eles vêm sempre demandando ações coletivas... projetos, é, de caráter coletivo, que a gente nem dá conta. (Bruna, CRAS G)

Nesses relatos, fica evidente que apesar das condições adversas que atravessam os serviços de assistência social, algumas equipes encontram brechas e aberturas para a produção coletiva no território. Nas palavras de uma profissional entrevistada: "porque a gente consegue movimentar, mesmo com toda essa precariedade, a gente consegue movimentar o usuário. A gente sente essa potencialidade. Mas é uma coisa que o próprio Estado não dá pra nós profissionais, esse respaldo que a gente tanto necessita, né?" (Bárbara, CRAS B).

É possível perceber que a construção de redes próprias dos territórios, assim como as redes entre serviços, são um dos principais campos de atuação de profissionais dos CRAS e de potencialidade no território. Essas redes compreendem tanto os outros serviços públicos de determinados bairros, como organizações sociais autóctones das próprias comunidades. Conforme pontuou uma das profissionais de uma equipe técnica (Denise, CRAS G), uma das ações que estaria prevista para equipe PAIF no CRAS é a gestão de território, e que para fazer todo esse trabalho com as famílias seria necessário o reconhecimento do território, fazendo um mapeamento e reconhecimento do cotidiano local, a fim de entender quais são os fatores que estão envolvidos, quais são as potencialidades e com quem que a equipe pode contar. Embora o trabalho de territorialização e vigilância social sejam prerrogativas da PNAS, o estudo de Oliveira et al. (2011) constatou que ele é extremamente incipiente conforme os relatos dos/as profissionais, revelando que há uma lacuna entre o planejamento das ações dos CRAS e seus territórios de abrangência.

Outro trabalho de articulação da rede, como já citado, é de construir pontes entre os diferentes serviços públicos que podem estar atendendo essa população. Algumas equipes apontam sérias dificuldades em conseguir agenciar com outros serviços, muitas vezes tendo de ficar perseguindo reuniões para conseguir dialogar, ou como aponta um profissional:

Eles são demandantes, eles mandam o paciente/usuário deles para cá pra resolver aquilo que eles não resolvem lá, tipo, reivindicar fraldas geriátricas, por exemplo, óculos, ou coisas assim, que já são considerados benefícios que a saúde tem a oferecer. Mesmo assim eles encaminham para resolver aqui, ou, então, demandam para gente, não um usuário, mas um atendimento a família tal que ela precisa de bolsa família, ela precisa acessar algum benefício, né? Então, eles se tornam demandantes dessa forma, mas não se vêem muito na parceria não. (Francisco, CRAS I)

Ou seja, segundo este entrevistado, em alguns casos os serviços mais demandam do que ajudam. Em tese, os diferentes projetos éticos-políticos dos diferentes serviços públicos deveriam dialogar mais para que possam efetivar suas ações territoriais. No entanto, identificamos nos discursos de alguns profissionais a avaliação da predominância de perspectivas particularistas, pois, quando não há consonância entre os projetos dos diferentes serviços, as ações das equipes dos CRAS se volta para um esforço "contra a corrente".

Em outros casos, por exemplo, vemos que existe uma facilidade maior de se alcançar os Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) por parte das equipes, talvez pela proximidade produzida no tipo de atendimento à população, mas, sobretudo, marcando, novamente, a historicidade própria de cada CRAS. Conforme os recursos disponíveis ou indisponíveis, em determinado momento, as/os profissionais preferem, muitas vezes, deslocar-se e procurar onde já estão ocorrendo reuniões entre os serviços e a comunidade, ou encontros entre moradores mesmo, em que discutem suas respectivas realidades sócio estruturais. Alguns CRAS conseguem fazer essa articulação, como aponta Bruna, sobre os encontros da rede intersetorial:

E aí vem, alguns, a depender do caso, vem outros serviços como convidados, né (...) De rede a gente tem também a rede intersetorial da pessoa com deficiência que acontece há um ano e meio. (...) participam as entidades que atuam com pessoas com deficiência tanto governamental [quanto] não governamental. Então, das entidades públicas, tem o CRAS, o SEPREDI [Serviço de Proteção Especial para Pessoas com Deficiência, Idosas e suas Famílias], o PAEFI foi algumas vezes, quem mais? A saúde, a educação [...] Aí tem as associações clássicas né (...). A gente reúne então todas essas entidades, é uma reunião de profissionais com dois objetivos principais: de formação e de garantia de direitos, que a gente diz. Então, a gente a cada mês define um tema para discussão, a gente já passou por discussão de todas as políticas públicas, agora de todas as deficiências, agora vamos estudar as legislações. E a cada formação, a depender das queixas e dos furos e das lacunas que se revelam, a gente faz algum encaminhamento pra eles. (Bruna, CRAS G)

Outra questão recorrente trazida tanto por psicólogas/os quanto por assistentes sociais é a falta de formação para trabalhar de acordo com a Política de Assistência Social. Foi bastante comentada de maneira positiva uma capacitação que a Secretaria Municipal da Assistência Social proporcionou às equipes dos CRAS do município, a fim de instrumentalizá-las/os com coordenadas de incursão territorial, visando catalisar os processos de atividades coletivas.

Porém, algumas das pessoas entrevistadas no CRAS H contaram que a escolha desse tema para capacitação foi realizada de maneira vertical, ignorando as necessidades que cada equipe vinha enfrentando em seus próprios contextos, a favor de um tema neutro que contemplasse, pelo menos, diminuir as angústias das/os trabalhadoras/es da assistência. Já, no CRAS A, a capacitação foi vista com bons olhos, no qual as/os profissionais da equipe declararam necessitar, realmente, de qualquer tipo de orientação a respeito do trabalho com coletivos. Aqui aparece novamente a singularidade de cada equipe: considerando que apesar de lidarem com os mesmos atravessamentos, tanto nacional, quanto municipal, a configuração que cada equipe constrói suas práticas inventivas, dependem de processos singulares da história de cada uma delas, aspectos que devem ser levados em conta quando se elabora uma proposta de formação profissional dessa natureza.

 

Considerações finais

Como pudemos ver pelas entrevistas realizadas para esta pesquisa, as/os profissionais da Política de Assistência Social vivem sua atuação em meio a tensões que compõem do campo político, refletindo nesta atuação suas limitações e possibilidades.

A PNAS e, especialmente o SUAS, precisa se fortalecer e se efetivar como um direito do cidadão e um dever do Estado, garantido como parte da seguridade social no enfrentamento às desigualdades sociais. Caso contrário, corre o risco de permanecer em meio ao jogo que, de um lado, parte de noções como o primeiro damismo e um estado paternalista voltado à caridade e, de outro, ações que nos voltam ao que está preconizado desde a Constituição de 1988 como um direito assegurado pelo Estado, tendo a participação dos/as usuários/as e as ações coletivas como ponto nodal do serviço. Parte desta mesma tensão, vemos um embate entre a noção de Estado mínimo, afirmada por uma perspectiva neoliberal, e outra que busca ter o tamanho necessário do Estado para garantir o que está previsto como direito dos/as cidadãos/ãs. Pode-se pontuar também o embate que existe entre, por um lado, uma lógica de atuação que nos volta às ações coletivas e à família e, por outro, a lógica que nos impele à individualização e judicialização da vida e das demandas sociais e políticas.

Estas tensões parecem colocar os/as profissionais do SUAS, ao menos no município estudado, em um tensionamento paradoxal entre um Estado que implementa a agenda neoliberal e, por outro lado, um Estado que, apesar de atuar de forma compensatória no âmbito da proteção social, possibilita a garantia e ampliação de direitos, fortalecendo os jogos democráticos. Assim, temos que os(as) profissionais, ao mesmo tempo em que sofrem os efeitos das precarizações das condições de trabalho que engessam ou inviabilizam seus fazeres, conseguem cavar fissuras a este modelo hegemônico, criando e reinventando práticas territoriais que promovam o protagonismo e a autonomia dessas comunidades.

Na Política de Assistência Social no Brasil, como pudemos identificar nas falas aqui apresentadas, existe um esforço por parte da maioria dos/as profissionais e, inclusive, por parte da própria Política de Assistência Social, já a partir da Constituição de 1988, em visibilizar outras formas de perceber a sociedade e perceber o trabalho dentro do campo da Assistência Social. Esta empreitada nos volta ao campo político, sendo um lugar de tensão que se configura na medida em que se tenta desnaturalizar os processos compartilhados em sociedade. Este campo se configura, por exemplo, quando temos uma política estatal como esta, que nos volta a certeza de investimento assistencial e à formação de coletivos, no seio de uma sociedade neoliberal, a qual, por outro lado, prega a concepção do Estado-mínimo e atomiza os indivíduos, isolando-os, impossibilitando ou dificultando organizações e ações coletivas de comunidades.

Consequentemente, pudemos identificar que existe por parte de alguns profissionais a sinalização de que, para a efetivação do trabalho, é necessário um certo processo de desidentificação em relação ao lugar que é posto enquanto um representante do Estado, que pode ser controlador, normativo, pautado em práticas de vigilância e violência em relação a/o cidadã/o. Aliada a esta questão, está o fato de muitas vezes vemos o Estado e, em especial esta política pública, virar lugar para angariar votos em eleições, dificultando o trabalho na medida em que precariza as relações entre profissionais e usuários/as. Outra questão levantada sobre dificuldades para efetivação do trabalho e que aponta as tensões do parágrafo anterior é a defasagem de recursos humanos e material ao qual estão sujeitos/as os/as profissionais. Um movimento de identificação "impossível" com o usuário se faz fundamental. Tornar-se outro na relação com o outro, na direção do outro, produz uma prática de enfrentamento e luta, tão necessária quanto urgente, diante do grave quadro que nos é imposto no cenário nacional. As/os profissionais que participaram desta investigação, em sua maioria, apostam neste lugar e inventam fazeres para além dos usuais, apontando para outros possíveis no campo da assistência social.

Pudemos identificar algumas estratégias que os/as profissionais têm usado para contornar as dificuldades, dentre elas, coletivizar as demandas que aparecem como individuais, a construção de ações coletivas e comunitárias, e a construção de redes intersetoriais. Sendo um dos nortes de atuação na Política de Assistência Social, a construção de espaços de atuação coletiva (coletivizando as demandas e promovendo, com isso ações coletivas) tem se apresentado como uma das grandes alternativas no trabalho, tanto para fortalecer a comunidade e os usuários, num mundo que não legitima suas vidas, quanto para fortalecer a atuação profissional, num contexto de precarização e sucateamento. A construção de rede, por fim, parte da perspectiva da (co)responsabilização entre as diferente políticas estatais e seus equipamentos, sendo tanto uma estratégia para acompanhar o usuário/a e sua família na complexidade necessária, quanto para fortalecer e exigir uma forma de ação que tencione e potencialize o funcionamento de todas as políticas públicas. Catalisar a ação da rede intersetorial é uma forma de promover um trabalho que busque abarcar a complexidade, desafios e paradoxos inerentes às práticas que se buscam lançar no combate às históricas desigualdades sociais da realidade brasileira e abrir um campo de possíveis no horizonte das relações entre usuários e unidades de proteção social básica.

 

'Notas de fim'

1 Artigo produto do projeto financiado pelo CNPq- Processo n. 471250/2014-7 - Apoio a Projetos de Pesquisa / CHAMADA MCTI/CNPQ/MEC/CAPES n. 22/2014 - CIÊNCIAS HUMANAS, SOCIAIS E SOCIAIS APLICADAS, bolsas de IC/PIBIC/UFSC e Bolsa Produtividade pelo CNPq.

2 Pesquisa intitulada Experiências Coletivas em Centros de Referência em Assistência Social, coordenada pela Profa. Dra. Kátia Maheirie e financiada pelo CNPq.

3 Xavier, C. B. (2016). A Proteção Social Básica do SUAS em Florianópolis/SC: os CRAS em perspectiva. Trabalho de Conclusão de Curso, Serviço Social. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina.

4 Todos os nomes são fictícios.

5 Compreendemos o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff de 2016 como um golpe jurídico-midiático-parlamentar (Jinkings, Doria, & Cleto, 2016) por entendemos que se tratou de uma ruptura com a ordem democrática por meio do ataque aos diversos pilares que sustentam um regime democrático. O golpe, seguido de uma progressiva deterioração da institucionalidade, consistiu na derrubada da presidenta legitimamente eleita "por um processo político baseado em leituras elásticas da Constituição e artimanhas jurídicas de diversos matizes, que tentam mostrar como lícito o conluio do judiciário com um Parlamento em sua maior parte corrupto e uma mídia corporativa a serviço das elites financeiras" (Jinkins & Murilo, 2016, p. 12).

6 Conforme Safatle (2010), a própria definição de "liberdade" e "igualdade" já se adentra no debate político que tem como base o conflito e a disputa no qual deve permitir uma multiplicidade de interpretações conforme os diferentes grupos sociais. Em síntese, aponta dois orientadores para a efetivação por parte do Estado em conseguir implantar experiências de liberdade e igualdade para a população: o igualitarismo radical e o combate a exploração socioeconômica.

 

Referências

Baremblitt, G. (1994). Compêndio de Análise Institucional. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.         [ Links ]

Costa, A. F. S. & Cardoso, C. L. (2010). Inserção do psicólogo em Centros de Referência de Assistência Social - CRAS. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 3(2),223-229.         [ Links ]

Cruz, J. M. (2009). Práticas Psicológicas em Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Psicologia em Foco, 2(1),11-27.         [ Links ]

Draibe, S. (1993). As políticas sociais e o neoliberalismo: reflexões suscitadas pelas experiências latino-americanas. Revista da USP-Dossiê Liberalismo/ Neoliberalismo, 17,86-101.         [ Links ]

Freitas, M. T. A. (2002). Abordagem Sócio-histórica como orientadora da pesquisa qualitativa. Cadernos de Pesquisa, 116,21-39.         [ Links ]

Jinkings, I., Doria, K., & Cleto, M. (2016). Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

Jinkins, I. & Murilo, K. D. (Orgs). (2016). Por que gritamos golpe? São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

Lima, C. B. & Silveira, J. I. (2016). Direitos Humanos e Política Social: instrumentos sóciojurídicos não punitivos e mecanismos democráticos. Revista de Filosofia Aurora, 28(43),147-166.         [ Links ]

Macedo, J. P. & Dimenstein, M. (2011). Formação do psicólogo para a saúde mental: a psicologia piauiense em análise. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 15(39),1145-1158.         [ Links ]

Macedo, J. P., Sousa, A. P., Carvalho, D. M., Magalhães, M. A., Sousa, F. M. S. & Dimenstein, M. (2011). O psicólogo brasileiro no SUAS: quantos somos e onde estamos? Psicologia em Estudo, 16(3),479-489.         [ Links ]

Macêdo, O. J. V., Alberto, M. F. P., Santos, D. P., Souza, G. P. & Oliveira, V. S. (2015). Ações do Profissional de Psicologia no Centro de Referência da Assistência Social. Psicologia: Ciência e Profissão, 35(3),809-823.         [ Links ]

Machado, F. V. (2013). Subjetivação política e identidade: contribuições de Jacques Rancière para a psicologia política. Psicologia Política, 13(27),261-280.         [ Links ]

Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. (2016). Censo SUAS 2016: Resultados Nacionais. Brasília, DF: Autor.         [ Links ]

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2004). Norma Operacional Básica do Suas (NOB-RH/Suas). Brasília, DF: Autor.         [ Links ]

Oliveira, C. M. C. & Heckert, A. L. C. (2013). Os centros de referência de assistência social e as artes de governar. Fractal: Revista de Psicologia, 25(1),145-160.         [ Links ]

Oliveira, I. F., Dantas, C. M. B., Solon, A. F. A. C, & Amorim, K, M. O. (2011). A prática psicológica na Proteção Social básica no SUAS. Psicologia & Sociedade, 23(n.spe.),140-149.         [ Links ]

Rancière, J. (1996). O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Rancière, J. (2014a). A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Rancière, J. (2014b). Nas margens do político. Lisboa: KKYM.         [ Links ]

Safatle, V. (2010). Do uso da violência contra o estado ilegal. In E. Telles & V. Safatle (Orgs.), O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

Santos, M. (1996). A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Santos, M. (2005). O retorno do território. OSAL: Observatorio Social de América Latina, 6(16),251-261.         [ Links ]

Souza, R. F. & Gonçalves, A. L. V. (2017). A mesmice identitária: a (im)possibilidade de emancipação na Política de Assistência Social. Psicologia & Sociedade, 29,e171276. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29171276        [ Links ]

Senra, C. M. G. & Guzzo, R. S. L. (2012). Assistência social e psicologia: sobre as tensões e conflitos do psicólogo no cotidiano do serviço público. Psicologia & Sociedade, 24(2),293-299.         [ Links ]

Vygotsky, L. S. (1991). A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Yamamoto, O. H. & Oliveira, I. F. (2010). Política Social e Psicologia: uma trajetória de 25 anos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(n.spe.),9-24.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 30/07/2019
Aprovado em: 19/03/2020

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons