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Avaliação Psicológica
Print version ISSN 1677-0471On-line version ISSN 2175-3431
Aval. psicol. vol.13 no.1 Itatiba Apr. 2014
Fidedignidade da versão brasileira do Sistema SOCIII para análise da interação mãe-criança1,2
Reliability of the Brazilian version of the system SOCIII for the analysis of mother-child interaction
Fiabilidad de la versión brasileña del sistema SOCIII para el análisis de la interacción madre-hijo
Patrícia Alvarenga3,I; Maria Ángeles CerezoII
IUniversidade Federal da Bahia
IIUniversitat de Valencia
RESUMO
O objetivo deste estudo foi analisar a fidedignidade da versão brasileira do sistema Códigos Padronizados de Observação – SOCIII, para análise da interação mãe-criança no contexto de brincadeira livre. Esse sistema permite o registro sequencial da interação em tempo real. O estudo se baseou na análise de oito episódios de interação livre aos 48 meses de vida da criança. Dois observadores independentes codificaram os seis minutos iniciais de cada episódio. O valor Kappa global foi 0,77, e os resultados para as categorias comportamentais específicas revelaram valores aceitáveis. A discussão destaca problemas que podem surgir na obtenção de níveis satisfatórios de fidedignidade em algumas categorias de comportamentos infantis e soluções que podem ser adotadas durante o treinamento para evitar tais problemas.
Palavras-chave: interação mãe-criança; interação livre; observação; análise sequencial.
ABSTRACT
The aim of this study was to analyze the reliability of the Brazilian version of the Standardized Observation Codes – SOCIII system for analysis of mother-child interaction in a free play context. This system allows the sequential coding of real-time interaction. The study was based on the analysis of eight episodes of free interaction with 48 months old children. Two independent observers coded the initial six minutes of each episode. The overall Kappa value was 0.77, and the results for the specific behavioral categories revealed acceptable values. The discussion highlights problems that can arise in obtaining satisfactory levels of reliability in some categories of child behavior and solutions that can be adopted during training to avoid such problems.
Keywords: mother-child interaction; free interaction; observation; sequential analysis.
RESUMEN
El objetivo de este estudio fue analizar la fiabilidad de la versión brasileña del sistema Códigos de Observación Estandarizados – SOCIII, para el análisis de la interacción madre-hijo en el contexto de juego libre. Ese sistema permite el registro secuencial de la interacción en tiempo real. El estudio se basó en el análisis de ocho episodios de interacción libre a los 48 meses de vida de los niños. Dos observadores independientes codificaron los seis primeros minutos de cada episodio. El valor global de Kappa fue 0,77, y los resultados para las categorías específicas de comportamiento revelaron valores aceptables. La discusión pone de relieve los problemas que pueden surgir en la obtención de niveles satisfactorios de fiabilidad en algunas categorías de la conducta del niño y las soluciones que se pueden adoptar durante el entrenamiento para evitar tales problemas.
Palabras-clave: interacción madre-hijo; interacción libre; observación; análisis secuencial.
Teorias e achados empíricos acumulados ao longo dos últimos cinquenta anos convergem para a noção consensual de continuidade no desenvolvimento socioemocional ao longo das diferentes etapas da vida. De acordo com essa noção, a aquisição de habilidades sociais e da capacidade de autorregulação emocional, por exemplo, resulta da combinação entre predisposições biológicas e variáveis ambientais, e teria sua origem mais remota na interação precoce entre mãe e bebê. Com o passar do tempo, o ambiente social da criança se amplia e passa a incluir gradualmente mais parceiros de interação, cada qual com sua contribuição para construir um repertório socioemocional complexo, que possa atender às demandas de um ambiente em constante transformação. De qualquer modo, ao longo de toda a infância, os padrões interativos que se estabelecem entre pais e filhos no contexto familiar se destacam como preditores do desenvolvimento socioemocional infantil (Alvarenga & Palma, 2012; Grusec & Davidov, 2010; Patterson, Reid, & Dishion, 1992).
Existe uma vasta literatura empírica demonstrando relações consistentes entre certas dimensões da interação pais-criança, e particularmente, da interação mãe-criança e aspectos típicos e atípicos do desenvolvimento socioemocional infantil. De modo geral, essas evidências indicam que práticas parentais e padrões de interação caracterizados por contingência (Beebe et al., 2010), reciprocidade (Grusec & Davidov, 2010), e envolvimento e afeto positivos (Spinrad et al., 2012) estão relacionados a diversos indicadores de competência social e da capacidade de autorregulação emocional. No entanto, práticas não contingentes (Patterson et al., 1992), rigidez (Hollenstein, Granic, Stoolmiller, & Snyder, 2004), superproteção e intrusividade (Bayer, Hastings, Sanson, Ukoumunne, & Rubin, 2010), práticas coercitivas em geral (Alvarenga & Palma, 2012) e rejeição ou críticas (Caron, Weiss, Harris, & Catron, 2006) são características associadas ao desenvolvimento de problemas externalizantes e internalizantes.
A observação sistemática possibilita a avaliação direta dos padrões de interação mãe-criança, e tem sido amplamente utilizada para desvendar os mecanismos e processos que os caracterizam, em diferentes contextos, com ou sem o auxílio de equipamentos de vídeo. Os sistemas de codificação desenvolvidos para a análise da interação mãe-criança, por sua vez, estão baseados em distintas orientações teóricas, e, a depender deste aspecto, podem ser macro (Ainsworth, Blehar, Waters, & Wall, 1978; Bick, 1964) ou micro analíticos (Piccinini, Alvarenga, & Frizzo, 2007; Trenado & Cerezo, 2007), e enfatizar propósitos de pesquisa ou de intervenção (Bick, 1964; James, Wadnerkar, Lam-Cassettari, Kang, & Telling, 2012).
São múltiplos os aspectos metodológicos que têm recebido destaque na literatura, com o avanço das técnicas de observação sistemática da interação mãe-criança. No que diz respeito à obtenção dos dados observacionais, uma questão que gera controvérsias é o uso de gravações de pequenos trechos em vídeo versus a codificação ao vivo de longos períodos de tempo. Por um lado, argumenta-se que a presença de uma câmera de filmagem pode produzir um importante efeito intrusivo sobre o comportamento dos participantes (Kemppinen et al., 2005). Por outro lado, a crescente complexidade dos mecanismos e processos investigados, assim como a necessidade de aferir o nível de fidedignidade das técnicas de observação utilizadas, requer o uso de gravações em vídeo. Embora alguns estudos indiquem questionamentos importantes como a instabilidade das interações em diferentes momentos dos vídeos (James, Wadnerkar, Lam-Cassettari, Kang, & Telling, 2012), outros estudos apontam para um bom nível de correspondência entre extensos períodos de observação ao vivo e gravações de trechos curtos de interação em vídeo (Kemppinen et al., 2005). Outras evidências da literatura fornecem apoio, ainda que indireto, para a hipótese de que a análise de pequenos intervalos de tempo em vídeos de interação represente uma medida fidedigna (Ambady & Rosenthal, 1992).
Na etapa de preparação dos observadores para a análise do material coletado, as questões fundamentais dizem respeito ao treinamento e à obtenção de níveis de fidedignidade satisfatórios entre os observadores. As técnicas de treinamento se tornaram progressivamente mais sistemáticas e intensivas, e a grande maioria dos estudos investe em procedimentos estatísticos sofisticados para aferir os níveis de fidedignidade (Alvarenga & Cerezo, no prelo; Beebe et al., 2010). Algumas características dos sistemas de codificação como a baixa frequência de certas categorias (James et al., 2012) e a dificuldade na discriminação dos comportamentos de crianças pequenas (Alvarenga & Cerezo, no prelo; Bryson, Zwaigenbaum, McDermott, Rombough, & Brian, 2008) constituem importantes desafios para os pesquisadores na obtenção de bons níveis de fidedignidade.
Por fim, quanto às técnicas de análise dos dados oriundos das codificações da observação da interação mãe-criança, a análise sequencial (Bakeman & Quera, 2011) tem recebido destaque devido à centralidade do conceito de responsividade ou sensibilidade materna (Isabella, Belsky, & Von Eye, 1989), e, particularmente, do conceito de contingência das respostas maternas aos sinais da criança (Beebe et al., 2010; James et al., 2012). Essa técnica de análise permite que padrões de comportamento temporais e previsíveis sejam detectados, assim como possibilita a identificação dos antecedentes comportamentais de um participante que predizem o aumento ou redução do consequente comportamental no seu parceiro de interação (Heller, Sobel, & Tanaka-Matsumi, 1996; Martin, Maccoby, Baran, & Jacklin, 1981).
O SOCIII, Standardized Observation Codes (Cerezo, 2000), permite a análise de vários aspectos da interação mãe-criança e da interação familiar que repercutem no desenvolvimento socioemocional infantil, assim como detecta alguns indicadores desta esfera desenvolvimental. O instrumento oferece a possibilidade de registrar sequencialmente e em tempo real a atividade interativa ou solitária da criança com os irmãos e com os pais, no contexto familiar, à medida que os comportamentos se sucedem, o que permite analisar não só o impacto do comportamento dos pais sobre a criança, como também de que forma o comportamento infantil regula e influencia a conduta parental. O SOCIII está baseado no sistema originalmente desenvolvido por Whaler, House e Stambaugh (1976) e posteriormente revisado por Dunn, Barker e Wahler (1981).
O instrumento foi desenvolvido com o objetivo de constituir-se em uma estratégia de avaliação fidedigna da interação familiar e do comportamento de crianças com problemas de comportamento, especialmente daquelas que apresentam problemas externalizantes como agressividade, impulsividade e comportamento desafiador. Nesse sentido, as categorias do sistema foram criadas especialmente para contemplar condutas que caracterizam crianças com esse tipo de padrão comportamental. Porém, o instrumento pode ser utilizado em outros contextos, com algumas adaptações, como é o caso do presente estudo, que adotou o SOCIII para a análise da interação mãe-criança em um contexto de brincadeira livre.
O sistema foi utilizado em muitas investigações e tem revelado boas propriedades psicométricas e resultados de análises de fidedignidade bastante satisfatórios. As propriedades psicométricas do SOCIII, obtidas em estudos de diferentes autores que utilizaram o sistema, foram reunidas e discutidas por Cerezo (1991). Quanto aos níveis de fidedignidade, inicialmente foram analisados 86 valores obtidos para o coeficiente Kappa, considerando o conjunto de estudo examinado, que realizaram tanto a análise das categorias específicas do instrumento, como a verificação de agrupamentos de categorias, que variaram de acordo com os objetivos de cada estudo. Os 86 valores obtidos variaram de 0,55 a 0,99 (M=0,71; DP=0,05), sendo que 94,18% desses valores estiveram acima de 0,60. O coeficiente de correlação intraclasse também foi examinado nos mesmos estudos para estimar o nível de fidedignidade atingido pelos observadores por sessão. Assim, para o cálculo desse coeficiente, ao invés de se considerar a codificação realizada pelos diferentes observadores em cada intervalo de tempo, considerou-se a codificação realizada ao longo de cada sessão de observação. Nessa etapa foram analisados 51 valores do coeficiente de correlação intraclasse, que oscilaram entre 0,80 e 0,99 (M=0,94; DP=0,008). De modo geral, é possível afirmar que os índices obtidos, tanto para o coeficiente Kappa como para o coeficiente de correlação intraclasse são satisfatórios e relativamente homogêneos (Bakeman & Quera, 2011). Destaca-se o fato de que esses índices foram obtidos com base em vídeos de interação de díades pertencentes a diferentes países (Espanha e Estados Unidos da América). Outros estudos posteriores que adotaram o SOCIII também reportaram níveis de fidedignidade satisfatórios (Cerezo & D'Ocon, 1999; Cerezo, D'Ocon, & Dolz, 1996; Dolz, Cerezo, & Milner, 1997; Pons-Salvador & Cerezo, 1991; Wahler & Cerezo, 2005).
O objetivo deste estudo foi analisar a fidedignidade da versão brasileira do sistema Códigos Padronizados de Observação – SOCIII, para análise da interação mãe- -criança no contexto de brincadeira livre. Embora o instrumento tenha sido desenvolvido para a análise da interação familiar no contexto doméstico, buscando detectar como os membros da família se comportam em tarefas cotidianas e situações de conflito, o presente artigo analisa os níveis de fidedignidade do SOCIII especificamente no contexto de brincadeira livre. O estudo foi realizado a partir da análise de oito episódios de interação de díades mãe-criança brasileiras, com crianças de 48 meses de vida. A seguir o sistema de codificação SOCIII é apresentado com suas categorias comportamentais e respectivos códigos, assim como o esquema utilizado para o treinamento de observadores e os resultados do estudo de fidedignidade.
Códigos de Observação Padronizados III (SOCIII)
O SOCIII (Cerezo, 2000) é um sistema de microanálise a partir do registro sequencial dos comportamentos de crianças e adolescentes entre três e 13 anos, e de suas mães, pais, ou outros cuidadores e irmãos, durante episódios de interação. O sistema define as categorias observacionais de forma exaustiva e mutuamente excludente e permite o registro das valências afetivas dos comportamentos observados. O observador registra continuamente, de forma sequencial e sem interrupção, os comportamentos da criança que é o centro da observação e dos outros membros da família, à medida que se sucedem. Desse modo, se obtém uma espécie de transcrição do fluxo interacional que pode ser submetido a análises estatísticas. O registro é feito sobre folhas pautadas nas quais cada linha representa um intervalo de 15 segundos. O observador registra ininterruptamente os comportamentos observados, passando à linha seguinte depois de transcorridos quinze segundos. Assim, o registro em intervalos não interrompe a codificação, porém, facilita procedimentos de fidedignidade. Também com o objetivo de otimizar medidas de fidedignidade foi convencionado que o observador deve iniciar a codificação pelo primeiro comportamento observado na criança que é o centro da observação. A partir daí, segue-se o fluxo comportamental da criança e dos outros membros da família ao longo do episódio.
O sistema possui categorias que contemplam condutas interativas e não interativas e três valências afetivas (positiva, neutra e negativa), que se aplicam apenas às categorias interativas. As categorias interativas e não interativas são registradas por meio de códigos específicos4, e as valências são atribuídas às condutas interativas pelo acréscimo de um sinal de soma (+), no caso da valência positiva, ou de um sinal de subtração (-), no caso da valência negativa. Quando a valência é neutra pode ser utilizado o símbolo (º), ou somenteo código da categoria interativa, sem nenhum tipo de referência à valência.
Os comportamentos interativos, tanto da criança centro da observação, como dos adultos e dos irmãos, são codificados em quatro categorias: (a) aproximação social (A); (b) instrução (I); (c) obediência (C); e (d) oposição (O). Como as categorias interativas podem assumir diferentes valências afetivas, existem no total 12 códigos interativos. Além disso, como as categorias e códigos interativos são os mesmos para todos os membros da família, para fins de registro, deve ser utilizado um prefixo que consiste em uma letra maiúscula antes do código da categoria, que indique com que membro da família a criança está interagindo. Assim, no caso do registro da categoria obediência para uma ação do pai da criança, o código FC seria utilizado. Ou, no caso do registro de uma instrução materna, o código MI seria indicado. Os códigos que registram o comportamento da criança centro da observação não necessitam prefixo.
As categorias não interativas do sistema se diferenciam para a criança que é o centro da observação e os demais membros da família presentes no episódio interativo. Os comportamentos da criança alvo da observação são registrados em seis categorias não interativas: a) tempo fora (time out/TO); b) nada (N); c) queixa (Cm); d) transgressão de norma (RV); e) trabalho (W); e f) brincadeira solitária (P). A ausência de resposta de todos os parceiros na interação, sejam eles pais, avós ou irmãos, é registrada em uma única categoria denominada ausência de resposta (NR) que, da mesma forma que os códigos interativos, deve ser registrada utilizando-se um prefixo que identifique o membro da família a que se refere. Por exemplo, no caso de ausência de resposta da mãe a uma conduta interativa da criança, deve ser utilizado o código MNR. É importante salientar que a conduta não interativa dos adultos ou outros parceiros de interação da criança que é o centro da observação só deve ser registrada quando for antecedida por uma conduta interacional da criança centro da observação. Isso significa que enquanto a criança brinca, trabalha ou está de castigo ("tempo fora"/time out) e não apresenta condutas interativas, o comportamento não interativo dos outros membros da interação não merece registro. A Tabela 1 apresenta as categorias e os códigos do SOCIII.
Treinamento dos Observadores
Com o objetivo de garantir bons índices de fidedignidade, o treinamento para uso do SOCIII se desenvolve em três etapas complementares, com uma carga horária total de cerca de 20 horas de atividades presenciais, e 10 a 15 horas de prática supervisionada. A primeira etapa é considerada preparatória e consiste na leitura do manual. A segunda parte, de formação teórico-prática, consta de 20 horas distribuídas em 10 sessões. Durante essa etapa, são realizadas as seguintes atividades: (a) provas objetivas que têm por objetivo praticar a memorização dos códigos e aplicá-los em transcrições de trechos de interação mãe/pai-criança; (b) codificação de vídeos de menor e maior complexidade, com crianças de diferentes faixas etárias; (c) cálculo do coeficiente Kappa e discussão dos desacordos e dúvidas; (d) orientação quanto à forma de realizar e apresentar os protocolos de registro e os breves relatórios narrativos que os acompanham. Por fim, a terceira etapa do treinamento é o processo de codificação supervisionada, que varia entre 10 e 15 horas, a depender dos níveis de fidedignidade que vão sendo obtidos durante o processo. Trinta por cento do material deve ser codificado por todos os observadores para a avaliação final da fidedignidade. Detalhes sobre o processo de treinamento dos observadores podem ser obtidos em Cerezo (2000).
Método
Participantes
Participaram do estudo oito díades mãe-criança durante o quadragésimo oitavo mês de vida da criança. As díades foram selecionadas por conveniência em quatro maternidades públicas de Salvador/BA5. Os bebês, nascidos a termo e com boas condições de saúde, eram todos do sexo masculino.
As mães participantes estavam no terceiro trimestre de gestação no momento da primeira fase da coleta de dados, quando foram recolhidas informações sociodemográficas. A idade das gestantes variou de 23 a 39 anos (M=29,88; DP=5,16). O número de anos de estudo das gestantes variou de seis a 12, e a escolaridade média foi de 10,88 anos (DP=2,23). Apenas uma das gestantes não residia com o pai do bebê. Duas das oito gestantes eram primíparas, e o número médio de filhos na amostra foi 0,50 (DP=0,53). A renda familiar variou de 300 a 1500 reais, com média de R$722,75 (DP= 410,97). Apenas uma gestante relatou complicações na gestação (dores no abdômen) e nenhuma delas referiu problemas crônicos de saúde. Quanto aos bebês, o peso médio no momento do nascimento foi de 3,284Kg (DP=364,19g) e o comprimento médio foi de 48,43cm (DP=4,92cm).
Procedimento
O procedimento de coleta de dados para o presente estudo foi realizado em três fases. Durante o terceiro trimestre da gravidez, as gestantes foram convidadas a participar da pesquisa e preencheram individualmente, nos hospitais onde faziam o pré-natal, uma Ficha de Dados Sociodemográficos e Saúde da Gestante. Quando os bebês completaram um mês de vida, as famílias receberam uma visita domiciliar durante a qual as mães responderam a Ficha de Saúde do Recém-Nascido. No quadragésimo oitavo mês de vida da criança, novas visitas domiciliares foram agendadas para a realização da Observação da Interação Mãe-Criança. Nessa etapa da coleta de dados, mãe e criança foram filmadas por 10 minutos durante um episódio de interação livre, com ou sem o uso de brinquedos, a depender da escolha da mãe. Solicitou-se à mãe que brincasse com o filho "como costumava fazer normalmente quando tinha tempo livre para estar com a criança". O estudo atende a todas as normas éticas da pesquisa com seres humanos e foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia.
O procedimento de adaptação do SOCIII iniciou com a tradução do protocolo impresso e do manual do instrumento para a língua portuguesa. Após essa etapa houve uma redução no sistema de categorias utilizado, já que nem todas as condutas contempladas pelo instrumento estiveram presentes no contexto de interação livre entre mãe e criança avaliado no presente estudo. Assim, as categorias não interativas como tempo fora, transgressão de norma e trabalho não foram utilizadas no presente estudo. Posteriormente, os exemplos das condutas codificadas foram adaptados com base nos vídeos das oito díades brasileiras. Por fim, procedeu-se o treinamento de dois observadores independentes para a análise dos vídeos, de acordo com o modelo de treinamento descrito no presente artigo.
Resultados
O estudo de fidedignidade do instrumento se baseia nos registros efetuados por dois observadores independentes. Foram analisados oito episódios de interação, que foram codificados por ambos os observadores. Os seis minutos iniciais de cada filmagem foram codificados manualmente de acordo com os critérios do SOCIII. Para fins de análise, as valências positiva e neutra das categorias interativas foram agrupadas, tanto para os comportamentos maternos como para os infantis, com o objetivo de se obter uma frequência mais alta de ocorrência.
A primeira etapa da análise consistiu no cálculo dos valores do coeficiente Kappa, utilizando o modelo de Kappa para acordo ponto por ponto ou por alinhamento, que é considerada a abordagem mais rigorosa no que se refere à análise de eventos que não foram previamente delimitados (Bakeman & Quera, 2011). Nessa abordagem, as sequências de códigos produzidas pelos dois observadores em cada sessão são previamente submetidas a um alinhamento global ótimo, para que então o cálculo do coeficiente seja efetuado (Quera, Bakeman, & Gnisci, 2007). Além do valor Kappa, também foram calculados os percentuais de acordo entre observadores (PA) e o Kappa Máximo (Kmax). O Kmax é um valor de referência para a interpretação mais acurada do valor Kappa obtido. De acordo com Bakeman e Quera (2011), essa medida indica a extensão máxima de acordo, ou o valor Kappa máximo que poderia ser obtido, considerando o viés dos observadores. Isso significa que, embora teoricamente o valor máximo de Kappa seja 1,00, o seu valor real somente atinge 1,00 no caso de acordo perfeito e ausência de viés dos observadores. Assim, o Kmax é o valor Kappa que seria obtido quando os observadores concordassem na extensão máxima possível, dado que exista viés
O valor global do Kappa foi 0,77 (PA=83%; Kmax=0,95). Esse valor pode ser considerado alto, comparado ao valor de Kappa esperado para um sistema com aproximadamente 10 códigos, e com percentual de acordo entre observadores entre 85% e 90%, que seria de 0,69 (Bakeman & Quera, 2011). Comparando os subgrupos de categorias materno e infantil, foram encontrados valores superiores para as categorias maternas (K=0,84; PA=91%; Kmax=0,97) em comparação com as categorias infantis (K=0,83; PA=89%; Kmax=0,97). A fidedignidade das categorias específicas de comportamentos maternos e infantis também foi avaliada, de acordo com os mesmos critérios e com o agrupamento das valências positiva e neutra. Não houve nenhuma ocorrência de categorias com valência negativa nos oito casos analisados, portanto, os coeficientes Kappa e o percentual de acordo não puderam ser calculados para essas categorias. O coeficiente Kappa foi calculado apenas para as categorias cuja frequência esperada foi suficiente para análises com tabelas de contingência. Para as demais categorias foram relatados apenas os valores do percentual de acordo entre observadores (PA). A Tabela 2 apresenta os valores de Kappa, percentual de acordo e Kappa máximo para cada uma das categorias de comportamentos maternos e infantis.
Os valores de Kappa para as categorias específicas variaram de 0,59 a 0,89. De modo geral, os valores são satisfatórios, se forem comparados aos valores máximos de Kappa, ou mesmo a outros valores de referência existentes na literatura (Bakeman & Quera, 2011). Os valores mais baixos ocorreram para as categorias instrução positiva ou neutra (K=0,59), e obediência positiva ou neutra da criança (K=0,63). Quanto à categoria instrução positiva ou neutra da criança, a análise dos protocolos das duas observadoras revelou que ambas registraram esse código num total de 17 vezes cada uma, considerando os oito casos. Em apenas três dos oito casos analisados houve discordância quanto à frequência do código, sendo que o número de registros de uma observadora excedeu o número de registros feitos pela outra, em uma unidade (em dois dos três casos), ou no máximo em duas unidades (em um dos três casos). Em nenhum dos oito casos analisados houve discordância quanto à presença do código. Essa análise indica que o baixo valor de Kappa obtido possa se dever em parte à falta de precisão das posições dos códigos registrados, que não foi tão satisfatória de acordo com os critérios do Kappa por alinhamento e, em parte, à baixa frequência dessa categoria. Quanto à categoria obediência positiva ou neutra da criança, a análise dos protocolos das duas observadoras revelou que as discordâncias ocorreram basicamente no registro da obediência atrasada, que ocorre quando a criança não obedece imediatamente à instrução materna (no período de três segundos após receber a instrução), porém, o faz antes de transcorridos 15 segundos após o comportamento da mãe (Cerezo, 2000).
Na segunda etapa da análise, foram calculados os valores do coeficiente de correlação intraclasse (CCI) para cada uma das categorias de comportamentos maternos e infantis, considerando a frequência total de cada categoria comportamental registrada por sessão (episódio) pela dupla de observadores (Bakeman & Quera, 2011). Foram consideradas apenas as categorias com valências positivas e neutras agrupadas, do mesmo modo que havia sido feito anteriormente para os cálculos do coeficiente Kappa. A Tabela 3 apresenta os valores do coeficiente de correlação intraclasse (CCI) e os limites inferiores e superiores dos intervalos de confiança (95%), para cada uma das categorias de comportamentos maternos e infantis.
Os cálculos foram feitos somente para as categorias cuja frequência de ocorrência não foi nula. Os valores do CCI variaram de 0,56 (obediência positiva ou neutra da criança) a 1,00 (oposição positiva ou neutra da mãe), indicando que a categoria obediência da criança, cujos detalhes sobre a codificação foram descritos anteriormente, merece atenção especial durante o treinamento dos observadores. Contudo, na categoria instrução positiva ou neutra da criança o valor de CCI obtido (0,89) confirma a hipótese de que as observadoras apresentaram bom nível de concordância quanto à presença e frequência deste código nos oito casos, e que apenas a posição de registro, avaliada com precisão pelo Kappa por alinhamento, gerou desacordos. Com exceção do índice obtido para a categoria obediência positiva ou neutra da criança, os valores são bastante satisfatórios (Mitchell, 1979).
Discussão
Este estudo examinou a fidedignidade entre observadores da versão brasileira do sistema observacional Códigos de Observação Padronizados III (SOCIII) para análise da interação mãe-criança no contexto de brincadeira livre. Pesquisas com esse sistema já indicavam se tratar de um instrumento fidedigno para a análise sequencial da interação familiar em situações do cotidiano doméstico (Cerezo, 1991; Cerezo & D'Ocon, 1999; Cerezo et al., 1996; Dolz, et al., 1997; Pons-Salvador & Cerezo, 1991; Wahler & Cerezo, 2005) e o presente estudo demonstrou sua aplicabilidade e fidedignidade na análise da interação livre entre mãe e criança no contexto de brincadeira. Destaca-se que a abordagem do instrumento no presente estudo contemplou a contingência das respostas maternas ao comportamento da criança (Beebe et al., 2010; Isabella et al., 1989), a partir da utilização da análise sequencial (Bakeman & Quera, 2011; Heller et al., 1996; Martin et al., 1981).
Os resultados obtidos, tanto para o coeficiente Kappa como para o coeficiente de correlação intraclasse, indicaram índices de fidedignidade satisfatórios (Bakeman & Quera, 2011; Mitchell, 1979). Como era esperado, os índices foram, de modo geral, mais modestos para as categorias específicas examinadas separadamente, se comparados aos valores globais obtidos para o instrumento, tendência já relatada em estudos com outros instrumentos de observação (Alvarenga & Cerezo, no prelo; Bryson et al., 2008). Também foram verificados valores levemente superiores para as categorias de comportamentos maternos em comparação com aqueles obtidos para as categorias de comportamentos infantis, à semelhança do que ocorreu em outro estudo brasileiro recente sobre a fidedignidade do sistema CITMI-R para a análise sequencial da interação precoce mãe-bebê, também no contexto de interação livre (Alvarenga & Cerezo, no prelo). De modo geral, esses achados indicam que o comportamento materno tende a ser mais discriminável por parte dos observadores do que o comportamento infantil, e sugerem que especial atenção deve ser dada às categorias de comportamentos infantis durante o treinamento. Nesse sentido, é importante destacar que as duas categorias que apresentaram os menores valores nas análises com os coeficientes Kappa e CCI se referiam a comportamentos da criança: a obediência infantil positiva ou neutra e a instrução infantil positiva ou neutra.
A categoria instrução positiva ou neutra apresentou um CCI elevado, indicando que os desacordos entre as observadoras não envolviam aspectos relacionados à definição da própria categoria ou a sua detecção nos vídeos, mas sim à posição específica em que o registro foi feito, o que é detectado com precisão pelo Kappa por alinhamento (Bakeman & Quera, 2011; Quera, Bakeman, & Gnisci, 2007). Quanto a esse aspecto, a única recomendação se refere ao treino do ritmo de codificação, que deve obedecer ao ritmo da interação que está sendo analisada. O cuidado e a ênfase nesse critério fundamental do sistema de codificação durante o treinamento poderá melhorar o índice Kappa, embora tenha menor repercussão nos resultados das análises sequenciais. Além do ritmo de codificação, outro aspecto que pode contribuir para a compreensão do baixo índice de fidedignidade nessa categoria é a sua baixa frequência de ocorrência nos episódios analisados. Bakeman e Quera (2011) chamam a atenção para o impacto dessa característica dos sistemas de codificação sobre os índices de fidedignidade, recomendando o agrupamento de códigos. Outra possível solução para esse tipo de problema está relacionada ao tamanho ou duração da janela de tempo observada. No presente estudo, foram analisados os seis minutos iniciais de cada vídeo, contudo, a ampliação da janela de tempo poderia ter evitado esse problema, aumentando a frequência observada nessa categoria (James et al., 2012).
Ressalta-se que os índices obtidos para a categoria obediência positiva ou neutra da criança merecem uma análise mais detalhada, pois o valor do CCI indica desacordo das observadoras não somente quanto à posição do registro, mas também quanto à frequência do código. Assim, é importante considerar a complexidade dessa categoria de análise, que contempla a possibilidade de que a criança obedeça à instrução materna em um período de até 15 segundos (Cerezo, 2000). Isso significa que inicialmente pode haver oposição por parte da criança, mas que a possibilidade de obediência atrasada deve ser monitorada pelos 15 segundos seguintes. A análise dos protocolos das duas observadoras revelou que a obediência atrasada foi ignorada em algumas de suas ocorrências. Porém, esse tipo de desacordo pode ser solucionado facilmente com a ênfase adequada na possibilidade de obediência atrasada, durante o treinamento.
Os resultados deste estudo indicam que o sistema Códigos Padronizados de Observação – SOCIII é uma alternativa metodológica fidedigna de avaliação da interação livre entre mãe e criança, que pode ser adotada em estudos brasileiros. Considerando o potencial e os objetivos do instrumento, que foi inicialmente desenvolvido para a avaliação da interação familiar em contextos do cotidiano doméstico e em famílias de crianças com problemas de comportamento, novos estudos podem contribuir para a avaliação da fidedignidade de categorias comportamentais típicas de famílias com este perfil, e neste tipo de contexto interativo. Nesse sentido, espera-se que futuras pesquisas possam ampliar o estudo de fidedignidade do SOCIII, incluindo as categorias comportamentais que não puderam ser avaliadas no presente estudo, e verificando a aplicabilidade deste instrumento a diferentes contextos de interação familiar.
Este estudo apresentou um sistema de codificação da interação familiar e sua aplicação à análise sequencial da interação livre entre mãe e criança no contexto de brincadeira, revelando resultados satisfatórios no que se refere à fidedignidade. Embora os índices de fidedignidade obtidos tenham sido bastante satisfatórios e indiquem o bom potencial do instrumento, algumas das categorias específicas não puderam ser examinadas com os coeficientes Kappa e CCI. Além disso, todas as díades participantes foram selecionadas em maternidades públicas, eram provenientes de uma única cidade, e de uma região do Brasil com características culturais bastante específicas. Nesse sentido, é fundamental que futuros estudos envolvam amostras maiores, amostras clínicas, grupos culturais variados e diferentes contextos de observação, para que essas lacunas possam ser preenchidas.
A importância do estudo do desenvolvimento socioemocional infantil e de suas relações com a interação familiar tem sido enfatizada na literatura. Porém, um dos grandes obstáculos para esse tipo de investigação é a escassez de sistemas de codificação traduzidos e adaptados ao contexto cultural brasileiro. Assim, espera-se que o presente estudo seja um incentivo para que novas pesquisas, baseadas em metodologias observacionais sobre essa temática, sejam conduzidas no Brasil.
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Recebido em janeiro de 2013
Reformulado em abril de 2013
Aprovado em julho de 2013
Sobre os autores
Patrícia Alvarenga: é Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia.
Maria Ángeles Cerezo: é Doutora em Psicologia pela Universidad de Madrid e Catedrática do Departamento de Psicologia Básica da Universitat de Valencia – Espanha.
1Este estudo é parte do projeto de estágio pós-doutoral da primeira autora, realizado na Universitat de Valencia no ano de 2012, com apoio financeiro da CAPES.
2Agradecemos às alunas Carolina Gomes, Catiele Paixão e Eliana Peixoto que realizaram a codificação dos vídeos utilizados neste estudo.
3Endereço para correspondência: Universidade Federal da Bahia – Instituto de Psicologia. R. Aristides Novis, 197, Estrada de São Lázaro, 40210-730, Salvador-BA. Tel.: (71) 3283-6437. E-mail: palvarenga66@gmail.com
4Foram mantidos os códigos do instrumento original, que estão relacionados aos nomes das categorias no idioma inglês.