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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.6 no.2 Belo Horizonte July 2013

 

ARTIGOS

 

Representação de amizade e irmandade para filhos únicos: estudo exploratório utilizando o método clínico piagetiano

 

Representation of friendship and brotherhood with only children: exploratory study using Piaget's clinical methodology

 

 

Schwanny Roberta Costa Rambalducci Mofati Vicente1; Taisa Rodrigues Smarssaro Bahiense; Simone Chabudee Pylro; Claudia Broetto Rossetti

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil

 

 


RESUMO

A redução do número de membros das famílias vem alterando não só o perfil da sociedade, mas a maneira como pais e filhos pensam e sentem a questão da irmandade. A amizade com iguais, por sua vez, parece ser importante para que os filhos únicos experimentem situações das quais são privados pela falta de irmãos. O objetivo desse estudo foi investigar as representações que filhos únicos têm sobre os conceitos de amizade e de irmandade. Participaram dessa pesquisa seis crianças de nove e 10 anos, filhos únicos. O instrumento utilizado foi um roteiro de entrevista contendo 14 questões acerca das concepções de irmandade e de amizade, e sobre possíveis relações entre amizade e irmandade. Os resultados parecem indicar que os participantes desejam ter tanto irmãos quanto amigos, atribuindo funções distintas a ambos, sem, contudo, percebem claramente as características e funcionalidades próprias que diferenciam amizades e irmandades.

Palavras chave: Piaget, Método clínico, Irmandade.


ABSTRACT

The reduction in the number of members in one family is altering not only the profile of society, but is altering the way that parents and children think and fell about brotherhood. Friendship with equals, in itself, seems to be important so that only children experience situations in which they are deprived of having brothers. This study investigates the representation that only children have as to the concepts of friendship and brotherhood. Six only children between 9 and 10 years of age participated in the research. The instrument used was an interview with 14 questions about the conception of friendship and brotherhood, and the possible relations between friendship and brotherhood. The results seem to indicate that the participants would like to have both siblings and friends, assigning distinct functions for both, without, however, clearly understand the characteristics and features of the friendships and brotherhoods that differentiate themselves.

Keywords: Piaget, Clinical methodology, Brotherhood.


 

 

O número de registros de nascimentos no Brasil está cada vez menor, de modo que em 1999 nasceram em nosso país 3.256.433 crianças2, em 2003 esse número caiu para 3.038.251 e em 2008 este número foi ainda menor com 2.917.432 crianças nascidas (DATASUS, 2011). No Espírito Santo, onde o padrão nacional se repetiu, em 1999 foram registrados 60.800 nascimentos, em 2003 nasceram 53.417 crianças e em 2008 foram 51.648.

Dessa maneira, os dados mostram que a redução no número de nascidos vem sendo considerável, implicando na mudança do número de membros das famílias e, consequentemente, no número de irmãos que é possível ter. Por outro lado, enquanto o número de nascimentos se torna cada vez menor, a expectativa de vida ao nascer é crescente (O Globo, 2011). Ao que parece, o Brasil está caminhando para se tornar um país com percentual populacional expressivo de idosos.

Na Europa, onde tal fenômeno já é uma realidade, o número de nascimentos é muito inferior ao necessário para manter o atual nível populacional, que precisaria ser de 2,1 filhos por mulher e que na realidade tem sido de 1,7 filhos. Além disso, a expectativa de vida é bastante alta, está em torno dos 80 anos3, sendo que a mais alta é em Mônaco com 90 anos e a menor na Ucrânia com 69

anos (Index Mundi, 2011). Durante a segunda metade do século XX, cerca de 50% das mulheres europeias nascidas entre 1950 a 1960 tiveram dois filhos e esse número tende a ser cada vez menor (Europa & Mundo, 2009).

Essa redução do número de membros das famílias pode alterar não só o perfil da sociedade, mas a maneira como os pais e seus filhos pensam e sentem a questão da irmandade. Portanto torna-se necessário estudar as influências de tal mudança nas concepções vigentes acerca da noção de irmandade.

Apesar do número de membros das famílias terem diminuindo nos últimos anos, os estudos sobre filhos únicos ainda são muito escassos em nosso país. Pesquisas em bases de dados realizadas no Banco de Teses da Coordenação de Aprimoramento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no Periódicos Eletrônicos em Psicologia (Pepsic), na Scientific Eletronic Library Online (Scielo), entre outros, mostram que, no Brasil, esse não é um tema muito explorado pela Psicologia e poucas são as publicações de pesquisas com tal temática. Dentre os descritores utilizados para a busca estão: filhos únicos, only child, irmandade, brotherhood, amizade, friendship, Piaget, representação, operatório e método clínico. Utilizando os descritores de forma combinada, foram encontrados o total de 28 arquivos nas bases acima citadas, sendo apenas dois internacionais. Vale ressaltar que nem todos os arquivos foram utilizados no corpo do texto, uma vez que não tinham necessariamente proximidade com o tema em questão, além disso, diante da carência de estudos acerca do tema, alguns dos estudos citados usam referencial teórico diferente do adotado neste trabalho, sendo assim, alguns trabalhos não piagetianos foram utilizados na caracterização de aspectos mais gerais acerca da amizade e irmandade.

Sendo assim, entende-se que estudos sobre irmandade podem ter grande relevância na área, uma vez que o fato de ter ou não irmãos poderá influenciar no funcionamento familiar, assim como no desenvolvimento da criança filho único.

Com efeito, é na família que se estabelecem os primeiros vínculos sociais. Dessa maneira, as relações previamente estabelecidas com os pais são ampliadas e novas formas de socialização são estabelecidas (Tortella, 2001). Assim, pode-se afirmar que a partir das relações iniciais com os pais são construídos os modos de agir, pensar e se relacionar de cada criança (Ferreira, 2009).

Sabe-se que a vivência numa fratria proporciona diversas aprendizagens que ressoam ao longo da vida da criança. A função fraterna é de ajuda recíproca, pois, além do ensinar e do aprender mútuos, ela permite a descarga moderada de agressividade. Ela também é de colaboração, de assistência em um nível de igualdade e de defesa dos direitos das gerações. Na relação entre os irmãos é possível elaborar a angústia e desenvolver a criatividade, aprender a liderar, competir, negociar, rivalizar, fazer acordos e julgamentos, e lidar com frustrações (Ferreira, 2009; Losso, 2001, como citado em Goldsmid & Feres-Carneiro, 2007).

Assim, pode-se afirmar que a irmandade proporciona uma aprendizagem de resolução de conflitos, e que, na medida em que as crianças contatam com o mundo extrafamiliar, elas recorrem a estas aprendizagens para se orientarem no estabelecimento de novas relações (Ferreira, 2009).

Para Freitas (2008), ter um irmão pode influenciar no desenvolvimento cognitivo, social e no ajuste emocional da criança de maneira direta e indireta. De acordo com Brody (2004), a influência direta pode ser verificada por meio dos contatos entre irmãos, ou seja, na forma como eles se relacionam e interagem. Por outro lado, as influencias indiretas ocorrem através do impacto de cada criança nos genitores, ou seja, no cuidado que os irmãos recebem destes (a diferença de tratamento dos genitores seria uma das maneiras pelas quais ter um irmão pode contribuir ou perturbar o desenvolvimento da criança, dependendo de como ocorre a dinâmica familiar).

Ferreira (2009) afirma que a possibilidade de exercer funções de fratria, com o consequente desenvolvimento de representações vinculares conscientes e inconscientes, implica em facilitar o estabelecimento de relações boas com os pares na vida adulta. Percebe-se, portanto, que as pessoas podem sofrer grande influência de seu quadro familiar, em função de suas relações com os seus pais e irmãos.

Dessa forma, parece que o fato de uma criança ter irmãos facilita a vivência de experiências únicas, projetando isso para suas relações extrafamiliares, e desenvolvendo habilidades sociais necessárias para o relacionamento com as outras pessoas ao longo de sua vida.

Contudo, durante o processo de desenvolvimento, é muito importante que as crianças estabeleçam vínculos com outras pessoas que não são de sua família, sendo estes, colegas de escola, da rua onde moram, da igreja, ou de qualquer outro espaço de convivência frequente. Assim, pode-se afirmar que manter relações de amizade permite a vivência de experiências diversas e importantes.

O conceito de amizade pode ser identificado por algumas características ou sentimentos, como sensação de bem-estar, sentimento de igualdade e escolha e afeto mútuo, no entanto, no decorrer do desenvolvimento as expectativas acerca da amizade podem ser bastante flexíveis, podendo estar relacionadas com a transição do concreto para o abstrato (Garcia & Pereira, 2008; Sena & Souza, 2010). Geralmente quando crianças pensam em amizade relacionam-na às brincadeiras e à troca de papéis. Porém, à medida que o desenvolvimento da criança vai acontecendo essa expectativa também se altera. Assim, quando se torna um adulto, a expectativa em relação à amizade já é outra (Sena & Souza, 2010).

Fatores como similaridade do gênero e etnia podem ser importantes critérios de seleção de amizade, esses fatores mostram-se mais presentes quando falamos de crianças e poderão ter maior repercussão no início do estabelecimento do vínculo (Garcia & Pereira, 2008; Sena & Souza, 2010).

A amizade na infância passou a ser tema de interesse a partir dos anos 80, mas ainda é pouco pesquisada. A necessidade de tal investigação se dá pelo fato de que a amizade na infância, assim como a aceitação pelos pares, são formas de socialização de extrema importância. Observam-se associações entre pares, em crianças de até seis meses de idade (Garcia, 2005; Silva & Garcia, 2008). Estas não se apresentam apenas por serem fontes de apoio emocional (Coll et al., 2004; Garcia, 2005), mas também por contribuírem significativamente para o desenvolvimento cognitivo da criança (Sena & Souza, 2010; Wadsworth,1993; Souza & Hutz, 2008), nas relações de conflito e agressividade, no ajustamento da criança à escola e na elevação da autoestima (Garcia, 2005; Garcia & Pereira, 2008).

Quando a criança encontra-se em um contexto de amizade, pode exercitar determinadas habilidades e adquirir competências importantes, além de ter um espaço onde será possível experimentar novas emoções. Esses aspectos são importantes para o desenvolvimento afetivo e emocional, pois a criança aprende mais sobre si mesma, sobre seus pares e sobre o ambiente em que estão inseridas (Garcia & Pereira, 2008; Sena & Souza, 2010). Assim, nas relações entre iguais, nas quais há um sentimento de igualdade entre ambas as partes, torna-se possível desenvolver o respeito mútuo e isto só é possível por meio da troca de ideias, sentimentos e segredos, neste sentido a amizade também tem papel fundamental no desenvolvimento da moralidade (Tortella, 2001).

A cooperação, a competição e o apoio social, são aspectos referentes aos processos psicossociais da amizade e essas questões beneficiam as partes envolvidas, estimulando a criatividade, por exemplo. O desenvolvimento pró-social também está relacionado ao contexto de amizade e inclui a cooperação e o compartilhamento, que são elementos importantes para o desenvolvimento da criança e estão relacionados com aspectos cognitivos (Garcia, 2005).

As relações de amizade também são marcadas por conflito e agressividade, sendo que a forma como amigos e não amigos lidam com tais situações são diferentes. O jeito como a criança age diante de um conflito poderá também afetar a amizade e o sentimento de vingança diante do mesmo, que consequentemente poderá estar relacionada à falta de amizade ou a qualidade da relação estabelecida e repercutirá no não estabelecimento da amizade (Garcia, 2005; Sena & Souza, 2010).

O tema amizade pode ser estudado a partir de diferentes vertentes teóricas e metodológicas. Tortella (1996) buscou compreender a noção que crianças possuem sobre amizade por meio do método clínico piagetiano, para tal a pesquisadora aplicou uma entrevista e fez um acompanhamento das atividades realizadas pelas crianças na sala de aula. Participaram do estudo 19 crianças com idades entre cinco anos e 10 meses e seis anos e sete meses, de ambos os sexos, matriculados em uma Escola Municipal de Educação Infantil. A análise dos dados mostrou que uma criança só consegue adquirir a noção do conceito de amizade se houver interação com outras crianças, além disso, a partir das atividades propostas puderam refletir sobre suas concepções de amizade e expor pontos de vista. Mediante as observações realizadas pelo pesquisador, verificou-se que as crianças demonstraram mais facilidade em estabelecer relações de amizade com iguais que tivessem pele e olhos claros, que fossem loiras e que preferissem manter amizade com crianças do mesmo sexo. De modo geral as crianças demonstraram prazer e felicidade em desenvolver atividades ao lado de amigos. Nesse sentido, a escola deve interessar-se pelo desenvolvimento de aspectos interpessoais, o que auxiliará na resolução de conflitos e evolução acerca do conhecimento social de cada criança.

Outro estudo realizado por Tortella (2001) teve por objetivo identificar, a partir do método clínico piagetiano, as representações de amizade por crianças de diferentes idades, a solução de dilema por cada sujeito componente de uma díade de amigos e o papel da diferença de gênero na solução de dilemas. Participaram do estudo crianças de seis e sete anos (23 meninas e 19 meninos), oito e nove anos (23 meninas e 24 meninos) e 10 a 12 anos (31 meninas e 34 meninos). Os instrumentos de coleta de dados foram: um teste sociométrico tradicional adaptado às crianças pequenas, uma entrevista sobre a concepção de melhor amigo, amigo e não amigo e a discussão de dilemas hipotéticos envolvendo amizade.

Neste estudo, ficou evidente que a aceitação do ponto de vista de uma criança pela qual a outra tem afeto é muito mais fácil, se comparado com uma criança pela qual não possui afeto. Outro aspecto constatado foi que as crianças que têm amigos são mais bem sucedidas no que tange ao afeto e ao estabelecimento de relações sociais quando comparadas às crianças rejeitadas. Não houve discrepância entre idades no âmbito do motivo da interação. No entanto, a idade parece influenciar na forma como as crianças expressam seus sentimentos; de maneira que as crianças maiores lançam mão de sentimentos mais subjetivos em relação às menores. Não foram encontradas diferenças nas concepções de amizade em relação ao sexo; ou seja, meninos e meninas denotaram concepções de amizade similares.

Familiares e amigos oferecem apoio social de formas diferenciada. Os amigos possuem o papel de reduzir o nível de estresse no enfrentamento de situações compartilhadas e possuem influencias significativas do meio em que estão inseridos (Garcia, 2005; Merizio & Rossetti, 2008).

Segundo Garcia (2005) dois contextos em que a criança está inserida estão relacionados no estabelecimento das amizades, são eles, a família e a escola. A família, por sua vez, tem uma participação ainda mais ativa, pois poderá influenciar diretamente tais relações.

Diante do impacto que as redes sociais, mais especificamente a amizade, têm sobre o desenvolvimento infantil e da lacuna teórica sobre o tema, fica evidenciada a necessidade de ampliação de pesquisas acerca da amizade. Alguns trabalhos foram desenvolvidos com o intuito de compreender como estas relações são estabelecidas. Podemos notar que tais pesquisas, geralmente têm sido realizadas com crianças maiores de cinco anos, basicamente por meio de entrevista e/ou observações (Guzman et al., 2004; Garcia, 2005; Borelli & Garcia, 2006; Garcia, 2006; Daudt et al., 2007; Garcia & Pereira, 2008; Silva & Garcia, 2008) ou com adultos (Gomes & Silva-Júnior, 2007; Merizio & Rossetti, 2008). Foi encontrada também a pesquisa realizada por Rohde e cols. (1998), na qual foi utilizada a Entrevista Sobre Amigos e Companheiros da Cornell (Cornell Interview of Peers and Friends), para avaliar as relações de amizade entre meninos de rua com idades de sete a 11 anos.

Lisboa (2005), em sua tese de doutorado utilizou os instrumentos: Peer Assessment, Escala de autorrelato sobre Comportamento Agressivo e Friendships Qualities Scale, com o intuito de avaliar a agressividade, vitimização e amizade em crianças de nove a 15 anos. Estudos utilizando instrumentos para avaliação da amizade são encontrados ainda mais raramente na literatura.

Nesse sentido a ampliação das pesquisas sobre amizade e irmandade justifica-se pela necessidade de uma investigação maior acerca desses dois temas, visando preencher a lacuna existente na literatura. Vale ressaltar, que "o estudo da criança nos permite conhecer não apenas as características dos seres humanos de uma determinada idade, como também todo o processo pelo qual se chega a ser adulto" (Delval, 2002, p.34).

Um método comumente utilizado no estudo com crianças, e que também pode ser utilizado no contexto das pesquisas sobre irmandade e amizade é o método clínico piagetiano (Piaget, 2005; Carraher, 1989; Delval, 2002). Este método consiste em uma forma de obter dados em interação direta com o sujeito. Sua essência versa sobre a intervenção constante do experimentador diante das respostas do sujeito, com a finalidade de descobrir os caminhos de seu pensamento (Delval, 2002). Sendo assim, o método clínico é um procedimento para investigar como as crianças pensam, percebem, agem e sentem; e procura descobrir o que não é evidente no que os sujeitos fazem ou dizem (Delval, 2002)4,5.

A partir desses apontamentos, surgiram os questionamentos: (a) Quais seriam as representações de amizade e irmandade para filhos únicos em nosso contexto? (b) O que pensariam as crianças filhas únicas sobre as relações entre irmandade e amizade?

Vale a pena ressaltar que nesse artigo usa-se "representação" no sentido piagetiano do termo. Desde o estágio pré-operatório descrito por Piaget (1954/1994), a criança desenvolve a capacidade de substituir um objeto ou acontecimento por uma representação, e nesse sentido, a função simbólica é o que possibilita essa substituição. Sendo assim, a criança é capaz de duplicar objetos ou acontecimentos por uma palavra, por um gesto, por uma lembrança, ou seja, é capaz de evoca-los em sua ausência (Macedo, 1994). A isso chamamos de representação: a capacidade humana de substituir objetos ou acontecimentos por seus equivalentes simbólicos. Sendo assim, o objetivo desse trabalho foi investigar as representações que filhos únicos têm sobre os conceitos de amizade e de irmandade.

 

Método

Participantes

Participaram dessa pesquisa seis crianças filhas únicas, três meninos e três meninas, na faixa etária de nove e 10 anos, residentes na Região Metropolitana da Grande Vitória, matriculadas em uma escola pública de ensino fundamental na capital do estado.

Para composição do grupo, foi solicitado às coordenadoras, pedagogas e professoras da escola que indicassem crianças que fossem filhos únicos, de ambos os pais, e cujos pais não estivessem esperando o nascimento de um segundo filho; ou seja, que não estivessem grávidos.

 

Procedimento de coleta e análise de dados

Enviou-se uma carta aos pais esclarecendo os objetivos da pesquisa e um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), pedindo a permissão para entrevistar seus filhos. Com o devido preenchimento do TCLE, foram iniciadas as entrevistas com as crianças no espaço escolar. Para elas, foi entregue o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido, no qual cada criança que assentisse em participar assinava. As entrevistas foram gravadas em mídia digital para posterior transcrição.

Sendo assim, na entrevista utilizou-se o método clínico piagetiano, e, seguiu-se um roteiro semiestruturado contendo 14 questões divididas em três blocos: concepções de irmandade, concepções de amizade e relações entre amizade e irmandade.

Os dados foram analisados seguindo as considerações de como um pesquisador que utiliza o método clínico piagetiano deve agir diante das informações coletadas em uma entrevista. Acerca disso, Delval (2002) afirma que o pesquisador tem de abrir mão de sua forma de pensar para introduzir-se na forma de pensar do sujeito. Sendo assim, o entrevistador não pode atribuir aos termos que o participante utiliza o mesmo sentido que têm para si próprio, mas deve buscar esclarecer qual é o sentido desses termos dentro da estrutura mental do sujeito.

Para análise dos dados, foi necessário transcrever as entrevistas (quando gravadas em áudio, como foi o caso dessa pesquisa), gerando, como Delval (2002) nomeia: um protocolo. As perguntas e as respostas devem ser transcritas exatamente como se apresentaram, de forma literal.

A partir da construção de categorias, as falas das crianças contidas nesses protocolos puderam ser adequadamente analisadas e foi possível verificar a frequência de aparecimento das respostas. Sendo assim, foi possível identificar as concepções dos participantes em relação ao tema investigado.

Dessa maneira utilizou-se uma metodologia de análise quanti/qualitativa, por entender-se que essa forma de análise agrega características que resultam em ampla compreensão dos problemas de pesquisa (Creswell, 2010).

 

Resultados e Discussão

A entrevista foi separada em três blocos de perguntas, o primeiro bloco era composto por perguntas acerca do tema irmandade, o segundo por perguntas sobre amizade e o terceiro por perguntas sobre as relações entre amizade e irmandade.

Em relação ao primeiro bloco de questões, foi perguntado às crianças se elas conheciam famílias que tinham filhos únicos e 33,3% das crianças disseram que não, o que significa que essas não consideraram sua própria família ao responder. No entanto, a maioria das crianças, 66,7%, alegou conhecer famílias com filhos únicos.

Com o intuito de identificar a maneira como a amostra se percebia, foi perguntado se eles são filhos únicos e 100% dos entrevistados responderam que sim, ou seja, tais crianças consideram-se filhos únicos, apesar de alguns desses parecerem acreditar não conhecer famílias de filhos únicos.

Quanto à concepção do que é ser irmão, as respostas mais frequentes foram "ser companheiro" (83,3%), "oferecer apoio" (66,7%) e "ter conflito" (33,3%) e respostas que envolviam outras atividades (16,7%). Dentre a frequência de respostas dos participantes acerca do convívio entre irmãos foram destacados os aspectos como: "fazer companhia" (83,3%), "conflito" (83,3%), "apoio" (33,3%) e "compartilhar" (33,3%).

De acordo com alguns autores, a fratria tem, entre outras funções, a de ajuda, elaboração de angústia, competição, negociação e até mesmo descarga moderada de agressividade (Ferreira, 2009; Losso, 2001, como citado em Goldsmid & Feres-Carneiro, 2007) o que significa que as respostas das crianças são compatíveis com os apontamentos feitos pela literatura em questão que discute que até mesmo os conflitos fazem parte de tal relação.

Das respostas obtidas, 83,3% dos participantes disseram que desejam ter irmão, sendo os motivos: "companhia" (83,3%), "receber apoio" (16,7%) e "compartilhar" (16,7%). Segundo Ferreira (2009) ter irmãos proporciona o estabelecimento de boas relações entre pares na vida adulta, nesse sentido as relações estabelecidas entre irmãos são de extrema importância.

Quanto ao sexo que gostariam que o irmão tivesse, 66,7% preferiria ter irmã, 16,7% irmão e 16,6% não respondeu. Ainda sobre esta questão, 66,7% dos respondentes disseram que o motivo é "preferência pelo sexo escolhido" e/ou 33,3% pelo "companheirismo" e/ou 16,7% pelo "apoio". Os dados encontrados na presente pesquisa vão de encontro com outros trabalhos realizados sobre as relações de gênero em crianças (Saavedra & Barros, 1996; Ribeiro, 2006). Apesar de a literatura afirmar que tanto meninos, quanto meninas demonstram preferências, comportamentos, competências e atributos de personalidade mais apropriados para o seu sexo, seguindo, desde pequenos, as normas e padrões muitas vezes aprendidos na família e no sistema das relações em que vivem; na presente pesquisa, os dados foram contrários ao encontrado na literatura, indicando que tanto meninos quanto meninas preferiram ter irmãos do sexo feminino. Não foi possível identificar o motivo por esta escolha contraditória à literatura. Portanto, é importante que futuras pesquisas possam abordar tais questões, uma vez que, como citado anteriormente, estudos sobre irmandade ainda são escassos.

No segundo bloco de perguntas, que diz respeito à concepção de amizade, 100% das crianças responderam que conhecem pessoas que tem amigos e que possuem relações de amizade com pares iguais. Todas as crianças disserem que possuem amigos na escola, no entanto, 83,3% disseram que também têm relação de amizade com crianças do bairro onde moram. Além disso, 50% também relatou ter amizade com crianças de outros bairros e outras cidades, e 33,3% de outros lugares. De acordo com a literatura, a maior influencia nas relações de amizade na escola decorre da própria escola e da família, o que vai ao encontro das respostas encontradas (Garcia, 2005).

Supõe-se que o fato de todas as crianças terem indicado a escola como o espaço onde se tem amigos se dá pelo mesmo motivo citado por Ricardo e Rossetti (2011) em sua pesquisa, que é o fato desse contexto ser relativamente novo para as crianças, sendo, portanto, a escola a principal fonte de relacionamentos nesta fase da vida, em que, até pouco tempo, os membros da família eram quase os únicos com quem a criança estabelecia contato durante a primeira infância.

As relações de amizade, como também as de irmandade, exercem grande influência sobre o desenvolvimento cognitivo da criança e, assim como nas formas de socialização, são fonte de apoio emocional, entre outros (Garcia, 2005; Silva & Garcia, 2008; Coll et al., 2004; Sena & Souza, 2010; Wadsworth,1993; Souza & Hutz, 2008; Garcia & Pereira, 2008).

Apesar de 100% da amostra não ter irmãos, o fato de manterem relações de amizade poderá auxiliá-los na vida adulta, em determinadas atividades tais como de socialização. Além disso, manter relações de amizade com pares extrafamiliares pode contribuir para novas perspectivas no que tange à diferença de apoio social que é oferecida por amigos e familiares (Garcia, 2005; Merizio & Rossetti, 2008).

Quando perguntados sobre o que é ser amigo, as categorias de respostas mais frequentes foram "oferecer apoio" (83,3%) "fazer companhia" (66,7%) e demais categorias de respostas (33,3%). Esses dados corroboram o encontrado na pesquisa de Garcia e Pereira (2008) no que se refere aos processos psicossociais com os quais as crianças estão envolvidas. Segundo os autores, as crianças reconhecem a ajuda e o apoio dos amigos em atividades escolares, ao defendê-los de agressores e no brincar. De acordo com a literatura, em contexto de amizade as crianças podem exercitar e adquirir competências importantes (Garcia & Pereira, 2008; Sena & Souza, 2010) que não conseguem no contexto familiar, quando falamos de família de filhos únicos.

Das respostas dos participantes acerca das atitudes que contribuem para o estabelecimento da amizade, foram destacados aspectos como "tratar bem" (100%), o ser "brincalhão/engraçado" (33%), o fato do "compartilhamento" contribuir para a amizade (16,7%), o "oferecer apoio" (16,7%) e "outras respostas" (16,7%). Aspectos que atrapalham as amizades envolvem respostas relacionadas a "atitudes conflituosas" (66,7%), "atitudes socialmente indesejáveis" (33,3%), "tratar mal" (16,7%) e "outras respostas" (50%), neste caso alguns participantes emitiram várias respostas para uma única pergunta, o que reflete em soma total de respostas acima de 100%. De acordo com Garcia (2005) e Sena e Souza (2010) as relações de conflito estão relacionadas com a falta de amizade ou com a qualidade da relação estabelecida, sentimentos de vingança e também podem estar relacionadas com situações conflituosas. Tais dados também vão ao encontro dos achados de Garcia e Pereira (2008) no que se refere aos processos cognitivos e emocionais envolvidos nas relações de amizade entre crianças. Em sua pesquisa, a maioria das crianças afirmou como sendo qualidades positivas dos amigos o fato de terem brincadeiras legais e serem pessoas boas, honestas, terem bom caráter, ser alegres, bonitas e sorridentes; e afirmaram como sendo qualidades negativas o bater em colegas e implicar.

Dos achados acerca de como é o convívio entre amigos, foram encontradas categorias como "companheirismo" (83,3%), "apoio" (33,3%), "conflitos" (16,7%) e "outras respostas" (16,7 %), como a pergunta era bastante ampla, algumas crianças deram mais de uma resposta para a mesma pergunta, dessa maneira, a soma total das respostas foi superior a 100%. Garcia (2005) afirma que os amigos são grande fonte de apoio social, mas que também, os conflitos e a agressividade integram as relações de amizade.

No que tange ao terceiro bloco de perguntas, foi perguntado se os participantes acreditavam que irmãos podem ser amigos e 100% dos participantes acreditam que sim; justificam suas respostas afirmando que ambos fazem "companhia" (100%) e/ou "oferecem apoio" (33,3%) e/ou "tem conflitos" (16,7%).

Quanto à crença na diferença entre ser amigo e ser irmão, 50% das respostas dos participantes indicaram acreditar que "existe diferença" e 50% indicaram acreditar que "não existe diferença". Dentre as respostas das crianças que acreditam que essa diferença existe, 50% afirmam que "irmãos fazem mais companhia que amigos", 16,7% que "irmãos compartilham mais", e 16,7% que "amigos fazem mais companhia". No que se refere às respostas sobre a semelhança entre ser amigo e irmão, 33,3% justificaram dizendo que ambos "fazem companhia", 16,7% que oferecem "apoio" da mesma maneira e 33,3% deram "outras respostas". Quanto a isso De Antoni e Koller (2000) mostram em sua pesquisa que, por vezes, algumas pessoas valorizam mais as formas de interação com base nas relações de amizade, em que prevalecem a afinidade e a responsabilidade sobre o cuidado, do que os laços consanguíneos, como em casos de adoção. Supõe-se que no caso das crianças dessa pesquisa, isso pode explicar o fato de muitas crianças considerarem que não existe diferença entre ser amigo e ser irmão.

Os participantes foram interrogados quanto à preferência entre ter amigo ou irmão e 66,7% responderam que preferiam ter os dois, enquanto que 33,3% dos entrevistados disseram que preferiam ter irmãos. O motivo dessa escolha gira em torno da companhia (83,3%) e tratar bem (16,7%). Grande parte das crianças entrevistadas demonstra desejo em ter tanto amigos como irmãos, o que pode significar que atribuem funções distintas aos dois (Garcia, 2005).

Não foram encontrados na literatura referências que falassem acerca dessa predileção de crianças filhas únicas em terem irmãos a amigos, também não se encontrou estudos que falassem sobre o desejo dos mesmos terem irmãos. Sendo assim, fica clara a necessidade de se fazerem novas pesquisas nessa área, a fim de que se possa compreender melhor as questões relacionadas aos filhos únicos.

 

Considerações finais

De acordo com a amostra investigada, observou-se que as crianças quase sempre desejam ter irmãos e de acordo com dados encontrados na literatura, podemos afirmar que as relações estabelecidas na infância irão repercutir na forma como estabelecerá relações na idade adulta.

O apoio oferecido por amigos é distinto daqueles oferecidos por irmãos (Garcia, 2005; Merizio & Rossetti, 2008), o que reflete na importância da criança em manter relações de amizade e irmandade no decorrer de sua vida. Quanto às relações entre amizade e irmandade, metade da amostra estudada acredita que ambos possuem funções distintas, que ter irmãos é diferente de ter amigos, a outra metade da amostra considera que ter irmãos é o mesmo que ter amigos. Este resultado parece indicar que este conceito não está muito claro para as crianças de nove e 10 anos, ou seja, ainda não há um consenso entre as crianças nesta idade.

Vale ressaltar que utilizar o método clínico para a realização da pesquisa foi fundamental para ter uma melhor compreensão sobre o que/como as crianças pensam sobre esse assunto, pois esse método permite ao entrevistador investigar de forma mais aprofundada as questões através de perguntas que levam a criança a refletir sobre o tema investigado.

É importante que os estudos acerca desse assunto continuem se expandindo de modo a abranger maior número de sujeitos, em idade/fase de desenvolvimento distinto e diferentes culturas para que haja maior compreensão das possíveis influências que as relações de amizade e irmandade provocam no decorrer do desenvolvimento.

 

Referências

Borelli, M. & Garcia, A. (2006). Psicologia da amizade na infância: uma investigação empírica em Vitória, Brasil. In A. Garcia (Org.), Relacionamento interpessoal: estudos brasileiros (p. 67-81). Vitória: ICIRR.         [ Links ]

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Recebido em: 15/08/2012
Aceito em: 04/11/2012

 

 

1 Contato: schwanny.vicente@gmail.com
2 Considerando o número de nascidos vivos.
3 Dados extraídos de http://www.indexmundi.com/map/?t=0&v=26&r=eu&l=pt em 11/10/2011
4 A presente pesquisa foi realizada no contexto de uma disciplina específica sobre o Método Clínico ministrada durante o ano de 2011 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo.
5 Importante destacar que as porcentagens se referem à frequência das respostas de cada categoria. Assim, por exemplo, se uma criança que dizia que ser irmão é ser companheiro e é dar apoio, tal resposta era incluída simultaneamente nas categorias de companheirismo e de apoio. Por tal motivo a somatória das respostas muitas vezes é maior que 100%.