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Estudos de Psicanálise
versión impresa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.47 Belo Horizonte jul. 2017
A construção do caso em saúde mental como meio de sustentar o discurso do analista na instituição
The construction of the case in mental health as a way of sustain the analyst’s discourse in the institution
Breno Ferreira Pena
I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Universidade Federal do Pará
RESUMO
A proposta deste artigo é demonstrar a possibilidade da presença do discurso do analista na instituição por meio da construção do caso em saúde mental. Para tanto, é preciso envolver toda a equipe e trabalhar a partir de um furo no saber, no qual se procura escutar as especificidades de cada caso e as possibilidades singulares de intervenção.
Palavras-chave: Construção do caso, Instituição, Discurso do analista, Saúde mental.
ABSTRACT
The purpose of this article is to demonstrate the possibility of the analyst’s discourse at the institution through the construction of a mental health case. Therefore, there is the necessity of engaging the whole team and work through the knowledge gap, which allows one to listen to the specificities of each case and the unique possibilities of intervention.
Keywords: Construction of the case, Institution, Analyst’s discourse, Mental health.
A construção do caso em saúde mental é um dispositivo clínico da psicanálise em extensão e tem como proposta possibilitar uma escuta clínica de toda a equipe de saúde mental na instituição, com o objetivo de construir a direção do tratamento de pacientes psicóticos. A construção se dá por meio do discurso do analista que, ao fazer furo no saber instituído, procura criar disponibilidade para que a escuta clínica aconteça na equipe da instituição.
Para o psicanalista italiano Carlo Viganó, referência internacional sobre o tema, a construção do caso em saúde mental é a melhor forma de fazer valer a presença do discurso do analista na instituição. A construção do caso possibilitará à equipe, caso ela queira escutar o paciente, aprender com ele e intervir para que cada paciente, à sua maneira e de acordo com suas especificidades, consiga construir um lugar no Outro.
O que pode substituir o manicômio não são puramente as estruturas externas, tem que ser um discurso, tem que ser uma estrutura simbólica que dá um lugar ao psicótico e este é um dever dos enfermeiros e de todas as outras pessoas que entram na relação com os psicóticos (VIGANÓ, 2012, p. 74).
Há, portanto, a expectativa de que a construção do caso em saúde mental seja um trabalho de vários, que envolva toda a equipe, frente à singularidade de cada paciente. A lógica dessa construção pressupõe a desconsideração de hierarquias, onde todos devem ser vistos como operadores da construção. Uma proposta, portanto, que não se faz com um saber instituído ou aprendido nos livros. Toda a equipe deve se abrir ao novo e à singularidade para escutar o paciente e se surpreender com ele e, então, favorecer suas invenções, que possibilitam também sua estabilização ao lhe dar um lugar no Outro:
Não é o sujeito que “deve” respeitar as instituições, mas a instituição que será respeitada só se tiver vontade de dar ao sujeito uma representação, um lugar no vínculo social (VIGANÓ, 2012, p. 101).
E, como frisa o autor, foi a clínica de orientação lacaniana que criou as condições essenciais para esse trabalho de construção do caso em saúde mental. Condições que começam a ser traçadas já no primeiro ensino de Lacan, mas que ganham plena possibilidade a partir do seu segundo ensino.
No início de seu ensino, Lacan ([1955-1956] 1985) retoma as análises freudianas sobre o caso Schreber. Demonstra que o psicótico, por não entrar no ordenamento fálico, apesar de habitar a linguagem, não é habitado por ela, como acontece com o neurótico. A ele falta o significante Nome-do-Pai, que foi foracluído. Para o psicótico as palavras são como as coisas e, assim, ele não faz trocas, doações, que se estabelecem pelo jogo simbólico.
Para Lacan o significante Nome-do-Pai, que serve como ponto de basta e metaforiza o desejo do Outro na neurose, não existe na psicose. A falta desse significante transforma o Outro em um Outro absoluto. E é por isso que o psicótico põe o Outro como persecutório.
Há, no entanto, no psicótico um movimento para inventar saídas diante da ameaça que vem do Outro. Basta ouvi-lo, segundo Lacan ([1955-1956] 1985). Assim, Lacan passa a escutar esses pacientes e afirma que é preciso lhes dar a palavra e tornar-se secretário do alienado.
No primeiro ensino de Lacan, todavia, é preciso ressaltar que, apesar de toda a sua contribuição para o tratamento da psicose, há ainda uma perspectiva de déficit para essa estrutura. O psicótico não possui o significante Nome-do-Pai, que organiza as cadeias simbólicas, sustenta o gozo fálico e dá a possibilidade do sujeito de se representar, mesmo que parcialmente, na linguagem.
No entanto, com a segunda clínica, que privilegia o Real – aquilo que não para de não se inscrever –, Lacan avança na clínica com as psicoses, a partir da perspectiva da topologia borromeana. Ele toma a inconsistência do Outro como ponto de partida do falasser e o Nome-do-Pai como um quarto termo, equivalendo ao sinthoma, que articula os três registros: real, simbólico e imaginário (LACAN, [1975-1976] 2007).
A questão passa a ser os modos de gozo e a versão do pai frente à inconsistência do Outro, mas de maneira absolutamente singular em cada caso. O enfoque, portanto, não está mais na estrutura, mas no retorno do gozo sobre o sujeito:
Essa nova clínica é essencialmente uma clínica que trata do estatuto do gozo, das modalidades de retorno do gozo, que não se limitam aos fenômenos típicos da psicose como na alucinação auditiva ou nos fenômenos de linguagem. São também aspectos de retorno do gozo no corpo ou no ato, no agir. Há também retorno do gozo nos afetos e ao mesmo tempo, essa clínica do retorno do gozo é também uma clínica que tem a vantagem de ser uma forma que o sujeito encontra de tratar o retorno do gozo (ZENONI, 2000, p. 42).
Há, portanto, uma tentativa do psicótico de criar saídas, invenções próprias para lidar com esse Outro que o invade como gozo do Outro. Lacan mesmo já apontara, desde seus primeiros seminários, a necessidade de escutar as invenções do psicótico. Mas a partir da clínica do Real seu ensino foca o retorno do gozo por meio das tentativas do psicótico de se defender desse Outro que goza dele:
Então, o interesse prático e clínico dessa nova teoria é de nos permitir encontrar o sujeito psicótico no processo do seu autotratamento e de poder nos apoiar sobre o que ele próprio inventa, seja para prolongar isso, seja para deslocá-lo (ZENONI, 2000, p. 42).
Para Viganó (2012) é possível propor, de forma esquemática, três das saídas mais comuns, encontradas pelo psicótico para lidar com o Outro.
• A primeira é a autodefesa. Isso acontece quando o Outro se torna absoluto, e o psicótico acredita que o Outro pode destruí-lo. Assim, ele se anula na tentativa de não receber os signos do Outro. Tranca-se no quarto, tampa os ouvidos, troca a noite pelo dia, etc.
• A segunda operação é a autoconstrução. Nela o psicótico faz uso da linguagem para inventar saídas, utiliza-se de atos com valor simbólico ou mesmo do delírio para regular a presença do Outro, na tentativa de construir uma existência simbólica com tal operação.
• Como terceira saída, Viganó sugere que os pacientes que estão em atendimento muitas vezes fazem uma adesão ao Outro, quando passam a se preocupar com a equipe que o atende, por exemplo, se todos voltaram bem para casa, etc. No entanto, mesmo procurando saídas para lidar com o Outro que o invade e o persegue, o psicótico o faz sempre sozinho.
A produção psicótica geralmente não consegue reconhecimento no Outro, não faz laço social. Essas produções, no entanto, invenções do psicótico frente ao retorno do gozo, são fundamentais para o tratamento.
A partir delas e com a segunda clínica de Lacan, os psicanalistas podem propor a construção do caso em saúde mental como direção do tratamento. Isso constitui uma forma de escutar tais movimentos de construção do paciente, por meio de um discurso, que favorece a estabilização e o laço social ao lhe permitir encontrar um lugar no mundo simbólico.
Para a construção do caso em saúde mental, portanto, deve-se estar atento aos modos de gozo do psicótico, como ele é invadido pelo gozo do Outro e como ele dá tratamento a isso, quais são suas invenções.
Assim, como ressalta Di Ciaccia (2003), é um trabalho de vários, e é indispensável a participação de toda a equipe. A equipe que convive com o paciente deve estar disposta a escutá-lo, reconhecer pequenas diferenças em seu dia a dia. Com tal disposição para escutar, a equipe certamente se surpreenderá e encontrará maneiras, com a construção do caso, de se fazer Outro para o paciente, mas um Outro barrado, que quer aprender com ele.
Notar pequenas diferenças é um modo de favorecer que o psicótico traga suas invenções, muitas vezes secretas, para o nível da palavra e encontre um lugar simbólico no mundo, modo de alcançar a estabilização.
Segundo Figueiredo (2005), é preciso considerar as manifestações do sujeito do inconsciente para a construção do caso na direção do tratamento, em pelo menos três referências do termo.
• O sujeito do gozo, que diz respeito à parte pulsional do sujeito, suas relações com o gozo, que podem ser avassaladoras ou mesmo uma forma de enlaçamento social.
• O sujeito da palavra, que pode surgir a qualquer momento na fala do paciente, por meio de um trabalho de elaboração, que, até mesmo disperso, deve ser escutado, acolhido e acompanhado.
• O sujeito do ato, que aponta uma afirmação. Esta pode se dar por uma passagem ao ato, não só como ruptura com o simbólico, mas também como possibilidade de o sujeito se afirmar em uma recusa – não! – ou mesmo como fruto de um produto do trabalho nas oficinas.
O importante a frisar é que recolher as manifestações sempre evanescentes do sujeito, no dia a dia do usuário, vai produzindo com a construção do caso um saber como síntese, que funciona como norte para as intervenções da equipe.
Esse três modos de apresentação do sujeito servem como bússola para nossa intervenção e fornecem os elementos significantes que recolhemos na construção de cada caso (FIGUEIREDO, 2005, p. 7).
De toda maneira, o advento de uma escuta clínica na equipe, essencial para recolher as manifestações do sujeito do inconsciente para a construção do caso, só ocorrerá a partir da presença do discurso do analista na instituição. Esse discurso possibilitará a construção do caso em saúde mental, que indicará a direção do tratamento em cada caso.
A partir do discurso do analista e ao se posicionar como objeto a, o psicanalista/pesquisador faz furo no saber da equipe e possibilita a construção do caso para a direção do tratamento.
Viganó (2012), todavia, propõe a utilização desse mesmo discurso por meio dos próprios operadores, mas não exatamente do mesmo modo que o analista o utiliza.
À esquerda em cima, no lugar de agente do discurso está o a, representando o sintoma do paciente com seu gozo em questão e suas saídas singulares frente a esse modo de gozo.
À direita em cima, no lugar do outro do discurso está , o operador do serviço, como sujeito dividido, causado e disponível à escuta para a construção do caso. O operador é que vai aprender com o psicótico, surpreender-se com suas invenções e favorecê-las ou não, dependendo da direção do tratamento, mas sobretudo escutá-las para criar a possibilidade de fazer-se Outro para ele.
Abaixo e à direita, no lugar da produção, está S1 representando a instituição, ou melhor, o efeito do discurso do analista sobre a própria instituição.
Abaixo e à esquerda, no lugar da verdade, está S2, que representa o saber inconsciente que, por estar no lugar da verdade, se torna inacessível a qualquer conexão com o S1 da instituição.
O discurso do analista move a construção do caso em saúde mental, mas não existe uma forma definida, fechada, para tal construção. É preciso respeitar as especificidades de cada equipe e de cada paciente. Há, porém, pelo menos três pontos nevrálgicos a destacar em sua realização.
Um ponto essencial para a construção do caso em saúde mental é a diferenciação da construção com a interpretação, pois na construção do caso procura-se evitar a todo custo a interpretação. A interpretação visa um sentido e influencia a equipe a criar sua própria verdade sobre o sujeito, em vez de escutá-lo para se fazer um Outro furado, que quer aprender com ele.
Para isso, é fundamental aprender a língua do psicótico. Não é se colocar como um Outro avaliador e possivelmente persecutório, mas se oferecer como um Outro que pode estar ao lado do paciente. Essa disponibilidade favorece a construção de um Outro que o reconheça pela palavra.
Além disso, como ressalta Figueiredo não seria possível pensar na interpretação para a construção do caso, já que:
A finalidade da construção deve ser justamente a de partilhar determinados elementos de cada caso em um trabalho conjunto, o que seria impossível na via da interpretação (FIGUEIREDO, 2004, p. 78).
Outro aspecto é que a construção do caso em saúde mental deve sempre garantir um ponto de vazio, pois não visa uma verdade totalizante sobre o paciente. Pelo contrário, o caso sempre fica aberto a novas reconstruções, o que favorece uma escuta pronta a se surpreender sempre com o paciente e suas invenções. Além disso, só a posteriori pode-se confirmar ou refutar a construção do caso. Isso se dá pelas respostas inconscientes do paciente diante da direção do tratamento.
Por último, cabe destacar que o envolvimento da equipe é outro ponto estrutural para que possa haver a construção do caso em saúde mental. É preciso que a equipe esteja disposta a dar algo de si, para favorecer esse processo que não termina com a construção do caso, mas que se inicia com ela. A equipe com uma proposta clínica se volta para escutar o paciente, debruça-se sobre suas invenções, o que exige suportar a própria castração, o não saber, em prol das produções do sujeito.
Como já propunha Lacan ([1955-1956] 1985) no início do seu ensino, é preciso testemunhar, ou seja, ser testemunha das construções do psicótico para favorecer sua estabilização. Isso, portanto, requer antes de tudo uma equipe disposta a fazê-lo. Há que haver o desejo de se colocar a trabalho em uma construção que prescinde da hierarquia e possibilita a todos da equipe poder emergir como “autoridade clínica”.
Isso se daria por um momento, mas o que de fato ocupa esse lugar e propõe a direção do tratamento é a própria construção do caso feita por todos:
O que caracteriza a construção do caso na equipe de saúde mental, e diverge do trabalho mais específico do psicanalista, é exatamente o fato da equipe ser heterogênea em sua composição – diferentes profissionais e referências teórico-técnicas, diferentes níveis de formação. Mas é justamente por meio desse trabalho “coletivo” que a discussão do caso deve ir na direção do “aprendiz da clínica”, ao seja, colher das produções do sujeito os indicadores de seu tratamento, e não, ao contrário, impor o modelo da reabilitação em sua dimensão pedagógica e moral, como acontece com frequência (FIGUEIREDO, 2004, p. 83).
Como ressalta Lacan ([1958] 1998), o analista dirige não o paciente, mas o tratamento. E, para fazê-lo, é fundamental que tenha uma orientação, que se daria em três níveis: o tático, o estratégico e o político, que Lacan destaca como o mais importante, pois é o nível que decide uma guerra.
A política, na perspectiva do tratamento, seria a do analista, ou seja, a política do falta-a-ser, que também deve orientar a construção do caso clínico em saúde mental. Uma política orientada pelo objeto a, que visa que o sujeito circunscreva algo do Real do seu sintoma, propriamente neurótico ou como produção psicótica, não pela compreensão, mas pelo encontro com uma política que sustenta o discurso do analista na instituição.
Referências
DI CIACCIA, A. D. Inventar a psicanálise na instituição. In: ______. Uso da psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003. p. 33-38. [ Links ]
FIGUEIREDO, A. C. A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, ano VII, n. 1, p. 75-86, mar. 2004. [ Links ]
FIGUEIREDO, A. C. Uma proposta da psicanálise para o trabalho em equipe na atenção psicossocial. Mental [online], Barbacena, v. 3, n. 5. p. 43-55. nov. 2005. ISSN 1679-4427. [ Links ]
LACAN, J. O seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Aluísio Menezes. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]
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LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]
VIGANÒ, C. Novas conferências. Belo Horizonte: Scriptum, 2012. [ Links ]
ZENONI, A. Psicanálise e instituição: a segunda clínica de Lacan. Abrecampos - Revista de Saúde Mental do Instituto Raul Soares, Belo Horizonte, IRS/FHEMIG, ano I, n. 0, p. 12-93, 2000. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: brenopena@hotmail.com
Recebido em: 17/05/2017
Aprovado em: 23/05/2017
SOBRE O AUTOR
Breno Ferreira Pena
Psicólogo e graduado em administração de empresas.
Psicanalista e sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Pós-graduado em gestão de pessoas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Mestre e doutor em psicologia pela PUC Minas.
Professor adjunto da graduação em psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Professor e orientador de pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Federal do Pará (UFPA).