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Estudos de Psicanálise

versión impresa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.49 Belo Horizonte enero/jun. 2018

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

Atravessado pelo mal-estar

 

Distressed over a great discontent

 

 

Messias Eustáquio Chaves

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Círculo Brasileiro de Psicanálise
III International Federation of Psychoanalytical Societies

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto apresenta uma leitura de O mal-estar na civilização, contextualizando-o com o período da Primeira Guerra Mundial. Freud acompanhou os movimentos sociais, as crises políticas e econômicas, a derrota da Alemanha, a grande frustração de Adolf Hitler e seus colegas ex-combatentes, a fundação do partido nazista em 1923 e a ascensão do III Reich. Temos uma forte impressão de que Freud estava querendo transmitir algo que ele considerava muito importante para a sociedade da época. Todos os indivíduos necessitavam fazer uma leitura de si mesmos e dos outros não só olhando para fora mas principalmente enxergando-se a si mesmos e aos outros por dentro, tornando consciente o que estava inconsciente. Perceber, sem fugir da verdade do sujeito, o quanto um é semelhante ao outro. Freud parece irritado com os preconceitos, com a ilusão de felicidade absoluta e de completude, transmitindo nas entrelinhas o seu encontro com a falta-a-ser. Chama a atenção para o real da pulsão de morte e da incompletude do sujeito humano em sua estrutura psíquica.

Palavras-chave: Atravessado, Mal-estar, Agressividade, Simbolização, Civilização.


ABSTRACT

The text proposes a reading of The Civilization and its Discontents, contextualizing it with the period of the First World War. Freud followed social movements as political and economic crises, the defeat of Germany, the great frustration of Adolf Hitler and his fellow ex-combatants, the founding of the Nazi party in 1923 and the rise of the III Reich. We have a strong impression that Freud wished to transmit something that he considered very important to the society of his time. All persons needed an understanding of self and other not only from an outside view, but mainly looking at themselves and others inside making aware what was unconscious. To realize, without escaping from one’s truth, how much one is similar to another. Freud seemed irritated by prejudices, with an illusion of absolute happiness and completeness, to convey between the lines his encounter with a lack-to-be. It draws attention to the reality of the death drive and the incompleteness of the human subject in his psychic structure

Keywords: Being distressed, Discontent, Aggression, Symbolization, Civilization.


 

O acesso ao real é estreito e
é por persegui-lo que a psicanálise se perfila.

LACAN, Radiofonia, 1970.

 

Sinto-me atacado, estimulado por um enxame de ideias que emergindo do texto de Freud, povoam a minha mente. Remeto-me ao pagamento de uma “libra de carne” (LACAN, [1964] 1985), atravessado pelo mal-estar ao encontrar Freud ([1930] 1974). Terceira leitura em épocas diferentes e a sensação de estar lendo pela primeira vez. O pensamento se compromete, os sentimentos acompanham, as ideias se articulam e as pulsões pulsam mobilizando a libido em várias direções. Cada dia, cada página lida, cada semana, cada olhada para o nosso Brasil e o mundo desde a pré-história me deixam estimulado com questões pensativo, triste, perdido no redemoinho de tantas ideias que se me apresentam, oferecendo ao meu dizer alguma coisa sobre o drama humano há milênios, o mal-estar na civilização, na cultura da humanidade, a dinâmica da estrutura psíquica humana, vivendo as suas diversas épocas, em progressão e regressão, ao longo da história, que se repete, e se repetindo, vai. Quero produzir muito e sinto a falta em mim. Mal-estar.

Penso sobre a genialidade do pensamento de Freud – na qualidade da sua escrita; na sua vontade juvenil de estudar os problemas culturais e históricos da humanidade, da filosofia, da antropologia, da arqueologia, focando sempre no ser humano, em como ele veio a ser o que é.

Penso no jeito organizado, disciplinado, idealista de Freud.

Penso na sua origem judaica e no seu estilo de vida familiar.

Penso no estudante de medicina e no médico que, em princípio, não quis ser e acabou aceitando sugestão de Brücke, seu mestre (JONES, 1975, P.63).

Penso no encontro de Freud com a sua falta-a-ser (LACAN, [1972-1973] 1950), no Freud criador da psicanálise, descobridor do inconsciente, fundador da Sociedade Psicanalítica Internacional (IPA) e pai de uma obra colossal.

Penso no encontro de Freud com o seu mal-estar, com a sua defesa e o seu desejo de vencer.

Penso em como essa dinâmica – estruturada na falta, no mal-estar, na defesa e no desejo –, sempre esteve presente ao longo de toda a sua vida até o momento de sua morte.

E me pergunto: como condensar tantas ideias, pensamentos, tantos enlaces teóricos, tantas histórias? Lembro-me da frase célebre atribuída ao poeta Carlos Drummond de Andrade: “Escrever é a arte de cortar palavras”.1

Desde o início da minha releitura, percebi a importância de estudar o contexto da vida de Freud em 1930, avançando até 1934 – ano em que, ameaçados pelo nazismo, todos os analistas da Alemanha deixaram o país, a maioria foi para os Estados Unidos. Depois, empurrado pela falta em mim e pelo desejo, ir descendo até algumas cartas a Fliess (1895-1898), especialmente as citadas por Antônio Ribeiro (1994) em seu artigo A falta está fazendo falta.

Tudo isso foi feito em dois movimentos. No primeiro, relendo cuidadosamente o texto O mal-estar na civilização (Freud com 74 anos) e, paralelamente, pesquisando outros textos desde Além do principio do prazer ([1920] 1976) até A questão de uma Weltanschauung, ([1933] 1976, Freud com 77 anos). No segundo, lendo uma síntese histórica das duas grandes guerras mundiais e assistindo pelo canal Netflix alguns documentários sobre a ascensão e a queda do III Reich fundado e liderado por Adolf Hitler.

Ter pesquisado em Ernest Jones também me ajudou a situar o contexto vivido por Freud no que se refere tanto a sua produção científica quanto à descoberta do câncer no maxilar em 1923 (Freud com 67 anos) e sobre as 33 cirurgias realizadas, bem como o doloroso tratamento numa época em que os recursos não eram avançados como atualmente (JONES, 1975).

Com o texto O mal-estar na civilização em mãos, faço uma leitura longitudinal, expandida e uma leitura vertical, aprofundada, esmiuçada, sentindo-me devorado pelo texto. Se eu pensava que ia ‘comer o livro’, o livro é que me comeu, na letra, através da palavra. Literalmente. Texto robusto, denso, condensando o principal das descobertas freudianas desde Fliess, passando por 1892 até a formulação fundamental do inconsciente no livro A interpretação dos sonhos (1900, Freud com 44 anos) e seguindo em frente até a sua morte (Freud com 83 anos). Nunca parou de escrever e publicar.

Em O mal-estar na civilização, identificamos uma síntese extremamente bem construída de seu pensamento como um todo. Transmissão brilhante, ricamente articulada, coisa de gênio, embora tenha demonstrado o seu mal-estar ao longo de todo o texto e ao final o tenha considerado fraco, conforme Ernest Jones. É mais um encontro seu com o real, com o impossível, com a falta-a-ser.

Freud esteve sempre comprometido eticamente com as suas descobertas cientificas, querendo mais, sempre mais. Coincidência ou não, foi nesse ano 1930 que Freud foi indicado e ganhou o prêmio Nobel de Literatura, em Berlim.

Antônio Ribeiro (1994, p. 13) escreve:

Freud teria feito análise com Fliess, seu sujeito suposto saber na transferência. Os encontros de Freud com Fliess, o mobilizaram na via do desejo e da criação da psicanálise, do desvendamento de suas fantasias e da descoberta de si mesmo como um sujeito submetido à castração simbólica, a falta de completude humana, a se reconhecer como um ser-de-falta.

Toda a obra de Freud parece ser o efeito do seu encontro com a falta, com o seu desejo, com a escrita, com os restos dessa escrita e de novo com a falta, o desejo, a escrita e os novos restos e assim por diante.

Freud e a psicanálise parecem ser uma e mesma existência tal a identificação entre ambos: sujeito e objeto, desejo e falta, mundo interno e mundo externo, vida e morte, prazer e desprazer, bem-estar e mal-estar, felicidade e infelicidade, pulsão e defesa, bem e mal, anjo e demônio, tudo isso um mesmo estatuto no inconsciente de qualquer ser humano. Polaridades freudianas, pares opostos, assim como tantas outras que poderiam ser descritas numa fila longa. Estrutura da linguagem, linguagem da estrutura psíquica, divisão do sujeito em sua falta-a-ser.

Lendo, repassando leituras, pinçando as suas principais formulações, fico com a impressão de que Freud escreveu O mal-estar na civilização primeiro para os psicanalistas, depois para a sociedade europeia em geral, principalmente a austríaca e a alemã, dando nas entrelinhas um recado especial aos judeus.

Freud acompanhou os movimentos sociais, as crises políticas e econômicas desde a Primeira Grande Guerra, a derrota da Alemanha, a grande frustração de Adolf Hitler e seus colegas ex-combatentes, a fundação do partido nazista em 1923 e a ascensão do III Reich em 1933, avançando tiranicamente até o inicio propriamente dito da Segunda Guerra Mundial em 1939, tendo, anos antes, já iniciado o assassinato de judeus.

Esse foi o contexto social de Freud durante 25 anos. Os judeus sempre foram perseguidos, mas ele nunca tinha presenciado uma perseguição tão preconceituosa, tão planejada e encobridora, forjada, extremamente cruel, assassina (NEPOMUCENO, 2012).

Fazendo limpeza dos “rinocerontes” uma espécie de assepsia total para a verdadeira raça ariana alemã (NEPOMUCENO, 2012, p. 46, §5º).

Freud parece ter desejado – aos judeus e a todos os que quisessem lê-lo e ouvi-lo – iluminar-lhes o pensamento e a reflexão, mostrar o que acontece em seu mundo interno, no inconsciente, em sua mente, em sua estrutura psíquica, na relação de Id, Ego e Superego dentro de cada um, chamando a atenção para a pulsão de morte, a severidade de um supereu arcaico, as fantasias ilusórias, o Ideal do Eu encoberto pelo Eu Ideal (narcísico), o sentimento de culpa, a agressividade como efeito da culpa, a ilusão da religião e do amor ao próximo, porque essa estratégia altruísta não passaria de uma fachada para o narcisismo. Enfim, ele chama muito a atenção para a realidade da incompletude humana, para os diversos mecanismos de defesa face à impossibilidade da felicidade total, a ilusão religiosa como um consolo e aponta o juízo crítico e a ética como os únicos caminhos de soluções possíveis para os problemas humanos, além da sublimação das exigências pulsionais, não só pelos efeitos do tratamento analítico, mas também pelo prazer em praticar as artes, todas elas: literatura, poesia, dramaturgia, pintura, canto.

Lendo esse texto nas linhas e nas entrelinhas, uma impressão muito forte que temos é que Freud estava querendo transmitir algo que considerava muito importante. Como se quisesse dizer que a sociedade e cada indivíduo que dela faz parte necessitassem fazer uma leitura de si mesmos e dos outros, não só olhando para fora, mas principalmente enxergando-se a si mesmos e aos outros por dentro. Perceber, sem fugir da verdade do sujeito, o quanto um é semelhante ao outro.

Freud parece irritado com os preconceitos, com a ilusão de felicidade absoluta e de completude, o chamado “sentimento oceânico” (ROMAIN ROLLAND), fala dos princípios de prazer, de desprazer e de realidade. Que as pulsões são de dois tipos: sexualidade (pulsão de vida) e agressividade (pulsão de morte) e muitas vezes elas se revelam “amalgamadas” uma com a outra. As pulsões, ele as identifica no registro do Id.

Freud ([1930] 1974, p. 83) esclarece:

Quanto ao Ego, não há nada de que possamos estar mais certos do que do sentimento do nosso próprio Eu. Ser esta aparência enganadora, apesar de que ele seja continuado para dentro, sem qualquer delimitação nítida, por esta entidade mental inconsciente que designamos como Id, a qual o Ego serve como uma espécie de fachada.

O Id, o Ego, o Superego em Freud parecem ser uma boa indicação dos registros do Real, do Imaginário e do Simbólico em Lacan. É impressionante como, em vários momentos do texto O mal-estar na civilização, Freud faz referências à filogênese, à evolução das espécies, à pré-história humana, a história humana a partir da aquisição da linguagem, a origem da ideia de pai e do nascimento do Simbólico em Totem e Tabu, a estruturação do Superego e do sentimento de culpa. Fala da repressão orgânica, da proibição do incesto, da monogamia, do prazer sexual e do amor, da família, do asseio e da limpeza, do trabalho, das comunidades e da ética como importantes elementos no processo civilizatório. Ele diz que na mente humana o elemento primitivo se acha preservado, ao lado da versão transformada que dele surgiu. Faz uma analogia com a história da cidade eterna de Roma em suas diversas épocas.

Freud ([1930] 1974, p. 88) afirma:

Permita-me agora num voo da imaginação, supor que Roma não é uma habitação humana, mas uma entidade psíquica, com um passado semelhante longo e abundante, isto é, uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última.

No início do ano 2017, foi amplamente noticiado no mundo inteiro que paleontólogos descobriram no Canadá, numa rocha ferruginosa, fósseis de bactérias. Testes atuais sofisticados indicam entre 4,2 e 3,7 bilhões de anos atrás. Hipótese de início da vida no planeta Terra, na água. Vamos dar um salto para frente. Pesquisas recentes apontam que o ser humano descobriu o fogo e a sua utilização há aproximadamente 2 milhões de anos atrás (DAWKINS, 2004).

E Freud diz (1930, p .109): “[...] a civilização começou com a descoberta do fogo”.

Richard Dawkins (2004) explica:

Entre 200 mil e 100 mil anos atrás, houve a grande e última mutação genética verdadeiramente importante, mutação no gene Foxp2. Desde esta data, nenhuma alteração genética de grande porte aconteceu, embora num registro micro haja pequenas mutações genéticas constantemente. Esta grande mutação preparou o caminho para que, entre 100 e 50 mil anos atrás, pudesse surgir o homo sapiens arcaico, capaz de fazer muitas coisas e de se comunicar com seus semelhantes através de uma linguagem não verbal, gestual, mímica. Este período preparou caminho para um grande salto à frente, para que entre 40 mil e 30 mil anos atrás, surgisse o Homem de Cro-Magnon, isto é, o homo sapiens moderno ou homo sapiens sapiens, e viesse a se constituir num ser de linguagem. Este é o provável início da linguagem primitiva e da fala como tal. Seus restos fósseis foram achados na “caverna de Dardonha”, na França. Foi o salto para os artefatos, as pinturas rupestres das cavernas, pintura de animais, como o bisão, as escritas nas paredes das cavernas – traços, marcas, “letras” primitivas, rudimentares –, e objetos musicais feitos de ossos, objetos de barro, de pedra, coisas assim. A partir daí, tudo foi se desenvolvendo e este grande salto coincidiu com a aquisição (surgimento) da linguagem como a conhecemos hoje. (Minúscula síntese de A grande história da evolução humana. Richard Dawkins, Companhia das Letras, 2004). Guardadas as devidas proporções, é possível fazer uma analogia com uma criancinha atual que, entre 1,7 meses e 2,0 anos de idade, começa a falar, como se fosse de repente, do nada, como costumam dizer as suas mães.

Ao longo de todo o texto O mal-estar na civilização, Freud fala de pai, do Superego, da culpa e relacionar a agressividade sadomasoquista como proveniente do sentimento de culpa. Aponta o sentimento religioso como uma forma de restaurar o narcisismo primário ilimitado, o sentimento de desamparo infantil e a ilusão de completude e de felicidade eterna. Freud aponta que tudo isso junto é um pedido de ajuda e proteção ao Pai, para lidar com o estranho e ao mesmo tempo familiar no mundo externo e no mundo interno. Pai Deus, Deus pai, felicidade, proteção, salvação eterna, sem privação, sem frustração, sem falta do que quer que seja.

Freud comenta sobre o mandamento cristão, “amar ao próximo como a si mesmo”. Acha injusto esse mandamento e diz que cada um de nós deve amar o próximo assim como o próximo nos ama. Freud aponta para o compartilhamento do amor. A ética freudiana parece dizer: nem tanto ao narcisismo, nem tanto ao altruísmo, mas sim na medida ética do desejo de amar e de ser amado. É dando que se recebe, mas também é recebendo que se pode dar.

Freud indica como o processo civilizatório criou as neuroses. Pinço ao longo de todo o texto O mal-estar na civilização várias expressões de Freud, apontando para a ilusão no registro do imaginário, para a impossibilidade no registro do real, e para a castração – o buraco, a falta –, no registro da representação simbólica.

Freud planta os elementos estruturais, que Lacan vai saber ler, como nenhum outro soube de fato, muitos anos depois e construir a topologia da estrutura psíquica, a qual ele dá o nome de nó borromeano.

Freud ([1930] 1974, p. 105) explica:

O nosso sofrimento vem de três fontes. Primeiro, o poder superior da natureza. Segundo, a fragilidade do nosso próprio corpo. Terceiro, a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade. As duas primeiras nos forçam a reconhecê-las e submetermos a elas como inevitáveis, pois a experiência de milhares de anos nos convence disso. Quanto à terceira fonte de sofrimento, não a admitimos, não podemos perceber porque os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não representam proteção e benefício para cada um de nós. Nesse campo de prevenção do sofrimento, como fomos muito mal sucedidos, surge aqui em nós, por trás desse fato, uma parcela de natureza inconquistável e, desta vez, uma parcela de nossa própria constituição psíquica.

Desde os primórdios da humanidade, quando adquirimos a linguagem e começamos a falar, a realidade nos mostra privações, frustrações sentidas e sofridas, e a falta de domínio completo sobre a linguagem, o pensamento, o raciocínio e o entendimento. Esses são elementos importantes da estrutura da vida humana, na interface entre o mundo externo e o mundo interno. As privações apontam para as necessidades de alimento e sexo no registro do real. As frustrações apontam para a demanda de amor, prazer e felicidade, no registro do imaginário. A falta de completude e de perfeição aponta para a castração simbólica e o desejo no registro do simbólico. RSI - Real, Simbólico, Imaginário (LACAN, 1974-1975). A função do Real é escapar ao nosso controle e domínio, produzindo sofrimentos reais. A função do Imaginário é recobrir com fantasias, imaginação e crenças protetoras, a angústia e o mal-estar psíquico. A função do Simbólico é possibilitar que – através do pensamento, da fala e do entendimento – o ser humano possa reconhecer a si mesmo e aos outros como ser-de-falta – ou como falta-a-ser, ou como a falta-no-ser –, incompletos e, por isso mesmo, desejantes, desenvolvendo habilidades para elaborar perdas de todos os tipos e saber o que fazer com elas.

Para finalizar, eu gostaria de assinalar que em O mal-estar na civilização Freud desliza os cinco discursos da psicanálise – sabendo sem saber no seu inconsciente que os detectava ao longo de sua criação da psicanálise. Só faltava construir os seus matemas, tal como Lacan veio fazer muitos anos depois. Discurso do senhor, discurso da histeria, discurso universitário, discurso do capitalista, discurso psicanalítico. Na posição do amo-senhor-mestre, gostamos de mandar. Na posição da histeria, gostamos de questionar. Na posição universitária, gostamos de ensinar. Na posição psicanalítica, gostamos de escutar. Na posição do capitalista, gostamos de explorar o sujeito e fixá-lo no lugar de objeto-coisa-resto. Esses discursos giram de acordo com os vários contextos, e isso vale para qualquer sujeito, dia após dia. Contudo, considera-se que em cada sujeito um desses discursos tende a predominar sobre todos os outros.

Os seres humanos desejam e buscam, constantemente, poder, dinheiro e sucesso (FREUD, [1930] 1974, p. 81).

É do lugar de uma escuta qualificada, construída pelos efeitos da análise pessoal, e da formação teórica e clínica em psicanálise, que o analista, desde a posição de objeto a pode causar o desejo, fazer funcionar a transferência e operar os demais elementos constituintes do percurso da análise (processo analítico). As ideias de Freud continuam vivas, muito vivas, não só na psicanálise, mas também nas diversas culturas em nossa contemporaneidade. Certamente, a psicanálise é uma ciência humana borromeana.

E eu, o que sou? Um ser-de-falta em minha falta-a-ser, que causa em mim o desejo de dizer muito mais do que seria capaz de dizer.

Grande tolice: deixo restos, muitos restos. E assim, sou levado a dizer que a história se repete... se repete... isso que do encontro com o real, volta sempre ao mesmo lugar.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: mesquioves@gmail.com

Recebido em: 06/11/2017
Aprovado em: 15/01/2018

 

 

SOBRE O AUTOR

Messias Eustáquio Chaves
Psicólogo (PUC Minas).
Especializado em Psicologia Clínica – Conselho Regional de Psicologia, 4ª Região-MG, 2002.
Psicanalista.
Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Responsável pela transmissão do seminário Estruturas Clínicas no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, desde 1992.
Sócio do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
Sócio da International Federation of Psychoanaytical Societies (IFPS).

 

 

1 “Escrever é cortar.” (MARQUES REBELO [1907-1973], citado em Gente por Fernando Sabino. In: RÔNAI, Paulo. Dicionário universal Nova Fronteira de citações (1985). 3. ed., 6. impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. p. 310. ISBN 85-209-0930-2.

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