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versión impresa ISSN 0102-7395
Reverso v.27 n.52 Belo Horizonte sep. 2005
AUTORES CONVIDADOS
Um jogo de espelhamentos, a partir do Moisés de Michelangelo
Eliana Rodrigues Pereira MendesI
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
Endereço para correspondência
RESUMO
Fascinado pela monumental estátua de Moisés esculpida por Michelangelo para o túmulo do Papa Júlio II, Freud escreve um instigante artigo sobre ela. Antonio Franco Ribeiro da Silva, provocado pelo ensaio de Freud, produz outro artigo em que busca as razões do interesse de Freud pela escultura de Moisés. Este trabalho analisa o jogo de espelhamentos que houve entre todas essas figuras, a partir do que a obra de arte e sua interpretação lhes suscitaram.
Palavras-chave: Arte, Espelhamento, Interpretação, Identificação, Reconstrução.
ABSTRACT
Fascinated with the monumental statue of Moses made by Michelangelo for Pope Julius II’s tomb, Freud wrote an instigating article about it. Antonio Franco Ribeiro da Silva, by his time, provoked by Freud’s essay writes another issue in which he searches for the reasons of Freud’s interest on Moses’ sculpture. This article analysis the mirroring that took place among all those authors, from the point of view of the interpretation that this work of art has evoked in them all.
Keywords: Art, Mirroring, Interpretation, Identification, Reconstruction.
Antes de mais nada, gostaria de apresentar algumas notas sobre o autor de Moisés. Michelangelo (Escultor, Arquiteto, Poeta e Pintor – 1475-1564)
Michelangelo Buonarroti foi o maior artista do século XVI. Foi supremo como escultor, e como pintor e arquiteto, suas obras foram pelo menos do mesmo nível dos maiores criadores nesses campos. Além disso, escreveu também uma considerável obra poética de alta qualidade. Nasceu em 1475 em Caprese, no estado de Florença, onde seu pai era oficial do governo.
Quando jovem, foi aprendiz de Ghirlandaio1 e foi em seu estúdio onde, provavelmente, aprendeu a técnica de pintura afresco.
Depois disso foi trabalhar no estúdio de escultura patrocinado por Lorenzo de Médici, onde tomou contato não só com Lorenzo, o Magnífico, mas com seu círculo de brilhantes amigos. Nessa época, Michelangelo se considerava igual aos filósofos e escritores que cercavam Lorenzo e chegou mesmo a omitir o fato de que tinha tido um treinamento comum como artesão no atelier de Ghirlandaio. Antes de Michelangelo, tanto o pintor como o escultor eram tidos como um artesão um tanto inferior, nunca igual ao poeta, mas a própria vida de Michelangelo trouxe tal mudança para o status de artista que, quando ele envelheceu, o epíteto “divino” podia ser aplicado a ele sem chocar ninguém.
Sua primeira escultura foi um trabalho em mármore, “A luta dos lápitas e dos centauros”, feita quando Michelangelo tinha dezessete anos. Essa obra, mesmo que hoje a chamemos de um ensaio, já é extremamente segura e mostra-nos a luta de um jovem gênio em suas primeiras tentativas para dominar a pedra dura e tenaz, e expressar numa irrefreável mensagem artística sua vitalidade interior.
Fica evidente nesse relevo o envolvimento pessoal do artista em sua ação e reação à pedra inerte e obstinada que tem diante de si. Desde o princípio, seu desafio artístico consistia em penetrar e derrotar a matéria.
Quando criança, Michelangelo foi confiado a uma ama de leite, filha e mãe de marmoristas. Isso lhe proporcionou, certamente, uma grande familiaridade com a pedra, que, desde a infância, tinha de separar, cortar e talhar. Aprendeu tudo a respeito de veios secretos e juntas naturais, e de sua cor escondida. Costumava viajar freqüentemente a Carrara, onde estavam as melhores pedreiras de mármore da Itália, para escolher pessoalmente o mármore na vertente da montanha.
A extraordinária sensibilidade de Michelangelo à pedra fazia-o ver a estátua como se ela já estivesse contida nela: “Eu só retiro as sobras, a estátua já está lá”. A matéria (a pedra) e a forma (a criação que libertaria a estátua) eram como dois poderosos inimigos em luta; ou como a mãe e o filho – a mãe resistindo à separação, o filho lutando por sua própria independência.
Mas o primeiro grande trabalho seu foi a Pietá, que hoje está na Basílica de São Pedro, e foi executada durante sua primeira estada em Roma, entre 1496 e 1501. O absoluto domínio dessa composição logo tornou Michelangelo o principal escultor da época, quando ele tinha apenas vinte e cinco anos. Quando retornou a Florença, esculpiu várias outras obras importantes, entre as quais a Madonna de Bruges e o gigante de mármore David, completado em 1504. Essa estátua representa o ideal de Michelangelo, o nu masculino heróico.
Seu domínio da anatomia e o uso de poses difíceis e complicadas para expressar emoções temporárias ou fugazes seduziram muitos pintores de gerações posteriores a pensar que a pose retorcida já era, em si mesma, uma forma de arte.
A altíssima reputação de Michelangelo fez com que, em 1505, o Papa Júlio II o empregasse em Roma na grandiosa tumba que ele tinha decidido erigir para si ainda em vida.
Esse grande compromisso de Michelangelo foi ainda mais acentuado com a sua concepção de um projeto que teria quarenta figuras de tamanho natural. O “Monumento a Júlio II” se tornou, de fato, a tragédia da vida de Michelangelo. Os dois homens eram muito semelhantes no temperamento e logo se atritaram, mas após a morte de Júlio em 1513, Michelangelo esteve, constantemente, sob a pressão dos herdeiros para completar seu projeto, enquanto, por outro lado, cada papa sucessivo desejava empregá-lo em novas e grandiosas obras. A tumba, como existe agora, não foi completada senão em 1545 e apresenta apenas uma das figuras originalmente desenhadas por Michelangelo e, na verdade, executada por ele. Essa figura é o enorme Moisés, que pode ser considerado como simbolizando Júlio II. Outras figuras, por exemplo, Os Escravos, agora no Louvre, que foram originalmente projetadas para a tumba, foram abandonadas entre 1508 e 1513.
Júlio II afastou Michelangelo de seu trabalho na tumba para colocá-lo, em 1508, na decoração da abóbada da Capela Sistina, que é talvez a maior de suas obras. Michelangelo aceitou o trabalho com grande relutância e então ficou impaciente com os métodos tradicionais de trabalho e a habilidade dos assistentes que tinha empregado. Eventualmente, ele próprio pintava o teto da Capela sob condições muito difíceis, e constantemente modificando seus planos originais. A obra glorifica não apenas o corpo humano, mas tem profundas implicações teológicas e é geralmente tomada para expressar as idéias filosóficas do neoplatonismo. As várias partes do teto são sujeitas a diferentes sistemas de perspectiva, com os últimos painéis aparentemente abertos para o céu. Essa obra teve uma profunda influência no desenvolvimento da pintura de tetos do tipo ilusionista, praticada nos séculos XVI e XVII.
Quando o teto foi completado em 1512, Michelangelo foi considerado o artista supremo do período, e provavelmente o maior desde os tempos clássicos. Dessa data em diante, até sua morte em 1564, Michelangelo foi tratado com uma veneração devotada a poucos homens até e desde então.
No entanto, muitos de seus projetos deram em nada. A atitude contraditória de Michelangelo de amor e ódio à matéria (o mármore) pode ser evidenciada em muitas de suas obras inacabadas.
O São Mateus que se encontra na Galeria della Academia, em Florença, mostra essa ambivalência. A figura emerge da pedra como se a vida tivesse sido finalmente insuflada em alguém que, desde tempos imemoriais, ali estivesse preso. Às vezes a figura parece clara e definida, e outras vezes, absorvida no bloco de mármore. O bloco é berço e prisão para a obra do artista, bem como para a sua criação, ora alimentada, ora contrariada pelo material. Os quatros escravos que fariam a frente do túmulo de Júlio II, também inacabados pela morte de Michelangelo, são outro exemplo da luta do artista para arrancar uma forma à pedra. A arte de composição está na soberba sugestão de vida emergente, as figuras se libertando da matéria que ainda as retém e contra a qual se rebelam. Michelangelo se aproxima assim, no fim de sua vida, do estágio final, essencial para o desenvolvimento da arte moderna, que se resume em distinguir entre uma idéia e sua transposição para uma forma geralmente reconhecível. Os conflitos e as paixões interiores podiam encontrar maior expressão no não-dito do que no que era claramente explicitado.
Para o Papa Leão X, Michelangelo trabalhou em Florença, onde sua maior obra foi no túmulo dos Médicis e na Nova Sacristia da Igreja de São Lourenço, com as simbólicas figuras do Dia, da Noite, da Aurora e do Crepúsculo.
De 1536 a 1541 ele trabalhou no grande afresco “O Juízo Final”, que ocupa toda a parede do altar da Capela Sistina.
O espírito do “Juízo Final” é profundamente pessimista e totalmente diverso do teto. O estilo é também muito pesado e não tem a graça e a alegria do trabalho anterior, “A criação do mundo”. A angústia espiritual do “Juízo Final” continua nos afrescos que ele pintou na Capela Paulina, completada em 1550. Nesse trabalho, e sobretudo nos seus trabalhos a partir de 1547, como arquiteto encarregado de reconstruir a Basílica de São Pedro, pode-se ver a expressão melancólica, mas profundamente devota da Idade do Concílio de Trento. Suas últimas estátuas se concentram no tema da Pietà. Uma delas, que adornaria seu próprio túmulo, está agora na Catedral de Florença, mas mutilada em pedaços. Sua última Pietà, a Pietà Rondanini, quase abstrata, pode ser comparada ao último quarteto de Beethoven em sua complexidade e profundeza de sentimento. Foi provavelmente nessa escultura que ele estava trabalhando uma semana antes de sua morte, aos oitenta e nove anos.
Nessa escultura, mãe e filho estão ligados numa nova e revolucionária composição da Pietà, que interpreta o tema de um modo mais psicológico do que realista. O filho, que é a própria razão da existência de sua mãe, agora está sustentando a mãe, mesmo depois de morto; ou será a idosa e sofredora mãe que mantém de pé o filho, num derradeiro e desesperado esforço para conservá-lo vivo?
Michelangelo, tendo perdido a mãe aos seis anos de idade, reafirmou, assim, nessa peça, a inseparabilidade entre mãe e filho, mas também entre artista e criação. Aos oitenta e nove anos Michelangelo estava travando a luta antiga entre espírito e matéria, entre criação e expressão acabada.
Terá chegado a saber quem era o vencedor?
A imensa importância de Michelangelo para seus contemporâneos é atestada pelo fato de que seu estilo dominou a arte italiana por gerações e ele foi o primeiro artista moderno a ter duas biografias escritas durante sua vida. A primeira delas, escrita em 1550, está incluída na primeira edição de Vidas, escrita por Vasari, e foi reescrita com muitas alterações na segunda edição de 1568. Entre essas datas veio à luz o livro Vida, escrito por Codivi, aluno de Michelangelo, que é uma versão autorizada pelo próprio Michelangelo. Essas biografias precoces ajudam-nos a apreciar o deslumbramento com o qual seus contemporâneos o consideraram, e o encantamento trazido não só pela sua prodigiosa habilidade, mas também pela sua convicção de que o corpo humano não só é capaz de expressar todas as emoções, como ainda é o único tema real das artes visuais.
O Moisés de Michelangelo visto por Freud (1914)
Esse artigo “O Moisés de Michel-angelo”, no dizer de Ernest Jones, amigo e biógrafo de Freud, tem um especial interesse para quem quer se aprofundar na personalidade freudiana. O fato mesmo de que a escultura de Moisés o tenha comovido mais profundamente do que quaisquer outras obras de arte com as quais estava familiarizado, confere a esse ensaio sobre a obra um significado especial.
O interesse de Freud pela estátua de Michelangelo era antigo. Foi vê-la no quarto dia de sua primeira visita a Roma, em setembro de 1901, bem como em muitas outras ocasiões posteriores. Freud já estava planejando esse artigo em 1912, mas ele só foi escrito no outono de 1913. Mesmo assim, foi impresso anonimamente, como de autoria “de***”. O artigo apareceu em Imago e o disfarce não foi descoberto senão em 1924, dez anos depois de sua publicação.
Seus amigos Abraham, Ferenczi e Jones lhe disseram que seu estilo identificaria imediatamente o autor, mas Freud se mostrou inflexível e, diante da insistência de Ferenczi, irritado com ele. As razões que dava para explicar sua decisão não pareciam sólidas. “Para que desonrar Moisés, juntando meu nome a ele? É uma brincadeira, ainda que talvez não seja má”. E deu a Abraham três razões para não se identificar: 1. É só uma brincadeira; 2. Vergonha ante o caráter de “coisa de aficcionado” que tinha o ensaio; 3. Por último porque “a dúvida que tenho a respeito de minha conclusão é mais intensa que de costume; não teria sequer consentido em sua publicação se não fossem os editores” (Rank e Sachs).
O que fascinava Freud na estátua era precisamente isso: o enigma de por que ela o afetava tão profundamente. O que significava essa obra, o que o escultor estava realmente refletindo nela? Freud leu muito a respeito do tema e se sentiu mais intrigado ainda quando se deparou com um número enorme de interpretações e quando viu até que ponto elas diferiam entre si.
1. Na primeira parte do ensaio, são apresentadas várias descrições de diferentes críticos do Moisés de Michelangelo, um fragmento da gigantesca tumba que o artista deveria ter erigido para o poderoso Papa Júlio II. A estátua representa Moisés segurando as tábuas dos Dez Mandamentos. Moisés é representado sentado; o corpo está de frente, a cabeça ostenta os cornos míticos, que representam a luz radiante que veio ao rosto de Moisés após ver Deus. Ostenta também uma barba possante. Moisés olha para a esquerda, o pé direito se apóia no chão e a perna esquerda está levantada de modo tal que apenas os artelhos tocam o chão. A expressão facial de Moisés caracteriza-se por mostrar uma mistura de ira, sofrimento e desprezo. A maioria dos críticos descreve a estátua como a descida do Monte Sinai, onde Moisés recebeu de Deus as Tábuas da Lei, e é o momento em que ele percebeu que o povo se rejubilava com o Bezerro de Ouro. Para Freud, não se pode imaginar a figura de Moisés como prestes a se levantar abruptamente; ele está em sublime repouso, como a estátua proposta do papa e as outras figuras. Sem mostrar as emoções de ira, desprezo e sofrimento não seria possível retratar a natureza de um super-homem desta espécie. Michelangelo criou não uma figura histórica, mas um tipo de caráter encarnando uma força interior inesgotável, capaz de domar o mundo recalcitrante; e deu forma não apenas à narrativa bíblica de Moisés, mas às suas próprias experiências internas e às suas impressões tanto da individualidade do próprio Papa Júlio quanto também das fontes dos eternos conflitos de Savona-rola (monge italiano que pregava contra o pecado e a impiedade do povo e que acabou morto enforcado e queimado em praça pública, por ir contra a Igreja de Roma em alguns aspectos).
2. A parte II do ensaio fala sobre detalhes que passaram não apenas despercebidos, como nem sequer receberam uma descrição adequada dos outros críticos. E é aí que Freud vai se deter. São eles: a atitude da mão direita e a posição das duas Tábuas da Lei. O polegar está escondido e só o dedo indicador está realmente em contato com a barba. E está tão fortemente pressionado contra a massa de cabelo que sobram mechas para cima e para baixo. Para começar, Freud presume que a mão direita estava afastada da barba e que se projetou então para a esquerda, num momento de grande tensão emocional, agarrando a barba, e que finalmente voltou para trás trazendo parte da barba com ela. Há algumas dificuldades envolvidas nessa interpretação, já que a mão direita é a responsável pelas tábuas, que estão viradas para baixo. As tábuas estão de cabeça para baixo, praticamente equilibradas sobre uma quina. A borda superior é reta, a inferior tem uma protuberância, uma espécie de chifre na parte frontal, e as tábuas tocam o assento de pedra precisamente com essa protuberância. Foi para impedir que as tábuas caíssem no chão que a mão direita se encolheu, soltou a barba, parte da qual veio junto sem querer, encontrou a parte superior das tábuas a tempo, segurou-as pelo canto de trás, que depois virou para cima. Dessa maneira, o aspecto especialmente forçado do conjunto barba, mão e tábuas inclinadas, pode ser atribuído àquele movimento apaixonado da mão e às suas conseqüências naturais.
3. Nas partes III e IV, Freud continua dizendo que Moisés em seu primeiro transporte de fúria quis agir, levantar-se, se vingar e esquecer as tábuas, mas dominou a tentação e permaneceu sentado e quieto, com sua ira gelada e seu sofrimento mesclado de desprezo. Também não são jogadas fora as tábuas para que se quebrem nas pedras, pois foi especialmente por causa delas que controlou sua raiva; foi para preservá-las que conteve sua paixão. À medida que nossos olhos descem pela estátua vemos três estados emocionais distintos. As linhas da face refletem os sentimentos que predominaram; a seção média mostra os traços do movimento reprimido e o pé permanece ainda na atitude da ação projetada. O Moisés da lenda e da tradição tinha um temperamento impetuoso e era sujeito a crises de paixão. Porém Michelangelo colocou um Moisés diferente na tumba do papa, um Moisés superior ao histórico e tradicional, porque conseguiu dominar sua ira, na visão de Freud, em razão de uma causa à qual se havia consagrado.
O próprio Freud fica feliz ao ver uma outra escultura cuja reprodução foi levada por Ernest Jones. Tratava-se de uma pequena escultura de Moisés, feita por Nicolás de Verdun, no século XII. O detalhe característico dela era que representava Moisés quanto ao gesto de segurar a barba, exatamente na postura que Freud supôs que havia precedido aquela em que Michelangelo o representava em sua famosa obra. Freud considerou que isto confirmava sua interpretação da dita obra e que representava “a calma depois da tempestade”. Mas essa confirmação só foi acrescentada num pós-escrito ao artigo, feito em 1927.
Os biógrafos de Freud, Ernest Jones e Peter Gay, têm suas interpretações para esse interesse desmesurado de Freud pela a estátua de Moisés.
Ernest Jones, ele mesmo personagem importante nas buscas de Freud sobre o sentido de sua fascinação por essa obra específica de Michelangelo, fala: “O inverno de 1913-1914, seguindo-se ao infeliz congresso de Munique, foi a pior época no conflito com Jung. O Moisés foi escrito no mesmo mês, assim como os longos ensaios em que Freud apresentava a seriedade das divergências entre suas idéias e as de Jung (“Narcisismo” e “A história do movimento psicanalítico”), e não há dúvidas de que estava se sentindo, na época, amargamente desapontado com a defecção de Jung. Isso lhe custou uma luta interna para controlar suas emoções de modo firme o suficiente a lhe permitir dizer calmamente o que sentia ter a dizer. Não se pode evitar a conclusão óbvia de que nessa época e provavelmente antes, Freud tenha se identificado com Moisés e estava lutando para imitar a vitória sobre as paixões que Michelangelo retratava em sua magnífica obra” (Jones, II, p.385). A turba de apóstatas era para ele os numerosos ex-partidários que o haviam abandonado renegando sua obra, nos últimos quatro anos: Adler e seus amigos, Stekel e agora os suíços com Jung. Freud escreve a Ferenczi que, naquele momento, “a situação em Viena faz com que meu ânimo seja mais semelhante ao do Moisés histórico do que ao outro, o de Michelangelo”. Mas acima de todas as emoções estava a suprema necessidade de salvar, de algum modo, a obra de sua vida, a psicanálise, exatamente como Moisés pôs sua força de vontade para salvar as preciosas tábuas da Lei.
Jones diz mesmo que todas as dúvidas de Freud sobre a exatidão de sua interpretação do Moisés de Michelangelo se deviam em parte à insegurança a respeito de sua própria certeza de poder impor-se a si mesmo a calma e a temperança que o Moisés do artista se impôs.
Vinte anos mais tarde, quando da tradução do artigo para o italiano, Freud escreveu ao tradutor: “O que sinto por esse trabalho se parece muito ao sentimento que inspira um filho natural. Todos os dias, durante três semanas que foram de solidão, em setembro de 1913, parava na igreja (San Pietro in Vincoli) em frente da estátua, a estudava, a media, fazia croquis, até que captei seu sentido, que só de forma anônima me aventurei a expressar. Só muitos anos mais tarde reconheci essa criatura não-analítica”. (Carta a Edoardo Weiss, em abril de 1933).
O Moisés de Michelangelo visto por Freud, na visão agora de Antonio Franco Ribeiro da Silva
Nosso querido mestre e amigo Antonio Ribeiro, membro fundador do CPMG, escreveu um artigo sobre esse ensaio de Freud, no final dos anos 80, o que se deduz do fato de ter sido apresentado numa das jornadas nossas e ter sido publicado na Reverso n. 30 de 1990. O título de seu artigo: “Moisés: antes da palavra, um acento sinistro”. Há dez anos Antonio nos deixou, mas sua palavra permanece. Se a palavra é a morte da coisa, não deixa de ser também sua sobrevivência. A escrita é o esforço de registrar o pensamento fugidio e transformá-lo em memória. Temos aqui, então, como que encantadas suas palavras ben(m)ditas, a nos iluminar o caminho no exercício da psicanálise e o nosso cotidiano de seres humanos.
Antonio justifica seu interesse por esse ensaio freudiano dizendo que todos os caminhos levam à clínica e que ele optou por trilhar os caminhos da reconstrução psicanalítica, que é o que vai fazer tendo como modelo as reconstruções de Freud. Diz que escolhe esse artigo sobre Moisés porque, mesmo sendo pouco citado, “é rico em motivações inconscientes, está associado à evolução do pensamento psicanalítico e à personalidade do próprio Freud”.
Antonio vai caminhando pela descoberta de Freud da estátua de Moisés e seu grande interesse por ela e pelas obras de arte em geral. Salienta duas passagens do texto freudiano: “é necessário descobrir o significado e o conteúdo do que se acha representado numa obra; devo, em outras palavras, ser capaz de interpretá-la. É possível, portanto, que uma obra de arte desse tipo necessite de interpretação e que somente depois de tê-la interpretado poderia vir a saber porque fui tão fortemente afetado.” Descrente de várias interpretações vistas em diferentes autores, Freud se entusiasma com as palavras de um dos críticos que considera os detalhes tão importantes ou mais ainda do que o todo para a interpretação de uma obra (Dr. Morelli, médico italiano). Freud diz: “parece-me que seu método de investigação tem estreita relação com a técnica da psicanálise que também está acostumada a adivinhar coisas secretas e ocultas a partir de aspectos menosprezados e inobservados do monte de lixo, por assim dizer, de nossas observações.”
Antonio comenta então a interpretação diferente dada por Freud, de maneira minuciosa, e ao falar da carta que Freud escreveu a Edoardo Weiss sobre a dificuldade de legitimar seu filho não-analítico, diz que o artigo freudiano e a obra de Michelangelo são confundidos e ambos considerados filhos ilegítimos, o que revela o envolvimento emocional de Freud. Antonio fala que a decifração da imagem é um “caso de amor” e se reporta ao “decifra-me ou te devoro” da Esfinge diante de Édipo. Depois cita algo mais esclarecedor sobre a forma de ser de Freud, quando este revela, numa carta a Fliess de 1895, seu modo de enfrentar enigmas: “A principal razão, porém, é esta: um homem como eu não pode viver sem um cavalo de batalha, sem uma paixão devoradora, sem – nas palavras de Schiller – um tirano. Encontrei um. A serviço dele não conheço limites. Trata-se da psicologia”. Antonio diz que essa psicologia a que Freud se refere é a sua própria análise e, tal como diante da estátua de Moisés, ele se sente seduzido e quer obstinadamente traduzir seu próprio enigma. Quando já estava prestes a romper com Fliess, manda-lhe outra carta, em fevereiro de 1900: “Pois a verdade é que não sou, de modo algum, um homem de ciência, nem um observador, nem um experimentador, nem um pensador. Sou, por temperamento, nada além de um conquistador – um aventureiro, se você quiser que eu traduza – com toda a curiosidade, ousadia e tenacidade que são características de um homem dessa espécie. As pessoas desse tipo costumeiramente só são estimadas quando alcançam êxito, descobrem realmente alguma coisa; caso contrário, são descartadas à beira da estrada. E isto não é totalmente injusto.”
O recado da ruptura está dado. Mas há também as características pessoais de Freud que poderiam ser igualmente ditas tanto para Moisés quanto para Michelangelo. Todos têm “alguma coisa em comum”.
O fato de Michelangelo haver alterado a figura de Moisés a uma figura que se impõe um refreamento ante a ira para decorar a tumba de Júlio II merece de Antonio a seguinte citação do texto freudiano: “Julius II tinha afinidades com Michelangelo no que se referia a haver tentado realizar objetivos grandes e formidáveis, especialmente projetos em grande escala. Era um homem de ação e tinha um propósito definido, o de unir a Itália sob a supremacia papal. Desejou realizar sozinho o que deveria levar ainda vários séculos para ser realizado e, mesmo então, somente através da conjunção de forças estranhas; trabalhou só, com impaciência, no curto período de soberania que lhe foi concedido, e utilizou meios violentos. Poderia apreciar Michelangelo como um homem de sua própria espécie, mas muitas vezes o fez sofrer com sua ira repentina e sua falta de consideração pelos outros. O artista sentia em si próprio a mesma violenta força de vontade e, como pensador mais introspectivo, pode ter feito uma premonição do fracasso a que ambos se achavam condenados. Assim, esculpiu seu Moisés da tumba do Papa, não sem uma censura ao pontífice morto, mas também como uma advertência a si próprio, elevando-se, pois, através da auto-crítica, a um nível superior à sua própria natureza.”
Antonio relembra que o próprio Freud teve um Júlio em sua vida, que foi o irmão que morreu na primeira infância e de quem Freud disse ter tido fantasias de morte.
Tanto Michelangelo quanto Freud tiveram relações complicadas com outros homens. As transferências de Freud são evidentes: com Brucke (um pai totêmico, cujo olhar lembrava o de Moisés e que chegou a dar o nome a um dos seus filhos, Ernest); com Breuer (um pai inatingível, homenageado por Freud com o nome de Matilde, esposa de Breuer, colocado na sua primogênita); com Fliess, um pai “assentado” no suposto-saber, ao realizar sua análise com ele; e por fim com Jung, um irmão menor e possível herdeiro. Antonio revela também que o Moisés de Michelangelo é como um “derivado múltiplas - vezes - distorcido da realização pulsional inconsciente”, uma peça de ambigüidade pulsional, pois é a representação tanto da pulsão de vida na imagem de mármore perpetuada através dos tempos, quanto da pulsão de morte, pois é guardiã do túmulo de Júlio II, e evoca a ausência, pela morte, de Moisés, Michelangelo, Freud e, agora acrescento eu, Eliana, do próprio Antonio. Sentado e imóvel, continua Antonio, “Moisés não dá a Freud a possibilidade de também ele se levantar e ir buscar em outro lugar um outro suposto-saber. Sentado e imóvel, Moisés obrigou Freud a se ver diante de si mesmo e diante de sua própria falta.”
Antônio diz que desde que acreditou ter decifrado o enigma de Moisés, Freud deixou de ter amizades tumultuadas e conflituosas com outras figuras masculinas. Deixou de ir buscar em outro lugar um outro-suposto-saber.
Quanto à importância dada à barba, Antonio diz que ela remete ao sonho do tio de barba amarela. E é nesse sonho que Freud trata das suas relações com dois amigos, da questão da condensação, do seu tio Joseph com sua história triste, das duas profecias de que ele, Freud, seria um grande homem e, assim, do problema da superação do pai. (Interpretação dos Sonhos, v.IV, cap.IV, A Deformação dos Sonhos).
Antonio termina o artigo com as seguintes perguntas: “E se Moisés, deixando o assento, se colocasse de pé, o acento sinistro permaneceria em Freud? Realmente, e se Moisés se levantasse, para onde Freud teria de ir?”
Chegou então minha vez de relembrar que nesse jogo de espelhamentos há também a forte identificação de Antonio com Freud, Michelangelo, Moisés.
Nos anos finais da década de 80, o CPMG passa por uma época tumultuada em que há um pedido de reformulação aos didatas do tipo de sociedade que tínhamos então. É uma espécie de tomada de consciência da instituição para participar mais no próprio destino e fazer um Círculo mais igualitário e interativo. Os didatas não aceitam participar dessa reestruturação e se retiram. Alguns vão formar outros grupos, perpetuando o tipo de funcionamento estabelecido no CPMG e que nessa hora foi rompido. O único a permanecer, dentre os sete didatas, foi exatamente Antonio Ribeiro, que a partir de então deixou sua estrela brilhar e tornou-se cada vez mais evidente como professor e guia na psicanálise, a paixão também de sua vida.
Não teria levado ele em conta, para si mesmo, as próprias perguntas que fez em relação a Freud, diante da estátua do Moisés de Michelangelo?
Bibliografia
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7. SILVA, Antonio Franco Ribeiro da. Moisés, antes da palavra um acento sinistro. Revista Reverso, n.30, dez.1990. Publicação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1990. [ Links ]
8. FREUD, Sigmund. A interpretação de sonhos. v.IV, cap. IV: A deformação dos sonhos. Obras Completas de Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1974. [ Links ]
Endereço para correspondência
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Belo Horizonte - MG - Tel.: (31)3337-1583
E-mail: tarcisiomendes@uol.com.br
Convite efetivado em abril de 2005
I Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.
1 Ghirlandaio – Domenico Bigordi, nascido em Florença em 1449 e morto em 1494. Esse apelido, Ghirlandaio, veio do fato de que seu pai Tommaso era um ourives e costumava fazer em ouro e prata as guirlandas que as moças usavam em suas cabeças.
Homenagem a Antonio Franco Ribeiro da Silva, membro fundador do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG, na passagem do décimo aniversário de sua morte, em 1995.