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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso v.28 n.53 Belo Horizonte sep. 2006

 

HOMENAGEM AOS 150 ANOS DO NASCIMENTO DE SIGMUND FREUD

 

A análise leiga e a ética da psicanálise

 

Lay-analysis and technique of psychoanalysis

 

 

Ana Cristina Teixeira da Costa SallesI; Maria Lúcia Salvo CoimbraI

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho analisa a atualidade das questões em torno da "análise leiga". Conclui que a análise é leiga porque obedece à lei da estrutura do inconsciente e da castração. Portanto, formação e transmissão psicanalíticas devem ser sustentadas por este saber e por esta verdade.

Palavras-chave: Análise leiga, Transmissão, Humor, Discurso psicanalítico, Ética da psicanálise


ABSTRACT

In this text the authors analyse the actuality of the questions about"lay-analysis". They conclude that the analysis is lay because it obeys the law of the structure of the unconscious and of castration. Therefore, psychoanalytical formation and transmission must be sustained by this knowledge and by this truth.

Keywords: Lay-analysis, Transmission, Humor, Psychoanalytical discourse, Ethics of psychoanalysis


 

 

Ensino, formação e transmissão são temas que se articulam ao problema da regulamentação da psicanálise, discutidos desde 2000/2001, tanto na "Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras" – que congrega 67 instituições – quanto no "Movimento Mineiro de Psicanálise" – que reúne todas as instituições/escolas em Belo Horizonte.

Os projetos de regulamentação da psicanálise, para transformá-la em profissão, com estatuto legal, vieram de pessoas ou grupos que desconhecem a nossa formação, o estilo de nossa transmissão e prática. Nenhum deles foi aprovado pelo Congresso e muito menos pela comunidade psicanalítica, que tem se posicionado, publicamente, contra qualquer tipo de regulamentação ou mesmo regulação da psicanálise. Porém tais propostas estimularam importantes reflexões e esforços para explicitar o contorno do campo psicanalítico.

A qualificação para o ofício de psicanalista se ajustaria aos modelos e certificados propostos pela Universidade ou por órgãos reguladores do Estado?

Cada grupo psicanalítico reinventa a psicanálise, conquistando a herança freudiana. Contudo, certas concessões à demanda social não seriam extravios? Como sustentar a ética da psicanálise em nossa prática, inclusive a institucional? Por que afirmamos em nossa carta de princípios que a formação é permanente?

Essas questões afetam qualquer psicanalista. O texto de Freud "A questão da análise leiga" pode ser balizador para trabalhar tais indagações. Em torno de 1926, os analistas se posicionaram em campos opostos – o Grupo Europeu de um lado, o Grupo Americano do outro – em resposta à questão: quem está qualificado para a prática psicanalítica?

Antes como agora corre-se o risco de degradação e usurpação da prática psicanalítica, seja por "leigos", que se auto-intitulam analistas sem a devida formação, seja pelos próprios psicanalistas - alguns se precipitam e tendem para a regulamentação segundo a lei do Estado, ou para a segurança da Universidade.

Desde a época de Freud a resistência, provocada pelo próprio saber psicanalítico, se alimenta em críticas contundentes, em tentativas de amansar a psicanálise ou mesmo silenciá-la. Essa resistência ao discurso e do discurso psicanalítico nos revela que ele mantém sua singularidade em relação aos outros. Como efeito, a posição do psicanalista é muitas vezes marginal, subversiva e quem a ocupa está afetado por um certo saber. Qual? Supomos que há um saber e um sujeito do inconsciente. Saber que pode surgir da articulação significante e o próprio sujeito é seu efeito. Diferente do conhecimento ou desejo de erudição, de acumulação de saber pelo saber, que evitam as conseqüências do ato.

Freud sempre se preocupou com o destino da psicanálise depois da sua morte, pois pressentia que o futuro do que havia descoberto não estava garantido. Desde o começo soube avaliar a violência das oposições que estava destinado a provocar devido ao caráter chocante, subversivo e inovador da psicanálise.

Quando em 1909 viajou aos Estados Unidos para uma série de conferências na Universidade de Clark em Worcerter, Massachusetts, ele tinha consciência do mal-estar que provocaria. Com ironia comentava com seus companheiros de viagem: "Eles não sabem que nós estamos levando a peste"1.

Em virtude dessas características a psicanálise sofreu desde os seus primórdios várias tentativas de desmoralização, críticas, oposições ou desvirtuações do seu corpo teórico e da sua prática clínica. Como disse Octave Mannoni, "... ainda hoje é necessário que a obra de Freud seja defendida contra as potências recalcadoras que sempre tendem a encobri-la e a enterrá-la"2.

A questão sobre o controle da prática analítica é antiga. Rizzi nos relata3 que em 1925 a psicanálise chega aos tribunais por causa de um processo contra o psicanalista Theodor Reik, membro da Sociedade Psicanalítica de Viena, acusado de "exercício abusivo da profissão médica" e de "charlatanismo". Freud intervém na questão junto a um juiz para explicar que um psicanalista não tem necessariamente que ser médico.

O mal-entendido sobre a prática analítica (considerada como atividade médica) torna-se uma questão jurídica. Um grande debate a respeito do assunto surge entre os psicanalistas com um tom que nem sempre agrada a Freud. Temendo sobre o destino da psicanálise ele escreve a Paul Federn: "Não peço que os membros adotem meus pontos de vista, mas vou sustentá-los em particular, em público e nos tribunais"4, e acrescenta: "Mais dia, menos dia será necessário travar essa batalha pela análise leiga. Melhor agora que mais tarde. Enquanto viver, tentarei impedir que a psicanálise seja engolida pela medicina"5.

Em 1926 Freud resolve precisar mais a questão e escreve o texto "A questão da análise leiga". Sua intenção é mostrar a necessidade de uma qualificação específica para se tornar psicanalista, seja o candidato médico ou não. Neste texto ele expõe seus pontos de vista acerca da transmissão da psicanálise, sua prática clínica, sua técnica e o desenvolvimento do tratamento.

Ressalta a importância da formação do psicanalista, que difere radicalmente da formação médica, e sustenta que a condição essencial para exercer a psicanálise é a análise pessoal. Sem essa experiência ninguém pode se tornar psicanalista. A formação do psicanalista se constitui pelo tripé da análise pessoal, estudo teórico dos textos e supervisão clínica. Esse tripé é adotado por todas as sociedades psicanalíticas encarregadas da transmissão da psicanálise.

Para Rizzi, a questão da análise leiga não se limita apenas à contraposição entre médicos e não médicos: "Se é verdade que para Freud tratava-se de tomar posição a respeito de uma situação contingente, efetivamente o aspecto médico ou não da psicanálise não é de fato a questão essencial. A opção de Freud pelo termo ‘leigo' – atributo antes de tudo ético, mais que ideológico ou profissional – indica uma peculiaridade intelectual e não coincide com a definição de uma categoria profissional. Definitivamente, a palavra ‘leigo' não é usada por Freud como contrário ou negação em relação a algo que não é leigo. A acepção de laicidade que ele propõe delineia-se no sentido de um estatuto que diz respeito coextensivamente à liberdade (paradoxal mas absoluta) com que funcionam as lógicas do inconsciente"6.

O posfácio da análise leiga onde Freud reafirma de maneira incisiva suas teses anteriores deveria ter sido sua comunicação oficial no X Congresso de Innsbruck realizado em setembro de 1927. Quando todos esperavam uma comunicação esclarecedora sobre a questão, Freud surpreendentemente apresenta um texto sobre o humor. Na época poucos psicanalistas perceberam que sua comunicação poderia ser lida como uma interpretação à polêmica sobre a análise leiga. Qual a pontuação proposta por Freud? Que relação existiria entre a polêmica da análise leiga e o humor?

No texto sobre o humor Freud nos fala que "o núcleo do comportamento humorístico consiste no fato de que a pessoa do humorista deslocou o acento psíquico do seu Eu, transferindo-o para o seu Supereu"7. O humor tem algo de liberador, afirma Freud, mas também algo de "grandeza e elevação", que falta ao cômico e ao chiste. "Essa grandeza reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do eu. O eu se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter prazer. Esse último aspecto constitui um elemento inteiramente essencial do humor"8.

"O humor não é resignado, mas rebelde", diz Freud, e tem uma dignidade que falta aos chistes. Diante dos fracassos (geralmente narcísicos do eu) o humor é o oposto da amargura, do ressentimento. Tem uma marca autoral pois implica o sujeito em seus atos, em sua infelicidade, mas ao mesmo tempo mostra a capacidade do eu de reagir, inovar e enfrentar a realidade. Essa capacidade do eu de triunfar sobre as condições adversas e escapar do sofrimento é devida a uma certa disposição benigna do supereu. Quem ri das dificuldades do eu é o supereu que aqui mostra sua face benévola resultante da simbolização da castração. Diante da angústia de castração o eu ri de si próprio. O trágico e o cômico da vida se misturam.

O interessante nisto tudo é que a apresentação desse texto surge no momento em que os psicanalistas debatiam uma questão jurídica sobre a existência ou não de leis para regulamentar e restringir a prática da psicanálise. Surpreendentemente, ao invés de se posicionar sobre uma norma jurídica adequada, Freud propõe novas considerações sobre o Supereu (instância da lei).

Diz Rizzi que a proposição de Freud nos recorda que "ninguém, seja médico ou não, pode escapar da função do supereu, de uma instância que provém do inconsciente. Há uma justiça e uma satisfação que se referem rigorosamente a uma lei psíquica, o supereu. Não é indiferente que o estatuto leigo estabelecido por Freud para a psicanálise e para o psicanalista tenha como ponto de partida não as considerações ideológicas ou de conveniência – social, institucional profissional – mas uma elaboração que explora as implicações do direito, da justiça e da lei na vida psíquica. A laicidade da psicanálise não se refere a uma possível escolha, uma adjetivação, uma opção: a psicanálise é leiga ou não é psicanálise. É a própria noção de inconsciente que exige tal conclusão". Em Innsbruck "Freud, emblematicamente, entrega a sorte da psicanálise ao trabalho e à inteligência do humor"9 (grifo nosso).

Freud nos fala sobre a angústia de castração, aponta para o humor como economia do gozo, e sinaliza a ética da cura. A descoberta freudiana do saber inconsciente carrega a dimensão do impossível de saber e dizer (nos conceitos de recalque originário; da repetição em ato; da resistência – do Eu, Isso e Supereu; nas noções de fixação, inércia, adesividade da libido). Não se trata de recusar esse impossível – muito menos preenchê-lo com significações – e sim de fazê-lo trabalhar: o que distingue o discurso psicanalítico de qualquer outro discurso e o coloca no campo da ética, implicado nas questões sobre saber e verdade, responsabilidade e culpa, desejo e gozo. Ética do bem dizer pois o desejo precisa ser articulado ao real da satisfação pulsional, para cada analisando.

A teoria psicanalítica ancora-se em uma prática na qual não temos a função nem de julgar nem de decidir o que é verdadeiro ou falso na fala de nossos analisandos. Esse saber chamado inconsciente é um certo saber fundado na impossibilidade.

O inconsciente dá a garantia de verdade para a psicanálise. Daí seu paradoxo pois a verdade está articulada em um lugar no qual o sujeito não sabe o que pensa e muitas vezes também não deseja o que quer. Por estrutura a verdade não se diz toda (é uma conseqüência do limite imposto pelo recalque primário): é meio-dizer ora balbuciada ora apenas um lamento. Tocamos uma verdade parcial atravessada pela mentira. Como nos ensina Freud, "com a isca de falsidade pegamos a carpa da verdade"10.

 

Bibliografia

FREUD, S. A questão da análise leiga, p.205-293. ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.XX, 1976.         [ Links ]

FREUD, S. O humor, p.189-194. ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.XXI, 1974.        [ Links ]

MANNONI, Octave. O mistério da culpabilidade, p.127-131. In: Freud e a psicanálise. Rio de Janeiro: Rio Sociedade Cultural, 1976.        [ Links ]

MANNONI, Octave. O futuro de uma desilusão, p.133-152. In: Freud e a psicanálise. Rio de Janeiro: Rio Sociedade Cultural, 1976.        [ Links ]

Rizzi, Giancarlo. Innsbruck, 1927. Leigo é o inconsciente, p.190-197. In: As cidades de Freud: itinerários, emblemas e horizonte de um viajante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.        [ Links ]

JORGE, Marco Antonio Coutinho e FERREIRA, Nadiá Paulo. Da anestesia ao amor: da medicina à psicanálise, p.14-22. In: Freud: criador da psicanálise. Coleção Passo a Passo – 14. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.        [ Links ]

JORGE, Marco Antonio Coutinho e FERREIRA, Nadiá Paulo. A peste e o sexual, p.26-32. In: Freud: criador da psicanálise. Coleção Passo a Passo – 14 – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.        [ Links ]

KEHL, Maria Rita. Humor, poesia e erotismo, p.171-192. In: Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ana Cristina Teixeira da Costa Salles

Rua Piauí, 778/503
30150-320 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31) 3273-4351
E-mail: anacristinasalles@uai.com.br

Maria Lúcia Salvo Coimbra
Rua Levindo Lopes, 333/505 - Funcionários

30140-911 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31) 3281-0715

Recebido em 30/05/2006
Aprovado em 03/07/2007

 

 

IPsicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.
1 JORGE, Marco Antonio Coutinho e FERREIRA, Nadiá Paulo. A peste e o sexual. In: Freud: criador da psicanálise. Coleção Passo a Passo – 14. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.28.
2 MANNONI, Octave. O mistério da culpabilidade. In: Freud e a psicanálise. Rio de Janeiro: Rio Sociedade Cultural, 1976, p.131.
3 RIZZI, Giancarlo. Innsbruck, 1927. Leigo é o inconsciente. In: As cidades de Freud: itinerários, emblemas e horizonte de um viajante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.191.
4 RIZZI, Giancarlo. Innsbruck, 1927. Leigo é o inconsciente. In: As cidades de Freud: itinerários, emblemas e horizonte de um viajante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.191.
5 RIZZI, Giancarlo. Innsbruck, 1927. Leigo é o inconsciente. In: As cidades de Freud: itinerários, emblemas e horizonte de um viajante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.191.
6 RIZZI, Giancarlo. Innsbruck, 1927. Leigo é o inconsciente. In: As cidades de Freud: itinerários, emblemas e horizonte de um viajante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.192.
7 FREUD, S. O humor. ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.XXI, 1974, p.192.
8 FREUD, S. O humor. ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.XXI, 1974, p.190.
9 GIANCARLO, Rizzi. Innsbruck, 1927 – Leigo é o inconsciente. In: As cidades de Freud: itinerários, emblemas e horizonte de um viajante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.196.
10 Frase de Hamlet, Shakespeare, citada por Freud em "Construções em análise".

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