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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso v.30 n.55 Belo Horizonte jun. 2008

 

O FEMININO

 

Os efeitos da devastação na relação mãe-filha em um caso de risco de autismo1

 

The devastating effects of a mother-daughter relationship in a high risk case of autism

 

 

Isabela Santoro Campanário*

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
Formações Clínicas do Campo Lacaniano de Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora traz um caso de atendimento de uma mãe e de sua filha com risco de autismo que não vem respondendo ao tratamento, visando articular a devastação na relação mãe-filha como um dos impasses para a melhora da paciente.

Palavras-chave:Devastação, Risco de autismo, Relação precoce mãe-filha.


ABSTRACT

The author presents a case study in which the risks of autism run high. She treats both mother and daughter and attributes the lack of response to treatment to the intense level of devastation present in the mother-daughter relationship.

Keywords: Devastation, Risk of autism, Precocious mother-daughter relationship.


 

 

Continuamos a utilizar, como principal referência teórica em nosso trabalho, as obras da psicanalista Marie-Christine Laznik (1991, 1997, 2004) – desenvolvidas a partir do corpo teórico de Jacques Lacan – que sustenta uma intervenção psicanalítica precoce em bebês com sinais de autismo. Sua hipótese é de que é possível uma evolução clínica muito mais favorável para os casos de risco de autismo desde que atuemos logo nos primeiros meses de vida com a mãe e o bebê. A autora já tem três casos publicados em seu livro Rumo à palavra. Três crianças autistas em psicanálise (1997).

Laznik atualmente coordena uma pesquisa multicêntrica sobre o tema da intervenção precoce em bebês com risco de autismo na França e na Itália, que deverá estudar cerca de 25.000 casos. Falamos aqui em risco de autismo porque alguma intervenção que possibilite uma adaptação dos pais à especificidade da hipersensibilidade e do fechamento autístico de seu bebê ainda pode acontecer, pois contamos mesmo assim com uma certa permeabilidade da estrutura a novas inscrições.

Com cerca de dois mil bebês já estudados, analisando vídeos caseiros dos primeiros meses de vida, Laznik escreve, nos comentários à minha pesquisa de mestrado – defendida em fevereiro de 2006 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG –, que considera haver um fechamento primário precoce da criança, por uma hipersensibilidade ao Outro a ser esclarecida e que, secundariamente, o agente que faz a função materna pára, por exaustão, de buscar o contato com o bebê, que não se oferece a ela.

Laznik dialoga com outras áreas do saber, como, por exemplo, a psicologia do desenvolvimento, a psicolingüística, a psicologia comportamental, a psiquiatria, a pediatria, entre outras. Esse diálogo também foi necessário em minha pesquisa de mestrado e deverá continuar na de doutorado.

Desde meu interesse pelo tema do trabalho com bebês com risco de autismo, tive a oportunidade de atender a quatro casos. Três entre os quatro casos atendidos responderam bem ao tratamento e uma paciente, que chamei de Cristiana, não vem respondendo bem.

Cristiana, que será foco principal deste trabalho e da futura pesquisa, tem três anos e oito meses. É atendida há um ano e oito meses, porém não apresentou melhora tão significativa da sintomatologia autística quanto os primeiros pacientes recebidos.

A criança iniciou agora a pré-escola regular inclusiva. Brinca sozinha e ainda não fala, emitindo apenas alguns sons (lalação). Ainda não apresenta júbilo quando levada diante do espelho.

Minha expectativa é de, através da escrita, trazer subsídios teórico-clínicos para que seja ainda possível que a criança e a mãe respondam ao tratamento.

Já sabíamos, pela experiência de Laznik (2004), que o atendimento precoce pode oferecer melhores resultados clínicos do que o tratamento iniciado em idades mais avançadas, porém a autora sempre deixou claro que não havia garantias de melhora para todos os pacientes. Porém, sempre nos ocorre a pergunta: o que dificulta Cristiana de se ligar ao Outro?

Recebo-a aos dois anos apresentando um fechamento autístico grave, que se iniciou nos primeiros meses de vida sem ser notado pelos pais. Apresentava também convulsões de difícil controle desde um ano de idade. Os primeiros seis meses de tratamento foram muito angustiantes, pois Cristiana geralmente chegava sedada pela troca freqüente de anticonvulsivantes. Quando acordava, suas crises convulsivas repetidas paralisavam a fala da mãe e, talvez, a minha escuta.

Ainda assim, muitos elementos da fala materna puderam ser recolhidos. Cristiana é a terceira filha, após dois meninos. O casamento dos pais vinha mal há muitos anos devido ao alcoolismo e uso de drogas do pai. Quando engravidou de Cristiana, a mãe, Valeska, não queria mais filhos, pois pensava em se separar do marido.

No entanto, esta dificuldade em aceitar a gestação aconteceu também quando grávida dos dois primeiros filhos. Qual o fato novo, gerador de mais angústia? O fato de ter descoberto que o bebê seria uma menina. Falas da mãe: “Ser mulher é muito mais sofrido, tem cólica, menstruação”. “Para eles até fazer xixi é mais fácil, em pé”. Demorou vários meses a aceitar a gestação, tendo sido finalmente convencida pela sua mãe de que é muito bom ter uma filha mulher para “enfeitar, colocar vestidinhos e lacinhos”.

Valeska fala da própria mãe: “Ela também sofreu muito na mão de meu pai e é dessa época que acha que mulher tem que agüentar tudo...”. As convulsões de difícil controle de Cristiana remeteram também a mãe à história da bisavó da criança, outra mulher infeliz no casamento e portadora de uma epilepsia grave, que acabou ocasionando sua trágica morte por afogamento numa banheira – teve uma crise convulsiva durante o banho e não foi socorrida a tempo.

Este caso nos traz questões transgeracionais relativas ao feminino. Por que o fato de estar grávida de uma menina foi tão insuportável para a mãe? Tentaremos localizar teoricamente por que tanto horror diante do feminino por parte desta mãe.

 

A devastação

Seria útil explorarmos o conceito de devastação, termo que Lacan emprega inicialmente para qualificar a relação mãe-filha e posteriormente em relação ao parceiro amoroso devastador.

A devastação é diferente da reivindicação fálica (Soler, 2005, p.186). Pode até ser combinada com ela, mas não se resume a uma questão fálica. Diante do gozo outro, feminino, o sujeito se divide entre a abolição subjetiva e o Outro absoluto. Teria Valeska, diante do fato de ser mãe de uma menina, ora ficado dividida entre o seu desaparecimento enquanto sujeito desejante, ora se colocado em posição de Outro absoluto? Como se apresentaria esse Outro absoluto? Como linguagem bruta, não modulada pelos picos prosódicos de alegria e de surpresa próprios do manhês, que seriam necessários para atrair a criança para a alienação fundante?

Fernandes (2000, p. 146-154), com que continuaremos nos próximos parágrafos, nos diz que o olhar do Outro primordial nos remete à terceira pessoa do chiste. Sugere que tomemos as produções de pouco sentido do bebê (gestuais, sonoras, musculares) como chistes no primeiro tempo de sua aparição. Para que um Outro possa se surpreender perante as produções de pouco sentido de um bebê nos primeiros meses de vida, é necessário que esse Outro se furte de seu saber.

Isto nos remete a -2, marca de uma falta que torna possível a substituição de um objeto. Já que o falo não tem consistência, qualquer objeto pode vir a substituí-lo. Porém, trata-se de uma falta que instaura a espera de algo, de uma metáfora.

Quando o Outro primordial se encontra apagado, perde-se a capacidade de metaforizar o real do bebê, remetendo a criança a um deslizamento do sentido. Quando o Outro simbólico não faz função, o Outro primordial fica incapaz de reagir ao chiste originário da criança, respondendo com um branco, impedindo a metáfora originária (Fernandes, 2000, p. 151).

Somente quando o desejo materno se metaforiza em -, aparecendo dos furos do desejo os significantes do ideal, é que se pode ver a imagem idealizada da criança, ou “Sua Majestade, o Bebê” de que nos fala Freud (1914). O corpo real do bebê se reveste então de objetos a (o segundo passo do olhar).

É do surgimento dessa imagem, cheia de perfeição, que advém o prazer do Outro primordial, que passa a tomar qualquer gesto do bebê como precioso e, por isso, recolhido como mensagem. Através do prazer do Outro é que o bebê pode completar o terceiro tempo da pulsão (Freud, 1915), se humanizando. Laznik (2004) considera que os autistas estariam com um obstáculo aqui, neste momento essencial da constituição do sujeito.

Voltemos à devastação. Em seu artigo “Uma dificuldade na análise de mulheres: a devastação da relação com a mãe”, Brousse (2004) nos aponta que Freud, ao final de sua obra, já nos dizia ter subestimado a relação precoce mãe-filha e vincula a essa relação primordial o ponto de tropeço da análise de muitas mulheres.

Freud traz a questão da inveja do pênis na mulher, sublinhando suas conse-qüências: a “cicatriz” na relação que as mulheres mantêm com o corpo próprio; a inveja como fábrica da fantasia “uma criança é espancada”; a relação com a mãe responsável pela falta na filha e supostamente capaz de gozar dela (devastação); a sexualidade feminina, que vai na direção metonímica do deslizamento de objetos e não de metáfora.

Brousse aponta ainda duas vertentes da devastação: uma primeira resposta em que a filha torna-se o fetiche materno, e um segundo caso em que, por não existir troca fálica, a filha converte-se em dejeto. Nestes casos a mãe tende a permanecer como um Outro real, Outro do gozo. A autora nos aponta que a devastação toca nos “confins da marcação simbólica” (Brousse,2004, p.62) ou à maneira particular como a linguagem despontou em cada sujeito. Essa emergência da linguagem pode ser sob a forma de insulto ou fora de nomeação, a designação de um ser como objeto rebotalho.

“... qualquer que seja a estrutura do sujeito feminino, quaisquer que tenham sido as contingências da história do sujeito, qualquer que tenha sido o sintoma, uma invariante se destacava. O x do desejo materno assumia sempre, num determinado momento da análise, o valor de morte. O significado para o sujeito era o filho cuja morte se desejara. Esse dado clínico vem esclarecer o termo ‘devastação’” (BROUSSE, 2004, p.63).

Seguindo Brousse, o desejo da mãe está longe de ser totalmente saturado pelo significante fálico. Há na mãe, ao lado do desejo, um gozo desconhecido, feminino. Lacan trabalha esta questão no seminário sobre o desejo e sua interpretação, nas sessões dedicadas a Hamlet, apontando para o gozo feminino, não limitado pelo falo, presente na mãe de Hamlet.

A devastação compõe-se de uma face fálica reivindicatória do desejo da mãe e outra, não toda fálica, ligada à dificuldade de simbolizar o gozo feminino.

Resumindo, a devastação deve-se ao modo particular como a linguagem emerge em cada sujeito, referindo-se ao Outro primordial; situa-se no momento da introdução traumática do sexual – embora não exclua o falo, não o coloca em termos de troca ou perda; a devastação é conseqüência do arrebatamento3 devido à falta de significante da mulher. Valeska se sente “sugada” por Cristiana. “Olha como ela acabou com meus peitos”? diz a mãe. Ela deixou de trabalhar para levar a filha aos tratamentos que se fizeram necessários, ficando ainda mais à mercê do marido por passar a depender dele economicamente. “Não tenho tempo nem para fazer as unhas, me arrumar...”. “Agora sou só mãe... esqueci-me do que é ser mulher” – afirma Valeska.

“É esse o núcleo da devastação: é o gozo outro que devasta o sujeito, no sentido forte de aniquilá-lo pelo espaço de um instante. Os efeitos subjetivos deste eclipse nunca faltam. Vão da mais leve desorientação até a angústia profunda, passando por todos os graus de extravio e evitação” (SOLER, 2005, p.185).

Quando o gozo feminino assume a supremacia, há um desequilíbrio entre o lado mãe e o lado mulher. Winnicott nos dizia que a mãe deveria ser apenas suficientemente boa para que a criança viesse a se constituir de maneira saudável. Com o estudo da obra de Lacan, passamos a compreender que a mãe suficientemente boa é aquela suficientemente mulher, no sentido de abrir caminho para a função paterna. Nosso trabalho deverá investigar o efeito da supremacia do gozo feminino na relação mãe-filha em um caso de risco de autismo.

Procuramos abordar como a teoria pode servir ao caso e não o contrário, explicitando os limites da teoria em relação ao caso clínico, o qual será o eixo central do trabalho para interrogar a teoria, método freudiano por excelência.

 

Os impasses da clínica

O tratamento de Cristiana começou com um impasse. Um familiar assistiu a minha defesa de mestrado e forneceu aos pais da paciente um diagnóstico precoce de risco de autismo, o que foi extremamente difícil de trabalhar com a família posteriormente. A mãe busca ajuda, ainda que de maneira pouco freqüente, faltando muito aos atendimentos, dificultando os horários e dizendo não mais poder pagar meus atendimentos (que se iniciaram no consultório e estão sendo feitos atualmente pelo SUS). No entanto, entrega-me fitas com filmagens caseiras de todo o primeiro ano de Cristiana e me autoriza a estudar e publicar o caso. Já o pai boicota os atendimentos, por “não querer saber de outros problemas além da epilepsia em relação à filha”. Para ele, a única questão de Cristiana eram as convulsões de difícil controle.

Este caso nos coloca muitas questões: estaria o bebê com risco de autismo recoberto pelo fantasma fundamental materno, ou a criança se encontra em posição de objeto a, anterior mesmo à mediação do fantasma materno? – ao invés de , disjunção a. A que estaria uma criança respondendo através de uma recusa ativa em entrar em contato com seu agente da função materna?

O fato da publicação de um caso que ainda está em atendimento é um risco a ser corrido, pois pode teoricamente influenciar os atendimentos clínicos. Freud (1912) já nos alertava para os perigos desta situação. No entanto, ele não se referia no texto a casos de risco de autismo, condição de extrema gravidade que, como sabemos, pode produzir e provocar sujeitos que ficam condenados ao silêncio. O fato de torná-lo público já tem a função de retirá-lo de seu silêncio, de sua obscuridade, visando a reduzir o que há nele de imaginário, evitando sua cristalização. Este caso é o que tem me causado a escrever e por isso ficarei atenta à possibilidade de algum efeito deletério da situação.

O caso clínico neste trabalho surge como testemunho do que nos provocou a clínica. Seguimos as interrogações que ele suscita. Isto tem a vantagem de permitir que cada um faça sua construção enquanto leitor, mesmo que seja para refutar. Este ponto da incompletude do escrito possibilita que cada leitor se interrogue, o que não é uma desvantagem, pois sabemos que o saber é sempre não-todo.

Como nos diz Lacan (1977, p. 14), “a clínica psicanalítica deve consistir não somente em interrogar a psicanálise, mas em interrogar os analistas, a fim de que eles se dêem conta do que sua prática tem de arriscado4, o que justifica a existência de Freud.” Lacan conclui neste texto que é por isto que a psicanálise não é uma ciência, ou mais precisamente, uma ciência exata.

Concordamos com a frase proferida em comunicação pessoal de Jeferson Machado Pinto: “A ciência tem que ser fálica, mas a psicanálise pode ser feminina”. Não pretendemos com nosso trabalho uma completude inexistente sobre a etiologia do autismo infantil. Trazemos um único caso, sobretudo porque ele não vai bem do ponto de vista clínico. Afinal, aposto que há tempo para que algo se transforme em Cristiana.

 

Bibliografia

BROUSSE, M.-H. Uma dificuldade na análise de mulheres: a devastação da relação com a mãe, in: Miller, J. -A. Ornicar?: De Jacques Lacan a Lewis Carroll. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.        [ Links ]

FERNANDES, L. R. O olhar do engano. Autismo e Outro primordial. São Paulo: Escuta, 2000.        [ Links ]

FREUD, S. (1912). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v. XII.        [ Links ]

FREUD, S.(1914). Sobre o narcisismo: uma introdução, ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v. XIV.        [ Links ]

FREUD, S. (1915). As pulsões e suas vicissitudes, ESB. Rio de Janeiro: Imago, v. XIV.        [ Links ]

LACAN, J. Overture de la section clinique. Ornicar?, n.9, Paris: Avril, 1977, p.14.        [ Links ]

LACAN, J. (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo no Inconsciente freudiano. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

LAZNIK, Marie-Christine. Rumo à palavra: três crianças autistas em psicanálise. São Paulo: Escuta, 1997.        [ Links ]

LAZNIK, M.-C. A voz da sereia. O autismo e os impasses da constituição do sujeito. Salvador: Ágalma, 2004.        [ Links ]

SOLER, C. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Levindo Lopes, 333/1406 – Savassi
30140-911 – BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3281-0602
E-mail: isabelasantoro@uol.com.br

Recebido em 02/05/2008
Aprovado em 07/05/2008

 

 

*Psiquiatra. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG. Doutoranda em Psicologia pela UFMG. Professora dos cursos de formação do CPMG e Formações Clínicas do Campo Lacaniano de Belo Horizonte. Professora convidada do Depto. de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG.
1Resumo do projeto de pesquisa apresentado e aceito pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia para seleção ao Doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais.
2Letra utilizada por Lacan (1960/1998) para referir-se ao falo negativizado na imagem especular, possibilitando, então, a interdição do gozo.
3O arrebatamento está ligado ao ter um corpo que pode ser extraviado. É uma forma de perda corporal não simbolizável, uma não inscrição do corpo no desejo do Outro.
4Hasardeux, palavra que tem também o sentido de aleatório.

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