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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso v.30 n.56 Belo Horizonte oct. 2008

 

ANGÚSTIA E TRABALHO

 

A relação sujeito-trabalho-organização na contemporaneidade e a psicanálise: porta de saída ou pacto com o diabo?1

 

The relationship subject-work-organization in the contemporary era and psychoanalysis: an exit or a devil’s pact?

 

 

Matheus Cotta de Carvalho

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do artigo é estudar a relação sujeito/trabalho/organização a partir do ponto de vista da psicanálise. No ambiente organizacional o capital demanda um novo perfil de profissional, diferente daquele da era industrial, e diante dessa nova realidade o sujeito busca se inserir. Qual o papel que cabe à psicanálise, tanto em sua dimensão clínica como em sua extensão, diante desses novos desafios trazidos pela contemporaneidade? Será a psicanálise uma possível porta de saída para os impasses trazidos ao mercado de trabalho pela modernidade?

Palavras-chave: Discurso do capital, Desejo, Gozo, Pós-modernidade.


ABSTRACT

This paper aims to study the subject/work/organization relationship from the point of view of psychoanalysis. This approach promotes the observation of such subjects in the organizational environment in a new perspective. The context is capitalism in its post-industrial phase, together with the hegemony of the capital discourse. In the contemporary era, the role reserved to the subject by the capital is of the consumer itself. Modern organizations now demand a new professional profile, which is different from the model used during the industrial era. The subject struggles to deal with this new scenario, which offers him new possibilities to articulate enjoyment and desire. Which role does psychoanalysis play in regard to new challenges brought to the contemporary era? Is it possible to think of psychoanalysis as a way out of job-related dilemmas of Post-Modernity, or would psychoanalysis be risking to establish a pact with devil?

Keywords: Capital discourse, Desire, Enjoyment, Post-Modernity.


 

 

O objetivo deste artigo é fazer uma reflexão sobre a questão da relação sujeito-trabalho-organização na contemporaneidade, do ponto de vista da psicanálise. A relevância desta abordagem decorre da constatação de que restringir a análise das realidades organizacionais, fundamentalmente caracterizadas pelas relações humanas, aos conhecimentos da moderna administração seria limitar o grau de entendimento deste complexo objeto de análise. Principalmente tendo em vista o fato de que estes espaços tornaram-se, no capitalismo avançado, ambientes propícios ao desenvolvimento de uma série de doenças denominadas de laborais, inclusive, grande parte delas, de origem psíquica. Assim, nada mais natural, diante desta realidade de sofrimento humano, do que recorrer ao arcabouço teórico desenvolvido a partir das idéias originais de Freud, a psicanálise.

Além disto, procurando observar essa mesma realidade de um outro ponto de vista, e levando em conta a importância que assume o trabalho no âmbito das organizações, a partir do início do século XX, deve-se verificar o espaço que ocupa o trabalho no afeto do homem moderno, em particular no que se refere à dinâmica desejo/gozo.

De início torna-se importante destacar que no âmbito deste trabalho entendem-se os indivíduos a partir da perspectiva freudiana que os enxerga como sujeitos singulares, divididos e incompletos e, portanto, seres de desejo. Isto já marca uma contraposição com a visão estabelecida no campo da Administração de Empresas em que o indivíduo racional e senhor de si é pressuposto das abordagens teóricas.

É relevante ainda destacar que a ética da psicanálise é a ética do desejo humano, que por natureza é subversivo, e é por meio deste olhar que devemos caminhar, evitando a tentação de articular qualquer “saída” para os impasses da existência em sociedade, cuja abordagem deve partir do sujeito em sua demanda singular. Assim, evita-se situar o arcabouço psicanalítico numa posição de articulação dos interesses do capital e do trabalho, o que seria eticamente inaceitável.

Por outro lado, deve-se demandar da psicanálise mais do que a crítica social. Em suma, cabe à psicanálise também apontar novas formas de interpretar essa complexa realidade e vislumbrar possibilidades de ação e, no limite, ancorar as pessoas que buscam alternativas de inserção social.

Para efeito deste trabalho destaco três pontos da obra de Freud que são essenciais para fundar as considerações apresentadas adiante. O primeiro ponto refere-se à articulação dos fenômenos singulares com os sociais.

Sigmund Freud via a dimensão do homem em sua natureza singular como fundamentalmente articulada com a dimensão social a ponto de considerar que, de certa forma, esta separação perde importância quando olhada de perto, já que a articulação com o outro é sempre relevante, seja como um modelo, um objeto, um oponente, de maneira que chega a afirmar que a psicologia individual é de certa forma também psicologia social.

Posto isso, torna-se importante apresentar o conceito de função paterna – a partir do entendimento de Lacan da obra de Freud – e o seu papel, do ponto de vista da metapsicologia, como elemento de ligação entre as dimensões da natureza e da cultura, do indivíduo com o social.

Mas, afinal, em qual esfera se originou o conceito de “Função Paterna”?

Segundo Dor, “a noção de pai intervém no campo conceitual da psicanálise como um operador simbólico e a-histórico”2.

Além disto, Dor afirma que “é porque esse pai simbólico é universal – daí a essência de sua necessidade – que nós não podemos deixar de ser tocados pela incidência de sua função, que estrutura nosso ordenamento psíquico na qualidade de sujeitos. Com efeito, nenhuma outra saída é proposta ao ser falante a não ser curvar-se ao que lhe é imposto por essa função simbólica paterna que o assujeita numa sexuação”. E conclui: “Nenhum pai é detentor e, a fortiori, fundador da função simbólica que representa. Ele é seu vetor”.

E para isso, prossegue Dor, “a prescrição simbólica dessa lei supõe uma negociação imaginaria prévia que se desenrola entre os diversos protagonistas familiares: Pai-mãe-filho, reunidos comunitariamente sob a égide da triangulação edipiana”. “Nesse sentido, o estatuto do pai simbólico pode, pois, ser legitimamente remetido, como menciona Lacan, ao estatuto de um significante que ele designa, então, de Nome-do-Pai”.

Em suma, Lacan funda o importante conceito de Função Paterna no âmbito da relação edipiana, como uma função essencialmente simbólica, que tem como objetivo básico o estabelecimento da lei que interdita o acesso da criança à sua mãe. Dessa forma, por meio da operação da Função Paterna, nos tornamos seres de falta, divididos. E exatamente nesse espaço de falta é que se colocam o desejo e o gozo, na busca de uma completude perdida.

Lacan desvincula a função biológica, necessária à paternidade, da Função Paterna, também inexorável, já que somos seres sociais, mas da qual somos todos, inclusive os pais biológicos, “apenas representantes”.

Posto isso, torna-se importante destacar o caráter de ligação entre as esferas do individual e do social que o conceito de Função Paterna assume, já que é exatamente por meio da operação da Função Paterna que se permite a internalização por parte do sujeito – sujeito já barrado – das leis básicas de convivência em sociedade. Isto porque para Freud é exatamente a interdição do desejo incestuoso que marca a passagem da ordem natural para a ordem cultural.

O segundo ponto a destacar é o significado de desejo e gozo nas obras de Freud e Lacan.

Para Freud, a vivência de satisfação constitui-se na base do desejo humano. Esta noção está conectada com a situação de desamparo humano, já que o ser humano é incapaz de garantir, por seus próprios meios, “a ação específica capaz de suprimir a tensão resultante do afluxo das excitações endógenas; esta ação necessita do auxílio de uma pessoa exterior (fornecimento de alimentação, por exemplo); o organismo pode então suprimir a tensão”.

Pode-se esclarecer que para Freud essa vivência de satisfação constitui a base do desejo humano, mas não se confunde com ele, na medida em que essa experiência de necessidade nasce de uma tensão interna e encontra a sua satisfação por meio de uma ação específica – o aleitamento materno, por exemplo. O desejo, por sua vez, encontra-se ligado a traços mnésicos e sua realização ocorre na reprodução alucinatória das percepções que se tornaram sinais dessa satisfação.

Em suma, será a partir dessas primeiras experiências infantis, da satisfação de necessidades e da formação de traços mnésicos e na sua realização alucinatória, que o desejo humano irá se articular em torno do que Freud denominou de “a coisa” ou “das Ding”, que pode ser entendido como o resíduo “do que há de comum a todas as percepções relativas à presença do Outro, não se reduzindo a um componente perceptivo banal”.

Observa-se ainda, conforme pontua Garcia-Roza, que na medida em que “o grito ou choro não se constituem apenas como descarga motora, mas estabelecem-se como signos de uma demanda, demanda ao outro”3, a ajuda externa não se limita a atender a uma necessidade como também introduz o infante na ordem do simbólico.

Para Freud, portanto, o desejo refere-se principalmente a desejos inconscientes, formados a partir de experiências e signos infantis indestrutíveis e constitui-se no elemento essencial de introdução do ser humano na ordem do simbólico.

Assim, a partir dessa referência que buscamos em Freud, vamos introduzir algumas idéias lacanianas seguindo sempre a orientação segura dos textos de Rabinovich, em particular, do capítulo primeiro do livro Clínica da pulsão4.

Toda a reflexão de Rabinovich situa-se no esforço de entender a articulação do chamado objeto a com o mais de gozar e com o desejo, a partir de uma leitura dos textos originais de Lacan. Segundo a autora, o objeto a funciona como uma espécie de dobradiça de articulação com a função causa do desejo e com a função do mais de gozar. E aí encontra-se a importância do correto entendimento dessas relações já que o objeto a, como real, oscilará entre duas dimensões: a dimensão da causa do desejo e a dimensão do mais de gozar.

A primeira dimensão refere-se ao desejo tanto em Lacan quanto em Freud. Já a segunda dimensão, a do mais de gozar, é uma elaboração que se encontra em Lacan, e diz respeito ao conceito de objeto pulsional “inseparável da definição do gozo como satisfação pulsional”.

Deve-se estabelecer de partida que Lacan definiu no Seminário 7, A Ética da Psicanálise, o gozo como a satisfação da pulsão, em sua dimensão real e não imaginária e simbólica, e que essa satisfação envolve necessariamente o corpo. Corpo, por sua vez, comprometido pela ação do significante e não o organismo biológico. Segundo Rabinovich, “Este corpo é, por excelência, sua sede, só se pode falar de gozo enquanto gozo do corpo”.

Para Lacan, o gozo não é prazer mas aquilo que está além do prazer. Nesse sentido, para Lacan, o gozo encontra-se na dimensão da pulsão de morte, subordinado a Tânatos. “O gozo faz, portanto, limite com a dor”, nos termos de Rabinovich.

Assim, o conceito de gozo como limítrofe à dor explicita uma nova ética humana que é aquela que está fundada no sujeito dividido e que tem em seu objeto a – formado pelos restos dessa divisão – um elemento capaz de articular simultaneamente o desejo e o gozo. Gozo como elemento limítrofe da dor. Assim, a ética do ser humano não está fundada na busca do prazer apenas, mas também na busca do gozo.

Posto isso, torna-se importante observar que para Lacan o mais-de-gozar não é somente o objeto a; o objeto a pode captar o mais-de-gozar de quatro outras maneiras: voz, olhar, fezes e peito. Ou seja, pode-se observar uma diversificação do gozo indo além da mera articulação com o objeto a.

E é por meio da ciência que esse mais-de-gozar vai se apresentar, já que a ciência desenvolveu novas possibilidades por meio da criação de novos objetos que vieram nos ofertar uma gama de “possibilidades masturbatórias”. Assim, “esses gadgets tendem a isolar-nos e a produzir, ao mesmo tempo em que uma massificação, um gozo cada vez mais auto-erótico e autista”. Ou seja, o mais-de-gozar se realiza por meio de novos objetos produzidos pela ciência e é capturado pelo objeto a.

Finalmente, o terceiro ponto é aquele em que realço a visão de Freud sobre a questão do trabalho e sua relação com a felicidade humana.

Em “O Mal-Estar na Civilização” Freud irá defender a busca da felicidade como sendo o propósito básico da vida humana. Após constatar a dificuldade da tarefa e como o homem tem-se mostrado incapaz de responder satisfatoriamente a essa questão, pelo menos sem recorrer à religião, em cuja solução não acreditava, Freud observa que, pelo comportamento humano, pode-se considerar que os homens “querem ser felizes e assim permanecer”.

Freud observa, no entanto, que esse desejo nada mais é do que o programa do princípio do prazer que, por sua vez, encontra-se em completo desacordo com o mundo inteiro “tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo”. Além desse aspecto, Freud observa que o homem deriva prazer do contraste mais do que de um determinado estado de coisas. Em suma, a felicidade humana é restringida por sua própria natureza.

No que se refere à infelicidade humana, no entanto, é possível para Freud citar pelo menos três causas básicas:

“De nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro”5.

Observa-se, portanto, para efeito do objetivo proposto, o que interessa focar é a causa da infelicidade que Freud considera a mais importante: aquela que tem sua origem no relacionamento humano. Assim, contra esse tipo de infelicidade Freud sugere alguns tipos de defesa e uma delas nos interessa em particular.

Trata-se da sublimação que ocorre devido ao deslocamento de libido que o aparelho mental possibilita e que lhe confere flexibilidade. Como exemplo Freud cita a alegria do artista ao criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solu-cionar problemas ou descobrir verdades. Freud observa, no entanto, que se trata de um método reservado a poucos “com dotes e disposições especiais”.

Nesse ponto, Freud faz uma referência sobre a importância do trabalho e sua relação com a busca da felicidade que, em minha opinião, merece bastante atenção:

“Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos a eles vinculados, empresta-lhes um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade. A atividade profis-sional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto é, se, por meio de sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos persistentes ou constitucionalmente reforçados. No entanto, como caminho para felicidade, o trabalho não é muito prezado pelos homens. Não se esforçam em relação a ele como o fazem em relação a outras possibilidades de satisfação. A grande maioria das pessoas trabalha sob a pressão da necessidade, e essa natural aversão humana ao trabalho suscita problemas sociais extremamente difíceis”.

Postos esses elementos de cunho teórico, devem-se explorar aspectos da sociedade contemporânea, em particular, do mundo do trabalho.

A sociedade do conhecimento, ou pós-industrial, é como se denomina o período do capitalismo para o qual evoluímos nos últimos anos. Essa era caracteriza-se pela prevalência do conhecimento como força motora básica de sua dinâmica. Nos termos de Peter Drucker, o que diferencia essa fase do capitalismo das demais é a aplicação do conhecimento ao próprio conhecimento. O capitalismo desenvolve-se, portanto, em sua fase atual, tendo como base máquinas (organizações) de produção de riqueza, que devem estar preparadas para inovar permanentemente, e, nesse processo, eliminar a riqueza antiga. Dessa forma, o capital garante a sua reprodução e acumulação e atinge seu objetivo fundamental de remunerar o capital investido pelos capitalistas.

Trata-se de mudança substancial, já que a sociedade industrial baseou-se na chamada administração científica cujo expoente máximo foi F. W. Taylor que, já no final do século XIX, desenvolvia métodos de analisar e organizar o trabalho visando aumentar sua eficiência e produtividade. Foi com base nas idéias de Taylor que toda a indústria nascente do início do século XX se estruturou como organizações.

Assim, pode-se concluir que estamos passando por uma transição de fundamental importância na história do homem: de uma sociedade industrial em que havia uma relativa estabilidade das instituições e em que o acúmulo de capital se dava principalmente por meio do aumento de produtividade decorrente, principalmente, do controle sobre o trabalho humano, para uma outra sociedade cuja dinâmica baseia-se na inovação permanente, e o trabalhador tem como papel primordial ser agente da inovação e que, portanto, não precisa de controle, mas de motivação e criatividade.

Essa era do capitalismo conhecida como sendo a do conhecimento, e que os sociólogos denominam de pós-moderna, também se caracteriza por uma orientação para o mercado com a utilização intensiva das técnicas de marketing visando ocupar espaços crescentes na acirrada luta por espaço no mercado consumidor. É a época da prevalência do consumidor já que a produção industrial se dá de maneira mecanizada, sem a mesma necessidade do trabalhador operário que havia na sociedade industrial.

Portanto, o capital busca acima de tudo o conhecimento do consumidor, seus supostos desejos de consumo e o entendimento dos mecanismos de escolha do indivíduo consumidor. Neste sentido, prevalece o chamado discurso do capital, conforme demonstra Lacan, uma variação do discurso do mestre, em que o agente capital faz com que a ciência desenvolva gadgets para o gozo do sujeito, reduzido à condição de consumidor. A partir desta leitura, inclusive, Lacan conclui que o discurso capitalista não é capaz de gerar laço social, já que toda a relação entre o agente e o outro a quem o discurso se dirige se dá por meio de objetos. A predominância do discurso capitalista gera uma economia centrada no consumismo que responde à demanda do sujeito – travestido de consumidor – por meio do gozo proporcionado pelo consumo.

Segundo importantes sociólogos, como Zygmund Bauman, é um período marcado pelo estabelecimento de relacionamentos fluidos e instantâneos e pela fragilidade dos laços humanos. O que vale é o instante em que se vive, e perde-se progressivamente a noção do passado e mesmo do futuro. O que vale é o hoje.

Ao se colocar como objeto passivo diante do discurso do capitalismo, como mero consumidor em detrimento da posição de sujeito, busca-se usualmente negar a própria condição humana de castrado e, portanto, a lei do pai, caracterizando uma era que uma corrente de psicanalistas denomina como de declínio da função paterna, responsável pela transmissão da tradição cultural do homem, conforme já visto anteriormente.

Em suma, trata-se de uma era marcada por mudanças profundas da infra-estrutura econômica, com mudanças na esfera social e cultural, abrindo oportunidades de novas inserções no social sem as mesmas e rígidas estruturas da era industrial, mas por outro lado, com a presença marcante do discurso capitalista que desconhece o desejo humano e mesmo as leis sociais e culturais e que busca apenas sua própria valorização máxima.

Nesse contexto, o trabalho deixa de ser o lugar seguro que permitia ao sujeito desenvolver o seu projeto de vida e passa a se caracterizar como um conjunto de experiências isoladas, o que dificulta sobremaneira a construção de narrativas a respeito de sua própria experiência. Flexibilidade é o que caracteriza o mercado de trabalho em que os interesses são compostos por circunstâncias entre o empregador e o empregado, gerando inúmeras relações de trabalho durante uma vida útil.

Mesmo do ponto de vista ético, o trabalho muda sua função já que não mais faz sentido pensá-lo como uma construção que pode exigir, em um primeiro momento, sacrifício a ser no futuro recompensado por meio de algum tipo de reconhecimento social. Ao contrário busca-se o prazer (gozo?) em cada experiência em si mesma, ou seja, o trabalho passa a ser visto como um objeto de consumo como outro qualquer que precisa gerar algum tipo de satisfação imediata.

O que se verifica, portanto, é um rompimento dos laços que ligam o trabalho ao capital. Observa-se que se trata de rompimento unilateral já que foi o capital que adquiriu uma autonomia em relação ao trabalho no capitalismo pós-industrial. Pelo menos do trabalhador manual que não contribui com aquilo que o capital precisa para se reproduzir em escala ainda maior: criatividade capaz de se transformar em inovação. E inovação que possa, por sua vez, gerar aumento de produtividade ou realimentar o ciclo de consumo.

E que perfil de profissional interessa ao capital na atualidade? Trata-se de um mercado de trabalho que busca aqueles com capacidade de abrir mão de seu próprio passado, aceitar a fragmentação e o permanente deslocamento. De um profissional criativo e competitivo. Um profissional sem gravidade, para usar um termo de Charles Melman. É uma elite que, nos termos de Sennett, “leva a mesa toda, enquanto a massa dos perdedores fica com migalhas para dividir entre si”6.

Esta realidade do mercado de trabalho impõe aos que não possuem esta capacidade de lidar com essa relação fluida, acima descrita, sofrimentos de ordem psíquica que se apresentam por meio das síndromes do pânico, depressão e, no limite, o burn out, ou seja, o esgotamento completo do indivíduo em decorrência da pressão no ambiente de trabalho.

Não devemos desconhecer, por outro lado, que para os profissionais preparados para essa realidade de um mercado de trabalho fluido e mutante, surgem oportunidades de experiências profissionais que podem ser satisfatórias e alinhadas a vocações ou escolhas pessoais. Isto porque o perfil que hoje se demanda é mais variado e complexo do que o do profissional obsessivo capaz de se submeter às rotinas, típico da sociedade industrial.

A meu ver pode a psicanálise, diante dessa realidade, desempenhar um papel relevante do ponto de vista dos interesses da sociedade, ao revelar os mecanismos de captura do sujeito, que passa pela articulação desejo/gozo na dimensão do pequeno objeto a, e que inserem o sujeito neste jogo do capital, e ao apontar a posição passiva que o sujeito assume ao ser reduzido à condição exclusiva de consumidor. Pode também indicar como o homem tem subestimado a importância do trabalho na busca de sua própria felicidade e desconsiderado sua própria história na definição de suas vocações.

Em suma, a psicanálise pode apontar novas possibilidades e estratégias às pes-soas e permitir um novo posicionamento – menos passivo – perante uma realidade dominada pelo discurso do capital e pelo declínio dos valores sociais. Ou seja, existe um importante espaço de atuação para a psicanálise, seja no âmbito da clínica, seja em sua extensão. Torna-se necessário, no entanto, observar que o discurso do capital tem uma enorme capacidade de “digerir” os discursos diferentes do seu, incorporando-os já numa versão “bem comportada” e rentável. Assim, o desafio que se coloca à psicanálise é apresentar-se como um discurso alternativo, subversivo em relação ao discurso do capital, e fiel aos seus princípios e à sua própria ética. Evita-se, assim, o risco do que denomino de “pacto com o diabo”.

Em suma, gostaria de terminar minha apresentação com uma citação de um trabalho de Carmen Gallano que a meu ver resume bem minha posição no que se refere às possibilidades do sujeito diante do discurso do capital:

“A saída do discurso capitalista é uma saída que não faz ruído revolucionário, nem barulho de protesto. Diria que é uma saída na ponta dos pés, em uma destituição subjetiva daquela produzida pela ciência. Na ponta dos pés, mas com o passo decisivo do ato que cria um desejo que não anda em conformidade com essa lógica. Trata-se, portanto, de fazer surgir um sujeito transformado pela análise, de maneira que seu desejo obedeça a uma lógica que não a da rentabilidade, ou seja, de um desejo que não dá rentabilidade ao Outro pelo gozo”7.

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência
Rua Professor Antonio Aleixo, 358/1502
30180-150 - BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31) 3295-2854
E-mail: matheus.cotta@terra.com.br

Recebido em: 04/08/2008
Aprovado em: 11/08/2008

 

 

Sobre o Autor

Matheus Cotta de Carvalho
Economista. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

1 Agradeço as contribuições dos membros do Grupo de Estudos sobre Psicanálise e Organização, vinculado ao CPMG, e, em particular, a Eliana Rodrigues Pereira Mendes.
2 Dor, Joel. O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
3 Garcia-Roza, L. Alfredo. Introdução à metapsicologia freudiana, v.1, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p.161.
4 Rabinovich, Diana. Clínica da pulsão: as impulsões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.
5 FREUD, S. O mal-estar na civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.XXI, p.65-148.
6 Sennett, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.105.
7 Gallano, Carmen. Um sujeito-outro: há uma subversão psicanalítica do sujeito sem o outro do capitalismo? Stylus. Associação do Campo Lacaniano, n.12, abr.2006

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