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Reverso
versión impresa ISSN 0102-7395
Reverso vol.32 no.59 Belo Horizonte jun. 2010
EDITORIAL
Começa neste número nossa segunda gestão como Comissão Editorial responsável pela revista Reverso. Pretendemos para esta gestão manter a mesma política da revista iniciada no biênio anterior, dando ainda mais visibilidade a nossa Reverso. Acolhemos trabalhos de colegas de nossa instituição, mas também de colegas de outras instituições que se apresentaram em conferências, aula inaugural e jornadas no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. A Comissão Editorial para o biênio 2010/2011 é composta por Carlos Andrade Mello, Marília Brandão de Lemos Morais, Nadja Ribeiro Laender e Paulo Roberto Cecarelli.
Neste número, belamente ilustrado com a tela de Sandra Guieiro contendo Narciso na capa, teremos mais um número com reflexões teórico-clínicas riquíssimas para a psicanálise. Quero trazer uma pequena reflexão sobre o tema do narcisismo, que perpassa os artigos deste número.
Em 1920, Freud escreve Mais Além do Princípio do Prazer. Desde sempre a pulsão de morte esteve ligada ao narcisismo: Narciso cai nas águas e suicida-se enamorado de sua própria imagem. O tema do suicídio foi muito bem abordado por Alberto Coutinho em Suicídio e Laço Social.
Em uma concepção algo biologicista, Tânatos tende a deter ou conduzir a substância a estados primitivos de desenvolvimento e Eros lhe imprime um sentido progressivo. Porém, não podemos nos esquecer que o narcisismo tem dois aspectos: o narcisismo estruturante do sujeito, modelador de seu Eu e de sua autoestima, tão bem sublinhado por Mara Sternick em seu artigo A Imagem do Corpo em Lacan, e o narcisismo que, ao se perpetuar, se torna mortífero e deixa o Eu sem saída em busca de um ideal que não permite crescer em direção a sua individualização como sujeito desejante, como nos traz Nadja Ribeiro Laender em seu artigo Da psicose extraordinária à psicose ordinária.
Carolina Bellico em Há laço no Fenômeno Psicossomático nos aponta que no FPS ocorre o adoecimento do corpo devido ao investimento narcísico no órgão que provoca pânico no sujeito diante das manifestações somáticas. A lesão psicossomática traz gozo e faz o sujeito sofrer, mas ao mesmo tempo faz com que este desconheça a lesão, não se implicando nela. Um Narciso às avessas, nos diz a autora.
A pulsão de morte pode se expressar de duas maneiras. Dirigida pela estrutura narcisista, se manifesta através da compulsão à repetição. Repetição não prazerosa, a não ser de feridas narcísicas, tão bem exemplificadas pelo artigo de Zorca Domic sobre os viciados em jogos envolvendo dinheiro.
Narciso ama sua imagem: o Eu ideal, que tem pouca flexibilidade, sendo inatingível por estrutura, não conseguindo sair do registro onipotência – impotência – ou é tudo ou é nada. Por isso este ideal falha e "a sombra do objeto recai sobre o Eu", como nos diz Freud na melancolia, abordada em dois artigos, um de Breno Ferreira Pena com A Melancolia e suas interfaces com o objeto a e outro de Edson Santos de Oliveira com Traços melancólicos em Guimarães Rosa: uma leitura de Páramo, de Estas Estórias.
O Narcisismo na constituição do sujeito vem antes da pacificação promovida pela incidência da função paterna instaurada a partir do complexo de Édipo. Cássio Miranda em seu artigo A angústia na cena contemporânea e os avatares da masculinidade relaciona o declínio do viril com o declínio do pai na pós-modernidade. Haveria um recrudescimento narcisista em alguns destes casos de declínio do viril?
Freud descreve em O Estranho uma experiência pessoal. Estava em um trem, quando, com um solavanco, a porta do compartimento se abriu. Entrou um senhor de boné e Freud levanta-se para mostrar ao intruso que ele estava no compartimento errado. Toma um susto ao perceber que era ele mesmo, refletido em um espelho. Ainda se lembra que antipatizou totalmente com sua própria imagem. O familiar se torna estranho. Freud também diz que os que voltam com o sentimento do sinistro são a castração e o narcisismo. Este Eu ideal, primeiro ideal sexual narcisista, retorna na forma do duplo, que se torna persecutório quando do Eu tenta abandoná-lo.
Vejamos a experiência de Guimarães Rosa descrita em O Espelho:
"Sim, são para se ter medo, os espelhos. Temi-os desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-se a encará-los, salvo as críveis excepções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão. (...) Que amedrontadora visão seria então aquela? Quem o monstro? (...) Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. (...) E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era... eu mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer esta revelação?"1
O artigo de Paulo Cecarelli e Adelson Bruno dos Reis Santos Psicanálise e Moral sexual trata de tentar elucidar como a cultura ocidental criou a moral sexual civilizada geradora da doença nervosa moderna, cultura esta que narcisicamente infere o que é sexualmente aceito pelo social. Narciso não suporta a diferença. O familiar perverso polimorfo infantil torna-se estranho, tendo que ser recalcado a custo da neurose.
Em Estar Amando e Hipnose, escrito em 1921, Freud diz que no apaixonar-se há uma eleição narcisista onde o objeto seria aquele ideal perdido (Eu ideal). E o Eu se empobrece no apaixonar-se e se entrega ao objeto. Já no amor há uma relação objetal em que o Eu se enriquece na troca de libido com o objeto, consolidando o sentimento de autoestima. Reflexões interessantíssimas sobre a vida amorosa se encontram no artigo de Malvine Zalcberg intitulado Parcerias amorosas sintomáticas.
Voltando a Guimarães Rosa, vemos que quando o Eu aprende a amar, novamente há uma integração. Mas infelizmente nem todos vão ser capazes de amar.
"Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava – já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E ... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda- sem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?"
Através da escrita, cada um dos autores procura permear Eros na teia de Tânatos, ao buscar dar conta dos impasses da clínica psicanalítica atravessada pelo narcisismo. Assim, apresentamos este rico tecido teórico-clínico: nossa Reverso 59.
Isabela Santoro Campanário
Editora
1 ROSA, J.G. O espelho. Primeiras estórias. Utilizarei no editorial várias passagens do mesmo conto, p.65-72.