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versión impresa ISSN 0102-7395
Reverso vol.33 no.61 Belo Horizonte jun. 2011
A psicanálise tem meios para refletir sobre o mal? Estudo feito em torno do livro "O espírito do mal", de Nathalie Zaltzman
Does psychoanalysis have tools to think about the evil? A study about the book "The Spirit of the Evil' by Nathalie Zaltzman
François Villa
UFR Ciências Humanas Clínicas, Universidade Paris-Diderot, França
RESUMO
O papel desempenhado por Nathalie Zaltzman no pensamento e na clínica psicanalítica contemporânea é apresentado pelo autor, tomando como destaque suas reflexões sobre o mal, suas origens e seus efeitos na cultura. Inevitável é o questionamento sobre a posição da psicanálise diante do que denomina o espírito do mal, sua essência e suas incidências no sujeito e nos grupamentos humanos. Decorre daí uma indagação sobre que meios teria a psicanálise para investigar e tratar esse fenômeno que perpassa ao longo de toda nossa história.
Palavras-chave: Espírito do mal, Cultura, Mal-estar na cultura, Psicologia das massas, Crimes contra a humanidade, Repetição, Sentimento inconsciente de culpa, Totemismo, Horda primeva, Neoformação social, Ontogênese, Filogênese.
ABSTRACT
The role of Nathalie Zaltzman in the psychoanalytic thinking and in its contemporary clinic is presenting by the author in her toughts about the evil, its genesis and its effects in the culture. To questio about psychoanalysis's position when she describes the spirit of the evil, its nature and its incidence in the subject and the human groups is inescapable. Then, it rises a question if the pshychoanalysis would have tools to investigate and treat this phenomenon that is happinning all way trough our history.
Keywords: Spirit of evil, Culture, Culture malaise, Mass psychology, Crimes against humanity, Repetition, Unconcious guilty feelings, Totemisme, Prima horda, Social neoformation, Philogenesis, Ontogenesis.
Nathalie Zaltzman (1933 - 2009)
Quando a revista L'évolution psychiatrique aceitou este artigo "Sobre O espírito do mal, de Nathalie Zaltzman", não se podia prever seu lançamento logo após o falecimento, em 10 de fevereiro de 2009, dessa grande psicanalista. Com seu desaparecimento perdemos um espírito apurado e combativo. Ela era profundamente inserida na tradição freudiana, que respeitava sem veneração, porque estava sempre voltada para a pesquisa e sabia que a vivacidade da descoberta freudiana só podia ser mantida na exploração daquilo que, no mundo atual, nos interroga sobre os processos que determinam o trabalho de cultura. Seus mais recentes questionamentos incidem sobre as experiências-limite, onde se revelam a essência e a natureza do trabalho de cultura como amarração original do homem e da espécie humana naquilo que ela, a autora, designa sob a denominação de identificação sobrevivente. Sem concessões, sem ceder à mínima facilidade, com intransigência mesmo, ela batalhava para que os psicanalistas não se mantivessem indiferentes às questões trágicas que a experiência totalitária do século 20 nos propõe. Daí, seu questionamento sobre o mal.
Analisante de Serge Leclaire, desaprovando o procedimento do passe proposto em 1968 por Lacan, ela deixou a Escola Freudiana de Paris e participou, em 1969, da fundação do Quatrième Groupe. Durante mais de quarenta anos, foi um de seus membros principais, não deixando de provocar seus colegas, incitando-os a não se furtar às questões pungentes com que depara a psicanálise. Em 1983, na companhia de Piera Aulagnier, uma amiga preciosa, e de J.P. Valabrega, participa do remanejamento dos princípios originais da formação. Durante muitos anos, participa da comissão de redação da revista Topique. Até sua morte, foi membro ativo da comissão de redação da revista Penser/rêver.
Nathalie era uma apaixonada pela coisa e pela causa psicanalítica. Preocupada com o futuro da psicanálise, era atenta ao percurso dos jovens colegas. Sabia manter grande disponibilidade para cada um que se aproximava dela e mostrava-se curiosa pelo modo de pensar de seu interlocutor. Mas, mesmo sabendo escutar generosamente, posicionava-se com uma firmeza e um rigor exigente nos debates. Seu engajamento no Quatrième Groupe e sua fidelidade a essa associação, pelo contrário, não impediam o diálogo fora de sua instituição e seu reconhecimento, como pensadora original e psicanalista notável que era, pelo conjunto de nossa comunidade internacional. De origem russa, devotava uma paixão pela cultura daquele país e por seus escritores, de quem era leitora refinada e procurava compartilhar esse gosto. Nathalie teve uma participação essencial no renascimento da psicanálise na Rússia e são numerosos os colegas russos formados a partir de seu divã ou sob sua supervisão.
Desde a História crítica das instituições psicanalíticas, publicada em 1970, no nº 2 da revista Topique e publicada sob seu nome de casada, Nathalie Perrier1 , até O espírito do mal em 20072 , passando por A pulsão anarquista (Topique nº 24, 1979)3 que é um de seus artigos mais marcantes, Nathalie Zaltzman traçou um caminho original e foi, para muitos de nós, uma referência em psicanálise. Já dissemos o quanto essa pensadora audaciosa e original era uma psicanalista fora do comum, que não hesitava em retomar, de modo inovador, questões antigas, consideradas ultrapassadas e disso trata seu livro intitulado A propósito da cura psicanalítica, publicado em 1998.4
Pessoalmente, tendo tido o privilégio de manter, durante mais de dezoito anos, um diálogo contínuo com Nathalie, que me honrou com sua amizade, não concebo imaginar o mundo sem ela. Seu pensamento jovial, sua paixão, seu vínculo de amizade fiel vão faltar duramente numa época em que o pensamento se vê ameaçado por formas insidiosas de totalitarismo. Experimento um pesar, compartilhado por outros colegas e amigos: sua curiosidade a respeito do outro era tal que, sutil e amistosamente, ela sabia questionar de uma maneira que levava o outro a tomá-la como confidente, ao passo que ela era de uma tamanha reserva, de tal discrição, de um especial pudor que hoje, quando não mais está aqui, é que me dou conta de que ela partiu sem que eu pudesse conhecêla verdadeiramente. Adeus Nathalie.
Paris, 5 de março de 2009.
Com seu último livro, intitulado O espírito do mal, a psicanalista Nathalie Zaltzman coloca a cada um de seus leitores questões sobre as quais interroga se a psicanálise tem meios de enfrentá-las. Podemos, hoje em dia, tecer considerações em torno do mal? É a primeira dessas questões, justamente aquela que o livro mais pretende abordar e que ela coloca particularmente para a psicanálise: O método desse modo de investigação psíquica pode esclarecer o fenômeno do mal, pode tratálo? Deduzimos que outras duas questões se articulam a essa primeira: O tratamento psíquico, operando sobre o trabalho da cultura, pode ajudar a superar as consequências do mal nessa mesma cultura? Ao longo da História, as repetições seriam apenas retornos a estados anteriores ou trazem, em si mesmas, formas inéditas?
O espírito do mal é um título estranho: deve-se escutar espírito no sentido de espírito de um texto, ou seja, o sentido do mal, ou tomá-lo como aparece em espírito de uma sociedade, quer dizer, aquilo que tem sua constituição própria, que é sua base? Então, cabe interrogar se é a parte da essência que resguarda o próprio mal. No primeiro caso, o mal é colocado como aquilo que está instalado nas ações, nos pensamentos, nos comportamentos; já no segundo, é o mal que é habitado pelo espírito, agindo em seu interior. Em uma situação, o mal é que é o alvo, em outra, ele é aquilo que se encontra no princípio próprio do espírito.
Parafraseando o prefácio que Baudelaire endereça ao leitor de Flores do mal, diria que esse livro convida-nos, seus leitores hipócritas, a abordar a questão do mal reconhecendo que se trata aí de um monstro delicado, do qual só conhecemos o excesso de influência que tem sobre nós e sua participação em nossas ações. Como Baudelaire, Zaltzman nos obriga a considerar lucidamente que:
"Na almofada do mal é Satã Trismegisto Quem docemente embala nosso espírito encantado, [...]
É o Diabo que sustenta os cordões que nos movimentam!
Em meio à repugnância, encontramos atrativos;
Dia após dia, descemos um passo para o Inferno,
Sem horror, em meio às trevas nauseantes".5
A interrogação sobre a dimensão psíquica do mal, associada à irritação que Zaltzman experimenta diante da leitura de O mal-estar na civilização6, leva-a a enfocar o mal pelo viés da psicanálise e a questionar o tratamento que pode ou não lhe ser aplicado pelo trabalho da cultura.
No que comumente denominamos o mal ela reconhece o retorno, na cena psíquica e na cena do mundo, de uma verdade psicológica que os ideais e os mandamentos criados pela sociedade e pela civilização tentaram negar, se recusando ao esforço que teria imposto sua transformação.
Esse livro convida os psicanalistas a considerar a dimensão do mal em seu trabalho cotidiano e em sua teorização, sob pena de deixar fora do trabalho analítico aquilo que, no interior da cena psíquica individual, é coletivo e impessoal. Para a autora, esta parte coletiva e impessoal é o núcleo do psiquismo, o material do qual, por transformação e transposição, o trabalho da cultura fará emergir a singularidade psíquica que constitui o nascimento da psicologia individual.
A questão que norteia esse livro, depois das tragédias do século 20, é a da relação entre os progressos individuais na vida psíquica, que permitem a cura psicanalítica, e a evolução geral do ser humano. O livro se apoia sobre um postulado: a existência de um hiato, talvez intransponível, entre ontogênese e filogênese e que o viés darwiniano de Freud teria subestimado, insistindo na relação íntima de causalidade existente entre elas. A autora sublinha o contraste que existiria entre a "possibilidade de evolução do homem, da qual a experiência psicanalítica é uma comprovação cotidiana, e uma constante não evolutiva da condição humana, irremediável, irreversível e irremovível, que se repetiria no campo social." Esta constante se coloca como uma objeção fundamental ao trabalho da cultura. É ela que reduziria o avanço sobre o campo social do progresso individual na vida psíquica que o tratamento propicia. Sua força seria tal, que colocaria em risco o trabalho da cultura, a ponto que este teria pouca, até mesmo nenhuma consequência sobre a cena do mundo.
O propósito da autora desenvolve-se partindo de três hipóteses centrais, a partir das quais tenta sustentar todas as consequências trágicas para o pensamento.
A primeira hipótese que sua experiência psicanalítica a obriga a formular é que, "infelizmente, o trabalho da cultura não se aplica, de fato, à evolução histórica das civilizações".
A segunda é que essa distinção entre progresso da civilização e progresso na vida psíquica, progresso da cultura, não é indiferente à evolução da psicanálise e que dessa tomada de posição depende, em grande parte, seu futuro no mundo.
A terceira hipótese é que essa solução de continuidade entre o progresso individual e o progresso coletivo só pode ser considerada levando-se em conta a dimensão do mal. Segundo a autora, ela é, ao mesmo tempo, "a constante não evolutiva da condição humana" e o "fermento da vida psíquica". Nesta construção, o mal é, paradoxalmente, o que resistiria, através do tempo concernente à evolução da espécie, a toda modificação. É aquilo que subsistiria como uma invariável e, ao mesmo tempo, é o que, susceptível de ser transformado pela sucessão do tempo de uma vida pelo trabalho da cultura, permite ao indivíduo progredir no conhecimento de sua condição pela conscientização da parte coletiva e impessoal sobre a qual se funda sua singularidade radical.
O objetivo de Zaltzman é inferir se o trabalho da cultura, definido como instância de lucidez psíquica, traz uma contribuição menos ilusória à ética do que o supereu cultural e suas expectativas complacentes.
Antes de avançar mais, tentarei precisar o que a autora designa sob a denominação de trabalho de cultura. Trata-se de um processo de "elaboração intrapsíquica e transindividual de experiência de vida que modifica o desenvolvimento individual e a evolução do grupo humano." No melhor dos casos, permite um progresso na evolução do ser humano que transforma a representação psíquica que este faz de si mesmo, modifica sua relação com a filogênese e marca um progresso da consciência moral.
Graças a esse modo de amarrar, de modo indissolúvel, destino individual e destino coletivo, a autora leva os psicanalistas a rever sua prática. Considerando essa ligação, pode-se admitir que o progresso do conhecimento iniciado pela psicanálise poderia ser independente da noção de progresso moral? Em que se transforma o projeto terapêutico psicanalítico, que Zaltzman define como trabalho da cultura visando à experiência psicanalítica, quando ele vai de encontro à maldade, como dado invariável da constituição humana? Caberia aos psicanalistas assumir uma postura em que considerem que, sendo a natureza humana7 uma condição estranha ao seu campo de ação, não haveria lugar para referência ao mal, e só deveriam se preocupar com a evolução da singularidade individual?
É a partir dessas coordenadas que Zaltzman passa a colocar suas questões a respeito do mal. Lembra a dificuldade já apontada por Hannah Arendt, acentuando que "quando a reflexão se dirige ao mal [...] nada encontra." É isso que causa a frustração do pensamento, de nada encontrar aí, onde ele buscava extrair as raízes do mal, atingir o seu sentido profundo, e esta é a experiência que se revela para Arendt como a banalidade do mal. Admitindo essa dificuldade, a autora passa a considerar o mal, não diretamente, mas através de suas ações.
Desde o primeiro capítulo, seu percurso lhe impõe uma interrogação sobre a afirmação de Freud em Totem e tabu8, onde enuncia que "o totemismo é completamente estranho à nossa maneira atual de sentir" e que "se trata de uma instituição extinta há muito tempo." Uma das questões desse ensaio incide justamente sobre o destino psíquico das instituições, há muito, inexistentes. Baseada na leitura de O senhor das moscas, de Golding9, e sobre os totalitarismos do século vinte instaurados até nas sociedades mais evoluídas, a autora vai destacar um movimento de recriação do totemismo, de retorno a uma instituição desaparecida que, segundo ela, pode-se produzir facilmente e com um poder de evidência que leva ao desaparecimento dos traços de civilização mais valorizados até então. Ela desenvolve a ideia de um retorno singular, porque não é o retorno ao anterior, mas retorno do anterior, numa transformação que cria uma forma institucional inédita.
A partir do livro de Golding, ela aborda a noção psicanalítica de regressão. Destaca aí um movimento inverso ao que realizou Freud quando concebeu a conceituação da psicologia do eu a partir da psicologia das massas. O senhor das moscas chama a nossa atenção para um movimento de retorno "do individual ao coletivo, à sua organização em um bando unificado pela ânsia de matar." Neste movimento, que ela designa como "a progressão conquistadora de uma regressão cultural coletiva", a autora propõe reconhecer como a pós-história de um grupo (as crianças do livro de Golding) se cria e se constitui como uma neoformação social. Ela nos convida a pensar que o efeito da regressão, que aqui está em jogo, não produz um retorno a um estado anterior de evolução social, mas realmente faz suceder um estado posterior, antes inexistente. Define essa neoformação como a aparição de uma horda sem pai e de um totem sem tabu. Adianta que ali, onde os progressos da civilização eram levados a manter os tabus sem ter necessidade de conservar o totemismo, a regressão em que se dá a neoformação perde os tabus e reencontra o totem. E o que, para ela, estaria não somente no fundamento da neoformação, mas também seria o princípio atual que o põe em ação, é um ódio puro, que escapa a todo emparelhamento possível com o amor. Neste ódio puro, ela propõe reconhecer um efeito especificamente coletivo, que seria o próprio amálgama, pela dissolução da psicologia do eu, unificada em uma psicologia das massas. É desse ódio sem ambivalência que, por projeção, nasceria uma divindade maléfica (Simon, uma das crianças da história de Golding diz: O monstro que se imagina, pode ser um de nós, um animal interior). Zaltzman vai sustentar mais adiante, em seu texto, que esse ódio não é articulável à pulsão de morte. Sob esse aspecto, minha compreensão demandaria mais argumentação. Mais adiante, voltarei a esse retorno a um estado anterior e àquilo que, realizando o retorno sobre o retorno, impede a simples reconstituição de um estado anterior. Esse capítulo termina em uma questão cuja gravidade é preciso marcar:
" ... alterações se fazem no decorrer de uma análise, na cena de sua experiência cotidiana. São movimentos microscópicos de decomposição filogenética e ontogenética. Progressos? Soluções? Como esses movimentos integrariam a evolução macroscópica da espécie humana?"
Como consequência da construção feita a partir de O senhor das moscas, no capítulo seguinte do trabalho de Zaltzman, O coletivo no individual, surge um paradoxo. Como articular a possibilidade de uma evolução inegável para o homem no re-conhecimento de sua condição, dos ganhos de inteligência indiscutíveis a esse respeito e, entretanto, verdadeiramente, pouca ou nenhuma consequência desta evolução no campo social? Como pensar que a capacidade possível de evolução do homem, cujo tratamento é uma comprovação cotidiana, se vê diante de uma constante não evolutiva da condição humana, irremediável, irremovível: a dimensão do mal? Partindo do fato de que a noção de mal, além de suas variações culturais, tem uma história tão rica e antiga quanto a noção de humanidade - é assinalado que a noção de mal parece indissociável da noção de humano -, a autora defende que entre elas existe uma associação indefectível. Constata que a noção de humano muda com muito mais frequência de conteúdo ao longo da história e das civilizações do que aquela de mal. Isso constituiria uma invariante que designa um acontecimento no agente ativo que é humano e que atinge a vida, o corpo, a essência de um indivíduo, de uma coletividade e do futuro da humanidade. O mal é algo que se exprime como puro ódio, impossível de se relacionar ao amor. É ódio em forma bruta, que ameaça os fundamentos jurídicos, políticos e morais, sobre os quais se apoia a perenidade de uma civilização. É o que desfaz a ordem do mundo em que vive o homem, muitas vezes ignorando essa ordem, que ele almejaria imutável e eterna, só atingida à custa de trabalho individual e cole tivo que lhe custou caro. Ela não estava presente desde o início e antes de ser instituída reinava a desordem e o caos.
A autora lembra que a compreensão do mundo não é o sinônimo de ordem no mundo, pelo contrário, o entendimento do mundo não pode se poupar de reconhecer, efemeramente, que a ordem no mundo só é o resultado de uma construção humana que se institui sobre e contra a desordem original que ela tenta extinguir. Na maior parte do tempo, o ganho obtido pelo mundo leva a negligenciar que a ordem alcançada não dissipou definitivamente a desordem. Por trás da ordem subsiste a desordem anterior que põe tudo a perder.
Ainda segundo Zaltzman, é preciso entender como mal uma dimensão constitutiva da vida psíquica, não imputável a esta ou aquela parte do aparelho psíquico e que não seria reduzida à dimensão pulsional. Além disso, cada civilização comporta uma zona obscura que se origina na incapacidade de refletir acerca do mal. É a forma particular de evitar considerações em torno do mal que dá essas características a cada civilização e que lhe atribui sua singularidade. É por essa zona obscura que se dá a repetição daquele núcleo duro que se revela, segundo a autora, impossível de ser transformado pela civilização.
O mal, que é como a autora pretende nomear aquele núcleo, fonte de repetição inevitável, se opõe à tomada de consciência, com uma resistência que impede a reflexão. A consequência dessa incapacidade de refletir seria que a consciência só vem a perceber o mal em sua existência exterior, quando ele culmina em um ato real, em um fato evidente.
A autora sustenta que a consciência não pode realmente se dar conta da existência interna do mal, de sua presença como núcleo psíquico. Ela só poderia reconhecer sua existência e realidade por uma operação dedutiva que a leva a formular a hipótese do mal, para explicar a angústia moral e o sentimento inconsciente de culpa. Para Zaltzman, o mal, como dimensão constitutiva do psiquismo, não daria lugar a nenhuma representação de coisa, mas, pelo contrário, os efeitos externos do mal originariam a representação de palavra mal, sem que seja possível associá-la à ideia do mal.
Ainda para ela, o mal vem perturbar a íntima relação de causalidade que deve ria existir, segundo a tradição darwiniana, entre ontogênese e filogênese. Esse hiato entre desenvolvimento individual e da espécie tem por consequência que, à capacidade de mudança individual se opõe a persistência, na cena externa do mundo, de fenômenos repetitivos de maldade auto e heteroinflingidas. A seguir, leva os psicanalistas a se questionarem: pode-se acreditar que o progresso do conhecimento iniciado pela psicanálise pode ser dissociado da noção de um progresso moral? Em que se transforma o projeto terapêutico psicanalítico quando ele se depara com o mal e seus efeitos, como dado invariável da constituição humana?
É na sequência desta reflexão que a autora, passando a questionar a noção jurídica de crime contra a humanidade, que aparece em 1945, no processo de Nuremberg, insiste sobre o fato de que essa noção é testemunha de uma consciência moral angustiada. Esta buscaria mais se livrar daquilo que a angustia do que examiná-lo e identificá-lo. Zaltzman não contesta que a criação da noção de crime contra a humanidade participaria de uma intenção civilizadora, de uma vontade de defender a civilização contra tudo o que havia atacado seus fundamentos.10 Mas, ela se pergunta se esse empenho não viria atestar uma falha no trabalho da cultura e, sobretudo, destacar uma incapacidade de admitir o mal, cujo objetivo seria evitar admitir a existência daquilo que o nazismo revelou como sendo uma parte constituinte do ser humano.
Seu questionamento a leva marcar os dois momentos que, segundo ela, foram necessários à constituição dessa nova categoria jurídica. O primeiro se deu na declaração de Saint James, em 1942, em que os aliados decidem que os atos perpetuados pelos nazistas, diferentemente dos atos de guerra ou crimes políticos, não seriam cometidos por nações civilizadas. Por essa declaração as atrocidades nazistas seriam atribuídas a uma nação não civilizada. Numa conclusão apressada, seria considerar que no seio de um dos povos mais civilizados da Europa é que surgiram as condições favoráveis a esses crimes. O segundo momento é o do processo de Nuremberg quando, para estabelecer a noção de crime contra a humanidade, a corte decide opor a categoria de humano à de não humano. Dispondo, desde então, dessa nova categoria pôde-se proceder a uma classificação que permitiria dispor, de modo tranquilizador para o mundo, todos os atos que perturbam a representação ideal que fazem os homens e a humanidade de si mesmos. Mas, só se pode situar tais crimes nessa nova categoria, ignorando que são bem próprios de seres humanos, representantes da totalidade dos homens, que cometeram esses atos.
Zaltzman interpela assim a artimanha pela qual a razão passa a tratar como não humano aquilo que o próprio homem cometeu. Claro que as coisas seriam mais simples e menos perturbadoras para nossa própria representação se pudéssemos nos ater firmemente a uma distinção tal que permitiria tranquilamente opor o humano ao inumano, o civilizado ao não civilizado ou ao mal-civilizado. Mas embora desejemos, as coisas não são simples e o pensamento não pode, sem prejuízo, desconsiderar o que o perturba, o transtorna, lhe causa aborrecimentos, parece mesmo insuportável. Ora, o que o trabalho da cultura teria a considerar é que o nazismo, quer queira quer não, brota por inteiro do registro do humano. É o homem, a espécie humana, a humanidade que abriga em seu interior os agentes das atrocidades nazistas. Estas não podem ser atribuídas a não humanos, a seres banidos da espécie humana.11 Seus atos não os excluíram da humanidade, mas obrigam a considerar que a humanidade é capaz efetivamente de cometer esses atos que desafiam nossa compreensão. Atualmente, ainda resta intacta a questão de saber como o ser humano pôde se fundir em um conjunto unido em torno de um plano organizado e decidir o extermínio maciço de partes da humanidade, declaradas como não pertencentes a esta.
A partir daí, a compreensão humana deve lidar com o fato de que no íntimo do homem existe algo, do qual seus atos são apenas a expressão, algo que o trabalho da cultura não pode evitar se queremos compreender alguma coisa. A necessidade não é só não se esquecer desse fato, mas sim de refletir sobre isso, não apenas para evitar a repetição, o famoso isso nunca mais, mas para tomar consciência do fato de que nada nos assegura de poder evitar a repetição. Somos, de fato, obrigados a considerar que essa coisa talvez seja rebelde a todo processo de civilização e que constitui o núcleo de algo que tende irremediavelmente a se repetir. Talvez seja necessário, de acordo com Zaltzman, questionar se o fato desse acontecimento ter se repetido, fazendo surgir uma forma social que jamais existira antes dos totalitarismos do século 20, não acabou, de fato, abrindo uma via que, por ter sido perpetrada pela primeira vez, tem mais chances de se repetir do que de ser evitada. O campo das possibilidades oferecidas à repetição teria expandido consideravelmente. E deveríamos considerar que as chances de que isso possa se reproduzir, que isso não cessou de se reproduzir, são bem mais viáveis que nossa esperança de que não se reproduza jamais.
Definir a categoria jurídica crime contra a humanidade representaria, ao mesmo tempo, um progresso na civilização e uma operação que permite evitar assumir que o crime está na origem da humanidade, que esta foi edificada sobre o ódio inerente à condição humana. A autora nos propõe não repudiarmos o fato de que a construção da humanidade se fez à custa de uma sucessão de crimes contra os homens, em nome de uma humanidade ideal. O processo civilizatório se constitui como uma recusa em admitir que a humanização da espécie só ocorreu, na óptica freudiana, a partir do assassinato do pai.12
Zaltzman estabelece que a origem do mal esteja, sem dúvida, ligada a esse crime, mas sustenta que a origem psíquica do mal, provavelmente, não seja reduzida apenas a isso. Sustentar esse paradoxo lhe permite manter o que defende desde o início de seu ensaio: a dimensão do mal não poderia ser localizada em nenhuma instância da vida psíquica e, tampouco, seria compreensível apenas segundo a teoria das pulsões. É a isso que se atém, sem contar, entretanto, com a convicção do leitor dedicado que tentei ser.
Antes de encerrar essa apresentação na qual não me propus a ser fiel ao que a autora escreve em seu livro, mas sim, onde tentei participar, através de minhas próprias formulações, de minha compreensão/incompreensão de seu propósito, colocarei precisamente duas questões que espero conseguir formular de maneira inteligível.
A primeira concerne ao hiato que existiria entre o desenvolvimento individual e o da espécie. Terei compreendido bem o pensamento da autora, se adianto que a diferença entre esses dois desenvolvimentos é que cada um é regido por uma temporalidade singular. O desenvolvimento da espécie data de um longo tempo próximo da temporalidade geológica. As mudanças se fazem tão lentamente que o que predomina para o observador externo é uma impressão de imutabilidade, de permanência das formas, é a mesma que parece ocorrer com períodos de longa duração, a ponto de transmitir uma sensação de eternidade. As alterações só raramente se mostram de maneira evidente, manifesta e, desde que surgem, se imobilizam como que diante da eternidade. Já a temporalidade do desenvolvimento individual provém de um curto espaço de tempo, que é o da vida humana, é o tempo em que o indivíduo é convocado a realizar o percurso que o processo da civilização levou séculos para percorrer. Parafraseando Haeckel, a ontogênese não teria somente que recapitular a filogênese, mas ela teria muito mais a fazer neste milésimo de segundo do tempo que a civilização gastou para atingir sua evolução. Ainda que as mudanças não sobrevenham facilmente e sem resistência a nível individual, isto não as torna menos duradouras devido ao fato de ocorrerem com uma frequência mais rápida que na espécie. A autora insiste neste ponto de vista mais de uma vez em seu trabalho.
O trabalho da cultura pode permitir ao indivíduo realizar um progresso na vida psíquica que consiste também em uma modificação, transformação da base hereditária humana, da qual o Isso é portador. Partindo daí, uma das questões que a autora se coloca, e a nós também, é a de refletir sobre quais são as condições e o tempo necessário para que essa modificação individual de base hereditária possa ter como consequência uma modificação da base comum a toda a espécie. Modificação que, por sua vez, se tornaria transmissível de geração em geração. Questão importante, porque é inegável que, individualmente, o progresso na vida psíquica pode levar efetivamente ao fracasso a essência do mal por uma conscientização excessiva de sua obra. Certamente, essa conquista não é definitiva, nem concluída de uma vez por todas, mas desde que advinda, é indestrutível para o indivíduo. Entre o curto espaço de tempo individual e o longo tempo da espécie, existe um período de incubação, um tempo necessário à transição que permitiria que uma expe riência individual pudesse tornar-se o equivalente de uma experiência comum a toda espécie. Esse tempo poderia ser designado, como propôs Eva Weil, como tempo de latência.13 Mas, em seu trabalho sobre a latência, o que busca compreender nossa colega é o tempo que é necessário para uma tragédia histórica ser tomada em consideração pela consciência individual. O tempo de latência que abordo aqui seria o do movimento inverso, o que faz com que um acontecimento psíquico individual possa experimentar sua transferência ao coletivo para tornar-se um constituinte hereditário transmissível a cada membro da espécie. Estou certo de levantar aí uma questão que está longe de ser simples e reconheço que sua formulação é insuficiente, mas que é, entretanto, crucial para refletir sobre nossa atualidade.
A segunda questão não é muito mais simples e é também difícil de formular, mas vou tentar. Retomarei a proposição da autora de que, no social, a regressão não se faz à maneira de uma forma anterior, mas sim, engendra uma neoformação social. Se mencionei que a autora situava no campo do social essa emergência de uma neoformação é porque gostaria de voltar-me àquilo que produz a regressão na vida psíquica individual. Imagino que ela estaria de acordo em que, sobre esse plano também, o retorno ao idêntico é uma tendência, mas uma tendência que não chega a restabelecê-lo. Ocorre uma determinada repetição do mesmo, mas só à custa de certa negligência, que lhe permite ignorar as modificações da forma antiga que norteia a regressão e as variações que, mesmo discretas, são inevitáveis. Se é inegável a existência de um núcleo duro, que resiste à modificação e tende a se repetir de maneira imutável, as camadas que envolvem esse núcleo são susceptíveis de passar por rearranjos. Para sustentar meu ponto de vista, recorrerei à autoridade de Freud. Tentando refletir sobre o que poderia representar o equivalente de uma pulsão de aperfeiçoamento na vida psíquica, Freud considera que o único elemento que se poderia reconhecer como tal equivalente é o que a regressão nos demonstra sobre o processo pulsional. Estabelece que, por natureza, a pulsão é conservadora e visa sempre o retorno a um estado mais primitivo. Acentua ainda em Além do princípio do prazer14 que, no caminho da regressão, a via de retorno direto ao inanimado, ao inorgânico é barrada. É isso que impede a pulsão de se lançar adiante, rumo ao alvo visado.
Acompanhando Zaltzman, não seria de esperar que é a dimensão do mal que barra essa via e se opõe ao restabelecimento ao idêntico das formas anteriormente alcançadas pelo desenvolvimento humano? A essência que habita o mal continuaria, sem descanso, a se manifestar? Não seria o que tenta, enfim, encontrar vida, uma vida estranha, pois dar vida ao mal não seria sinônimo de extinção da vida, ou, pelo menos, de seu comprometimento radical? Mas imagino que a autora só concordará parcialmente com minhas proposições. Elas em o mal em uma filiação muito mais direta com a pulsão de morte, como uma expressão desta - filiação que a autora contesta. Ainda que, talvez, possamos nos conciliar, considerando a perturbação que seu livro me provoca, levanto a hipótese de que a dimensão do mal surge nesse ponto, onde a complexidade que a evolução da vida introduziu no processo de hominização tem como consequência levar esse processo de humanização a se deparar com as consequências do fato de que a via direta de retorno lhe seja barrada. O fracasso da pulsão impôs, desde o início da vida, seu desaparecimento. A impossibilidade de reverter o orgânico ao inorgânico e restabelecer o estado inanimado original não teria por consequência a constituição de um núcleo duro, que se oporia a todo vínculo com a pulsão de vida que emerge do fenômeno que introduziu vida no estado inanimado? Mas, em que aspecto esse núcleo duro não remontaria da ordem pulsional e, se fosse o caso, de que natureza seria a força que anima o espírito do mal? Talvez a autora nos indique uma reposta em seu texto, mas é uma parte desse texto que, se por um lado atraiu minha atenção, por outro, permaneceu obscuro. Parece-me que Zaltzman estabelece que a força do mal nunca é tão grande como quando surgem condições favoráveis a uma formação social fundada na psicologia das massas e se alimentando daquilo que produz a dissolução das psicologias do eu e que há a conjunção dessa formação com o núcleo do mal. Sem dúvida, é seguindo essa trilha que a exploração desenvolvida neste ensaio encontraria novos recursos.
Mas, as diferentes dúvidas levantadas em nada comprometem o vigor deste texto, ao contrário, elas reforçam a impressão de que estamos aqui diante de um livro essencial aos nossos tempos, um livro inquietante, que deve ser lido o quanto antes.
Bibliografia
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Endereço para correspondência:
30 bd de Strasbourg
75010 - Paris - França
E-mail: villa@univ-paris-diderot.fr
RECEBIDO EM: 07/02/2011
APROVADO EM: 12/04/2011
Sobre o Autor
François Villa
Psicanalista. Membro da APF. Chefe de Conferências (HDR) da equipe de acolhimento do Centro de Pesquisas em Psicanálise e Medicina (CRPM) da Escola Doutoral "Pesquisas em Psicanálise", UFR Ciências Humanas Clínicas, Universidade Paris-Diderot, França.
Tradução: Carlos Antônio Andrade Mello
1. PERRIER, N. Histoire critique des institutions psychanalytiques. Topique, 1970;2:55-82.
2. ZALTZMAN, N. Lesprit du mal. Paris : Ed. de l'Olivier, coll. «penser/rêver»; 2007.
3. ZALTZMAN, N. La pulsion anarchiste. Topique, 1979;24:25-64.
4. ZALTZMAN, N. De la guérison psychanalytique. Paris PUF; 1998.
5. BAUDELAIRE, C. (Euvres completes, I. Paris, Gallimard, coll. «Bibliothèque de la Pléiade»; 1975.
6. FREUD, S. Qíuvres completes, Psychanalyse, t. XVIII 1926-1930. Paris: PUF; 1994.
7. CYSSAU, C. ; Villa F. (editors). La nature humaine à Vépneuve de Winnicott. Paris: PUF, coll. «Petite collection de psychanalyse», 2006.
8. FREUD, S. (Euvres completes: t. XI: 1912-1913. Paris: PUF, 1998.
9. GOLDING, W. Sa majesté des mouches. Paris: Gallimard, coll. "Folio", 1983.
10. VILLA F. A propos du «passage à l'acte» ou les «hypocrites de la culture «. In: BOUSTANY, K., DORMOY, D. (eds), Réseau Vitoria, Génocide(s), p.297-323.
11. ANTELME, R. Lespèce humaine. Paris: Gallimard, coll. "Tel", 1978.
12. FREUD, S. Totem et Tabou, Paris: PUF, 1988, Lhomme Moise et la religion monothéiste: trois essais, trad. C. Heim, Paris: Gallimard, 1986.
13. WEIL, E. Silence et latence. Revue Française de Psychanalyse, 2000,64(1):169-179.
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