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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso vol.33 no.62 Belo Horizonte set. 2011

 

A dialética do amor: uma leitura de Destruição, de Carlos Drummond de Andrade

 

The dialectic of love: a reading of Destruction, by Carlos Drummond de Andrade

 

 

Edson Santos de Oliveira

ICírculo Psicanalítico de Minas Gerais
IIUniversidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende fazer uma leitura do soneto Destruição, de Carlos Drummond de Andrade. Partindo de categorias como amor e ódio, pulsão de vida e pulsão de morte, tentaremos mostrar que há uma relação dialética entre esses polos, que são recriados poeticamente pelo escritor mineiro, tanto no plano da macro como da microestrutura do soneto. As camadas fônicas e morfossintáticas do texto mimetizam o movimento de fusão e destruição dos amantes. Nesse movimento, Drummond nos leva a perceber que o amor tem algo de perda e que esta dialoga com a falta e com a pulsão de morte, apontando para a negação (traço fundamental da linguagem) e para a constituição do sujeito.

Palavras-chave: Destruição, Drummond, Pulsão, Amor, Ódio.


Abstract

The present article aims at presenting a reading of the Carlos Drummond de Andrade’s sonet Destruição. Starting from the categories of love and hatred, drive of life and drive of death, this work will show that there is a dialectic relationship among these poles, which are poetically recreated by the mineiro writer, both in the macro and micro structure plans of the sonet. The phonic and morphosyntactic layers of the text mimic the fusion and destruction movement of the lovers. In this movement, Drummond leads us to the understanding that love has some kind of loss, which dialogs with the lack and the drive of death, pointing to the denial, a fundamental language trace.

Keywords: Destruction, Drummond , Drive, Love, Hatred.


 

 

O soneto a ser lido traz como título – Destruição – uma palavra que, à primeira vista, parece não ter ligação com o sentimento amoroso. Trata-se de um poema que pertence a Lição de Coisas, publicado em 1962. Nessa obra, Drummond quer construir o texto poético como “objeto de palavras”, explorando elementos como o aspecto visual, a fragmentação sintática, montando e desmontando vocábulos, tentando produzir uma linguagem subtrativa, enfim, criando uma poética que, no entender de Haroldo de Campos, valoriza mais a palavra e o espaço em branco do que o verso (CAMPOS, 1970, p.43), o que confirmaria as propostas do Plano Piloto para Poesia Concreta, assinado pelos irmãos Campos e Décio Pignatari (CAMPOS, Augusto et allii, 1965).

Indo na contramão do programa estético criado por Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos, o poema Destruição não traz uma fragmentação da forma no plano visual. Drummond opta por uma espécie literária, o soneto, fartamente utilizado pela tradição literária desde a poesia lírica de Camões, com o seu conhecido “Amor é fogo que arde sem se ver”, até poetas do Modernismo brasileiro como Vinícius de Moraes e outros. Leiamos o poema.

Destruição
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se veem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

No notável poema de Camões, do qual foi retirado o primeiro verso destacado anteriormente, o poeta português é pródigo no uso de paradoxos, recurso utilizado por vários artistas da palavra para definir sentimentos enigmáticos como o amor. Drummond, ao optar pelo soneto e ao explorar elementos paradoxais nesse poema, está, pois, sintonizado com uma tradição literária portuguesa que vem de longe, passando por Camões, vários outros poetas e chegando a Fernando Pessoa, com seus famosos oxímoros1. No entanto, o poeta mineiro traz uma inovação ao mostrar um outro ângulo do amor, a destruição. Como veremos, o processo de construção desse soneto (ritmo, métrica, uso do verso branco, presença do enjambements2, pausas, marcações fônicas ou morfossintáticas, além de outros recursos) acompanha, no plano da linguagem, a integração e desintegração dos amantes no ato amoroso. Assim, a camada significante do texto drummondiano é plasmada num movimento de sístole e diástole, fazendo eco ao tema do soneto, a saber, a tensão entre amor e morte. Pode-se dizer que, juntamente com a camada fônica e morfológica, o estrato sintático do poema segue esse movimento de oscilações entre versos curtos, fechados e longos. Sintaticamente, o processo de subordinação se manifesta principalmente na frequência de enjambements, como veremos posteriormente.

No poema de Drummond, o amor é tematizado em uma espécie literária que tende ao “racional”, o soneto, que apresenta certa coerência na apresentação do assunto: a primeira estrofe funcionando como uma introdução, a segunda e a terceira correspondendo ao desenvolvimento e a última, como conclusão, arrematando o texto. Essa espécie foi muito cara à poesia clássica, que tinha como programa estético conciliar emoção com razão. De outro lado, vamos perceber que a “racionalidade”, inerente a esse processo de construção equilibrado que caracteriza o soneto, recebe um toque de corrosão3 por parte do poeta mineiro na medida em que o amor, companheiro inseparável da emoção, é enfocado como sentimento de destruição. É exatamente aí que está a riqueza do poema.

Com relação ainda à opção pelo soneto em Lição de Coisas, convém assinalar que não se trata de uma “esporádica recaída” do poeta itabirano no modelo clássico, como afirma Haroldo de Campos (CAMPOS, 1970, p.43)4. Essa “recaída” a que o crítico paulista se refere não deve ser entendida como um defeito. Pelo contrário, insistimos, a construção do soneto (uma espécie literária que tende a uma construção racional), conjugada com a temática da destruição, no sentimento amoroso, enriquece esse poema drummondiano ao mostrar de modo magistral a tensão entre amor e ódio que perpassa por todos os quatorze versos do texto.

O jogo de oposições explorado por Drummond não se prende à relação de palavras de sentido contrário. A macroestrutura do poema – construído em forma de soneto, sugerindo a imagem de uma construção poética equilibrada e proporcional – é dissolvida na microestrutura pelo enfoque do sentimento amoroso ligado ao campo semântico de destruição através de vocábulos que apontam para a negatividade, tais como “fantasma”, “nada”, “ninguém”, e de outros recursos fônicos e morfossintáticos, como será demonstrado ao longo desta leitura. Releiamos o poema.

Estamos diante de um soneto construído em versos decassílabos brancos. Se se trata de amor, por que o vocábulo “destruição” no título do poema? Se à primeira vista o amor tende à construção, o que leva o poeta de Itabira a vê-lo pelo ângulo da destruição? Percebe-se assim que elementos dialéticos, na camada do significante e do significado, vão percorrer todo o soneto através do processo de integração e desintegração.

No primeiro verso do poema (“Os amantes se amam cruelmente”), o advérbio “cruelmente” dialoga com o título, apontando o amor como um sentimento destruidor. Por outro lado, há uma imagem de reciprocidade desse sentimento, sugerida pelo pronome “se”, que antecipa as formas verbais “amam” e “amarem”, essa última no segundo verso (“e com se amarem tanto não se veem” – grifo nosso). Juntamente com a imagem da reciprocidade, encontramos no segundo verso outro pronome “se”, antecipando a forma verbal “veem”, acenando para o narcisismo. Em outros termos, a intensidade do amor, marcada pelo advérbio “tanto”, é diretamente proporcional à cegueira desse mesmo sentimento: “não se veem”. Os dois amantes, centrados no ato de amar, isolam-se do mundo em sua autocontemplação. Dois tentando em vão formar o um, magistralmente caracterizado pela presença do singular no adjetivo “refletido”, no terceiro verso da primeira estrofe: “Um se beija no outro, refletido” (Grifo nosso).

Essa imagem de fusão em que o um é o outro, conotada pelo vocábulo “refletido”, nos remete ao mito de Narciso. De tanto amar e olhar sua imagem nas águas, o personagem da mitologia acaba mergulhando na morte. Os amantes do poema, cegos pelo amor, perdem a visão e, como Narciso, de tanto se verem acabam se destruindo. Por outro lado, o reflexo no ato de olhar/amar aponta também para o duplo: na intensidade do amor e da contemplação mútua, os amantes são um outro e um mesmo. Todo reflexo remete a uma identidade confirmada e a uma identidade roubada (GENETTE, 1996, p.24). Os amantes se refletem e se confirmam no reflexo; no entanto, como veremos, essa identidade é também neutralizada à medida que avança o poema. Observemos, no plano morfológico, como algumas imagens do soneto reafirmam o jogo de roubo e confirmação de identidade. Enquanto vocábulos como “amantes”, “meninos” e “mundo” confirmam a integração amorosa, palavras como “inimigos”, “cruelmente” e “nada” rompem com essa tendência à completude.

A palavra “inimigos” do último verso da primeira estrofe (“Dois amantes que são? Dois inimigos.”) retoma a imagem do amor como crueldade, presente no primeiro verso do soneto – “Os amantes se amam cruelmente”. A primeira estrofe se fecha com a imagem do amor como inimizade, dando sequência, na segunda, a uma intensidade do processo amoroso que se constrói-desconstruindo, presente na metáfora “meninos estragados” (“Amantes são meninos estragados”), ampliada no paradoxo do terceiro verso (“quanto se pulverizam no enlaçar-se”) e na antítese sugerida pelos vocábulos “mundo” e “nada” do quarto verso: “e como o que era mundo volve a nada”.

Ainda na segunda estrofe, a aliteração, presente na repetição do fonema /m/, no primeiro e segundo verso – “Amantes são meninos estragados/ pelo mimo de amar e não percebem” –, reflete, na camada fônica, a imagem da fusão narcísica dos amantes, como se pode constatar na primeira estrofe. Assim, o beijo apaixonado dos amantes é mimetizado pelo fonema /m/, conjunção bilabial (acenando para o movimento dos lábios no beijo), ampliando a imagem da união tão intensa dos namorados, que não percebem o processo de pulverização a que chegam, pulverização que também, fonicamente, se insinua no encontro consonantal tr, no fonema velar sonoro /g/ (guê) do vocábulo “estragados”, na vogal /u/, prolongada pela consoante líquida L da forma verbal pulverizam, juntamente com a consoante labiodental sonora /v/ e a vibrante /r/ da mesma palavra. Como podemos notar, a fusão e a destruição amorosa são projetadas não só no plano morfossintático, mas também na camada fonológica do poema.

A desintegração do amor se acentua na terceira estrofe através de vocábulos como “nada” e “ninguém”, seguidos da palavra “fantasma”, como se pode notar na gradação já apontada no primeiro verso: “Nada, ninguém. Amor, puro fantasma”. Vale ressaltar que a destruição do amor já é anunciada na estrofe anterior com a presença da anadiplose5, através da palavra “nada”, no final da segunda estrofe juntamente com o seu retorno no começo da terceira.

O vocábulo “fantasma” é ambíguo, sugerindo não apenas algo irreal, mas também a fantasia criada pelos amantes no ato amoroso, insinuado no vocábulo “cobra” (que evoca não só a sexualidade, mas também a imagem da serpente tentadora do paraíso) e novamente dissolvido na expressão “lembrança de seu trilho”. Como a fantasia que sempre retorna, o desejo também volta pela lembrança, numa circularidade paradoxal, na eterna satisfação que nunca se satisfaz.

Se observarmos atentamente a pontuação do poema, poderemos perceber que ela dá as coordenadas do ritmo de avanço e recuo dos namorados no ato amoroso. Na primeira estrofe, o narcisismo dos amantes, cegos diante do amor, começa a esboçar-se com ênfase na imagem da paixão, acrescida de um toque de agressividade, presente nas palavras “cruelmente” e “inimigos”: “Os amantes se amam cruelmente/ e com se amarem tanto não se veem.” A cegueira e o isolamento narcísico dos apaixonados são sintaticamente marcados pelos três pontos finais dessa primeira estrofe. Em outros termos, os versos se fecham sintaticamente da mesma forma que os amantes se isolam no amor, alheios ao olhar de quem quer que seja.

O amor dos amantes tem um ritmo intensificado na segunda estrofe, com apenas um ponto final. Na verdade, esse ritmo já começa a se encorpar nos dois primeiros versos da primeira estrofe, através da repetição das formas verbais “amam/amarem”, da presença da aditiva “e”, juntamente com o ponto, que surge apenas no final do segundo verso: “Os amantes se amam cruelmente/e com se amarem tanto não se veem.” O primeiro verso da segunda estrofe se apoia abruptamente no inicio do segundo através do enjambement ou cavalgamento (“Amantes são meninos estragados/pelo mimo de amar: e não percebem”). Entre o final do segundo e o início do terceiro verso, há novo “cavalgamento”: “e não percebem/quanto se pulverizam no enlaçar-se”. A fusão dos namorados, sugerida pelo cavalgamento, juntamente com a fusão de classes gramaticais, presente no verbo substantivado “enlaçar-se”, novamente são desconstruídas pela expressão “volve a nada”. A forma verbal “volve” aponta para a circularidade do desejo, sempre se unindo e se dissociando, lembrando o eterno embate entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. Assim, a intensidade do amor, tecida pela pontuação agalopante nos três primeiros versos da segunda estrofe, recebe uma leve pausa na vírgula do terceiro verso (“Quanto se pulverizam no enlaçar-se”) anunciando que o amor caminha para o nada e para a morte: “e como o que era mundo volve a nada”. Os vocábulos “mundo” e “nada” desse quarto verso da segunda estrofe retomam a metáfora do primeiro, da mesma estrofe (“Amantes são meninos estragados) através do substantivo “meninos”, que conota juventude, vigor, vida e do adjetivo “estragados”, que acena para a pulverização e para a morte.

Na metade do primeiro verso da terceira estrofe (“Nada, ninguém ...)”, o amor dos amantes tende a um ritmo lento. No entanto, na segunda metade desse mesmo primeiro verso (“Amor, puro fantasma...)”, o ritmo acelerado do amor, via pontuação, renasce e continua em toda a estrofe, mas é corroído pelo plano da fantasia e da lembrança. Os versos da terceira estrofe são cortados pela presença de três vírgulas e dois pontos finais, preparando já a serenidade do ato amoroso, que persiste na quarta estrofe, também marcada por cortes na pontuação. Todavia, a tensão entre amor e morte não se resolve no final do poema.

Na última estrofe, o ritmo diminui ainda mais, sendo acentuado pela imagem da falta, presente no adjetivo “mordidos”, que por sua vez resgata a imagem dos amantes como inimigos, anunciada no quarto verso da primeira estrofe “Dois amantes que são? Dois inimigos.” Formas verbais como “quedam” “doer” “deixaram de existir” trazem ainda uma conotação do amor como uma espécie de pequena morte. No entanto, essa expressão é neutralizada pela conjunção adversativa “mas”, marcando o contraste da morte, a vida, novamente reativada no uso do cavalgamento entre o final do penúltimo e último verso (“... mas o existido/continua a doer eternamente”). A forma verbal “continua” da expressão “continua a doer” remete à persistência do amor, lembrando-nos a pulsão de vida, fundida à pulsão de morte, conotada pelo vocábulo “doer”. O último vocábulo do soneto, o advérbio “eternamente”, arremata de modo magistral o poema, enfatizando a dialética do desejo na existência humana: um eterno círculo de enlace e desenlace.

Com relação à dinâmica pulsão de vida e pulsão de morte, seria interessante fazer aqui ligeiras reflexões. Se por um lado, segundo Freud, as pulsões de vida (constituídas de pulsões sexuais e pulsões de autoconservação) caminham no sentido da aglutinação, diríamos, da construção, por outro lado a pulsão destrutiva se dirige à desintegração. Essas duas pulsões, todavia, trabalham dialeticamente num processo de fusão e separação. Drummond vai assim ilustrando brilhantemente nesse soneto a dialética do amor ao descrever os amantes se amando e ao mesmo tempo se destruindo. Essa destruição amorosa pode ser vista em dois aspectos. Por um lado, a pulsão de morte, sendo desintegradora, acena para o que não se escreve no amor. Em outros termos, o enigma do amar não pode ser representado pela palavra e exatamente por isso deságua na morte. Por outro lado, a pulsão de morte não deve ser enfocada como mera destruição. Não nos esqueçamos de que ela é a pulsão por excelência.

Em Pulsão e seus destinos, Freud mostra que um dos destinos dela é a “reversão ao seu oposto”. O amor pode assim virar ódio, uma vez que existe uma transformação da atividade em passividade. Freud foi mais longe ainda ao mostrar que o ódio antecede o amor e é constitutivo do sujeito:

Não se pode negar que o odiar, originalmente, caracterizou a relação entre o eu e o mundo externo alheio com os estímulos que introduz.(...) Logo no começo, ao que parece, o mundo externo, os objetos e o que é odiado são idênticos” (FREUD, 1980, v.XIV, p.158).

A partir dessas reflexões, pode-se deduzir que há sempre uma deficiência no Outro ao “completar” a demanda que o sujeito lhe propõe. O amor, não completando a falta que está no sujeito, possibilita a emergência da destruição.

Flanzer, em seu artigo Sobre o ódio, retomando Freud e Lacan, afirma que o desejo se compõe de algo destrutivo. Ele surge de uma defasagem do sujeito em relação ao Outro e isso é estrutural (FLANZER, 2006, p.220). No Seminário 20, Lacan afirma que o verdadeiro amor tem uma estreita relação com o ódio: “É aí que a análise nos incita a esse lembrete de que não se conhece nenhum amor sem ódio” (LACAN, 1985, p.122), criando o vocábulo “amódio”, que ressalta a importância da pulsão de morte na constituição do amor.

O poema inteiro de Drummond caminha nesse jogo dialético do amor e do ódio. Na primeira estrofe, o narcisismo dos amantes solicita a ilusória fusão do um, tendendo à integração, mas a crueldade dissolve essa união. A pulverização e o entrelaçamento dos apaixonados continuam na segunda estrofe, mas recebe um arrefecimento na terceira, finalizando, na quarta, com a fusão entre os opostos: “...mas o existido continua a doer eternamente”.

Dessa forma, a macroestrutura do soneto já é dialética: as duas estrofes do centro (segunda e terceira) mostram os amantes num ritmo intenso de fusão amorosa e as duas estrofes da extremidade (primeira e quarta) tendem a um ritmo menor. Prova disso é que os enjambements são mais frequentes nas estrofes do centro, a segunda e a terceira.

No plano da microestrutura, como já apontamos, o jogo dialético do amor é também acentuado, sendo marcado por pares antitéticos (amigos/inimigos, carinho/crueldade, amor /morte) e oxímoros. O ritmo se acentua com os cavalgamentos e as pausas, numa eterna construção/destruição, fazendo eco à integração e desintegração amorosa. Assim, esses dois opostos que se fundem, na estrutura do soneto, parecem nos ensinar que no amor há perdas e ganhos, presença e falta, vazios e ilusórias completudes.

O poema Destruição, como já afirmamos no início, pertence a Lição de coisas. A palavra “lição” nos leva a pensar no ato de aprender e de ensinar. O vocábulo “coisa” poderia aqui ser substituído pela palavra real, no sentido lacaniano. O poeta itabirano nos mostra, através deste soneto, que as coisas nos ensinam. Elas são opacas como o Outro. A lição a aprender é que podemos olhar para elas sem as certezas da racionalidade. O soneto de Drummond rompe assim com o lugar comum que se tem do amor, mostrando-nos que amar é também perder: “E eles quedam mordidos para sempre”.

Essa dialética de amor e morte está presente não só neste poema, mas em outros textos de Drummond. Sant’Anna afirma que a temática amorosa drummondiana é marcada por antíteses, voltadas para dualismos como construção/destruição, ganho-perda, instante-eternidade. Segundo o crítico mineiro, a vida é mostrada “como um gesto de amor diante do tempo destruidor” em que Eros luta contra Tânatos (SANT’ANNA, 1977, p.139). Assim, é possível perceber essa dialética amorosa em outros poemas do poeta de Itabira, como no conhecido Campo de Flores (“Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso/e talhado em penumbra sou e não sou mas sou”)(ANDRADE, 2002, p.18) e em alguns outros. Dessa forma, o amor, se apresentando através do processo de construção e destruição, é uma tônica na poesia de Drummond. Se por um lado esse sentimento é marcado pela instabilidade, como o tempo que também é destruidor, por outro, o poeta o vê como fonte de vida, mas num constante estar a morrer. E no amor do “... existido que continua a doer eternamente” humildemente aprendemos essa lição de coisas. Affonso Romano, no entanto, enfoca a destruição amorosa através da categoria do tempo, mas é possível entendê-la em outro ângulo.

Merquior ressalta em Lição de Coisas a importância da linguagem. Ele afirma que nessa obra o tema da natureza fugidia das palavras, já presente em poemas anteriores como “O lutador” e “Procura de poesia”, volta ao primeiro plano (MERQUIOR, 1972, p.202 – grifo nosso).

Ao enfocar o amor como algo fugidio, que dialoga com a morte, Drummond nos aponta para um projeto bem mais amplo de sua poesia. Desse modo, o lirismo filosófico de Lição de Coisas traz, na dialética amorosa, um problema maior, sintonizado com a natureza da linguagem que, juntamente com o desejo, tem na negação a sua marca: as palavras, como o amor, são fugidias, constroem e destroem sentidos. A falta está tanto na palavra quanto no amor. É impossível formar um, como afirma Lacan:

O gozo – o gozo do corpo do Outro – resta, ele, uma questão, porque a resposta que ele pode constituir não é necessária. Isto vai mesmo mais longe. Não é nem mesmo uma resposta suficiente, porque o amor demanda o amor. Ele não deixa de demandá-lo. Ele o demanda... mais...ainda. Mais, ainda, é o nome próprio dessa falha de onde, no Outro, parte a demanda do amor” (LACAN, 1985, p.12-13).

Eis a lição de coisas do poeta itabirano que poderia ser assinada por Lacan: “Amar é dar o que não se tem”. Da mesma forma, fazer poesia, para Drummond, é bordejar e recriar “o que não cessa de não se inscrever.”

 

Bibliografia

ANDRADE, Carlos Drummond de. Lição de Coisas. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. A paixão medida. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.         [ Links ]

ANDRADE, Carlos Drummond de. Campo de Flores. In: Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 2002.         [ Links ]

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem: ensaios de teoria e crítica Literária. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1970.         [ Links ]

CAMPOS, Augusto et allii. Plano Piloto para poesia concreta. Teoria da poesia concreta. São Paulo: Invenção, 1965.         [ Links ]

FREUD, S. Pulsão e seus destinos (1915). In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XIV.         [ Links ]

FLANZER, Sandra Niskier. Sobre o ódio. In Interações, v.XII, n.22, p.215-229, jul.-dez./2006.         [ Links ]

GENETTE, Gérard. Figuras. São Paulo: Perspectiva, 1966.         [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972/3). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.         [ Links ]

MERQUIOR, José Guilherme. Verso e universo em Drummond. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.         [ Links ]

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: análise da obra. Rio de Janeiro: Documentário, 1977.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Hum, 15/201 – Nova Pampulha
33937-280 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: edson-so@uol.com.br

RECEBIDO EM: 04/04/2011
APROVADO EM: 14/07/2011

 

 

Sobre o Autor

Edson Santos de Oliveira
Doutor em Letras – Estudos literários – pela UFMG. Pós-Doutor em Linguística pela UNICAMP/IEL. Professor do Centro Pedagógico da UFMG (Coltec). Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

 

 

1Oxímoro: Figura que consiste na reunião de palavras aparentemente contraditórias.
2 Enjambements ou cavalgamento: Processo que consiste em colocar no verso seguinte uma ou mais palavras que completam o sentido do verso anterior.
3 Essa ideia de corrosão foi proposta por Luiz Costa Lima ao estudar a obra de Drummond. (LIMA, Luiz Costa. “O princípio-Corrosão em Carlos Drummond de Andrade”. In: Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. 2. ed. Rio de Janeiro:Topbooks, 1995, p. 174.) Esse princípio de corrosão, em nosso entender, parece ter relação com a ironia na medida em que Drummond cria em seus versos um distanciamento em relação ao que escreve. No soneto em questão, não há essa ironia, mas a corrosão pode ser percebida, de modo mais amplo, na apresentação do amor num processo de construção/destruição. Assim, no plano da macroestrutura, a construção do soneto tende à racionalidade e, no plano do conteúdo, a apresentação do amor como fusão dos amante é corroída pelo tema do amor como sentimento de destruição.
4 A expressão “recaída no soneto” está no seguinte trecho: “(...) Várias coisas não contam e podem ser descartadas: certa poesia comemorativa e/ou memorial (inclusive uma esporádica recaída no soneto); certos poemas “padrescos” que se salvam pelo fio fino do humor; alguma insistência no “discurso maior”. Mas o que conta, além de numeroso, é, principalmente, fundamental. In. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem: ensaios de teoria e crítica Literária. Petrópolis/Rio: Vozes, 1970. (Grifo nosso).
5 Anadiplose: Repetição de palavra(s) do fim de um período, oração ou verso no princípio do período, oração ou verso seguinte.