SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.34 número63Delicadezas do Eu: fundamentos da vulnerabilidade índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Compartir


Reverso

versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso vol.34 no.63 Belo Horizonte jun. 2012

 

Inconsciente e clínica psicanalítica contemporânea

 

Unconscious and contemporary psychoanalytic clinic

 

 

Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo busca responder, através de vinhetas clínicas, a estas três questões: 1. A inserção da Psicanálise na sociedade e na cultura pode constituir um obstáculo ao progresso de uma análise? 2. Esta mesma inserção pode produzir efeitos na sociedade independentes da análise pessoal? 3. O sujeito contemporâneo pode vir a tornar-se refratário à instauração inconsciente do conceito psicanalítico fundamental, o complexo de Édipo?

Palavras-chave: Sexualidade, Inconsciente, Édipo, Sonhos, Clínica psicanalítica, Contemporaneidade.


Abstract

This paper tries to answer, through clinical vignettes, to the following three questions: 1. Can insertion of the Psychoanalysis in society and culture may be an obstacle to the progress of an analysis? 2. Can this same insertion may cause effects in society regardless a personal analysis? 3. Could the contemporary subject be insensitive to unconscious installation of the fundamental psychoanalytic concept, the Oedipus complex?

Keywords: Sexuality, Unconscious, Oedipus, Dreams, Psychoanalytic clinic, Contemporaneity.


 

 

Introdução

O saber psicanalítico se alicerça em um tripé: a convicção da realidade do inconsciente adquirida na análise pessoal, a teoria e a clínica. Teoria e clínica alimentam-se uma da outra, num processo dinâmico e contínuo, que consolida a prática psicanalítica. Estudar a Psicanálise na contemporaneidade e as apresentações do inconsciente na clínica e na sociedade demanda uma estratégia particular, que privilegia a observação clínica na construção da teoria. Com este enfoque, busca-se aqui responder, através de vinhetas clínicas, a estas três questões: 1. A inserção da Psicanálise na sociedade e na cultura pode constituir um obstáculo ao progresso de uma análise? 2. Esta mesma inserção pode produzir efeitos na sociedade independentes da análise pessoal? 3. O sujeito contemporâneo pode vir a tornar-se refratário à instauração inconsciente do conceito psicanalítico fundamental, o complexo de Édipo?

Questão 1: A inserção da Psicanálise na sociedade e na cultura pode constituir um obstáculo ao progresso de uma análise? Sim!

 

Fragmento de percurso analítico

B, 29 anos, graduada em curso superior, desempregada, solteira. Foi encaminhada por uma analista, com quem esteve em tratamento durante quatro anos, interrompido há seis meses. Homossexual, ao retornar foi-lhe sugerido reiniciar o tratamento com um analista, que a recebeu com a referência prévia de “paciente difícil”. Viveu em fazenda na infância, onde os pais e os irmãos ainda moram. Foi a única da família a deixar o meio rural e a graduar-se em curso superior. Há quatro meses em análise, B recusa-se a deitar-se no divã, embora tenha lá trabalhado com a analista. Neurótica obsessiva, meticulosa e afeita a ruminações, já passou por vários psiquiatras e usou medicamentos diversos. B mora sozinha e não tem parceira sexual há vários anos, embora se masturbe diariamente assistindo “vídeos pornô”. Usa sistematicamente jargões psicanalíticos, extraídos de livros especializados que já leu, colocando-os a serviço da resistência à sua análise: “ele é perverso... ela é histérica e fálica... as marcas inconscientes são eternas... meu superego é muito rigoroso comigo...” Desdenha o tratamento e diz que “psicanálise não resolve porra nenhuma”, ao que o analista indaga: “e quem pode resolver?” É assídua e pontual às suas duas sessões semanais de análise.

Questão 2: A inserção da Psicanálise na sociedade e na cultura pode produzir efeitos sociais independentes da análise pessoal? Sim!

 

Fragmento de percurso analítico

N, 60 anos, dona de casa, educação fundamental, viúva, três filhos, um deles falecido. Procurou tratamento analítico há quatro anos, devido a quadro depressivo iniciado após perder o filho caçula, assassinado por engano. Seu pai abandonou sua mãe com cinco crianças. A mãe foi internada logo depois em hospital psiquiátrico, onde permaneceu até a morte. N e duas irmãs foram criadas em orfanato até a adolescência. Ela cuidou do marido com doença de Alzheimer por vários anos, até sua morte. Embora inteligente e muito sensível, cursou apenas o curso primário e se expressa com frequentes erros de português. Certo dia, ela vai à casa do filho mais velho e vê a irmã de sua nora tentar convencer sua neta de três anos a tomar banho. A criança chora muito e a tia a ameaça: “Olha que eu chamo sua mãe”. A mãe ouve o choro da criança, pega-a violentamente pelo braço e diz: “Vai tomar banho sua fedorenta”. Reservadamente, N pergunta à nora após o episódio: “Você já ouviu falar em TOC? Se você continuar a chamar sua filha de fedorenta, não vai ter banho que faça minha neta se sentir limpa quando ela crescer”. Difícil imaginar intervenção psicanalítica mais precisa e eficaz!

Questão 3: O sujeito contemporâneo pode vir a tornar-se refratário à instauração inconsciente do conceito psicanalítico fundamental, o complexo de Édipo? Talvez.

Na tentativa de responder a esta complexa questão, recorro a três casos clínicos, publicados anteriormente (COUTINHO, 2011), que apontam claramente para a resposta negativa a ela, já que nestes relatos contemporâneos o conteúdo edípico é incontestável.

O conceito fundamental do complexo edipiano é o interdito ao desejo incestuoso inconsciente. A posição final do sujeito diante do interdito, completada a travessia do drama edípico, definirá o destino de sua sexualidade. O sonho revela de forma clara esta posição. Através dessas três vinhetas clínicas reitera-se o papel central da interpretação de sonhos no curso de uma análise e mostram-se exemplos das inesgotáveis formas pelas quais o interdito, pivô dos diversos destinos da sexualidade, pode se manifestar através da "via régia do inconsciente".

É necessária, entretanto, uma advertência técnica preliminar. A interpretação dos sonhos pode ser entendida como o processo criativo do analista, que nasce da interação de seu inconsciente e de sua formação teórica com os conteúdos manifestos e latentes a ele trazidos pelo discurso onírico relatado pelo analisando. Ela não é, necessariamente, comunicada como tal ao paciente, a exemplo de como Freud costumava proceder em suas análises, cabendo a cada analista, de acordo com a orientação técnica que norteia sua formação, a decisão de fazê-lo ou não. Esta comunicação pode, estrategicamente, ser feita de forma indireta pelo analista, submetendo ao paciente as construções clínicas emanadas da interpretação do sonho e averiguando, a posteriori, a pertinência de suas hipóteses. A forma pela qual cada analista faz isto define seu estilo pessoal de trabalho.

 

Caso 1: Dois carros, uma garagem

1. Fragmento do percurso analítico

R, sexo masculino, 45 anos, operador de telemarketing, estudou até o curso médio, casado com profissional da área PSI há dezoito anos, com quem teve três filhos.

R acumulou dívidas, após falência de sua oficina mecânica há três anos. Preso por três dias há um mês, por desafiar a Justiça e tentar vender equipamentos da empresa penhorados; foi libertado por fiança paga pelo cunhado. Deseja tratar a “insegurança” que sempre sentiu, que atribui à relação conflituosa com o pai, morto atropelado há três anos. O pai era agressivo, violento e o humilhava: “Burro, você não tem nem merda pra cagar.” O pai tinha várias amantes e levava o menino aos encontros, mas era ciumento com a esposa e certa vez perguntou: “Já imaginou outro caralho na buceta da sua mãe?”. “Levei o maior susto e tremi por dentro.” Diz que o pai “sempre o invejou” e desejava todas as suas namoradas, inclusive sua própria esposa, que aparece em um de seus sonhos tendo prazer sexual com o pai. Suspeita de que o pai tenha abusado sexualmente de sua irmã na infância. R apresenta dificuldade sexual com a esposa, mas tem “sexo ótimo” com a amante que tem há dois anos. Queixou-se de que eu devia “bater mais forte” durante a análise, que abandonou após um ano por querer cursar MBA e alegando “não poder pagar” por ela.

2. O sonho: “Dois carros, uma garagem”

“Cheguei de carro muito tarde da noite à casa de minha mãe. Na garagem cabem dois carros, mas não pude colocar o meu, porque o de meu pai já estava lá e não deixava o meu entrar. O meu carro fica de fora na rua. Fiquei com medo de meu pai pensar que eu era ladrão e me dar um tiro, por isso me escondi atrás do portão e fiz barulho com a garganta para ele me ver.”

3. Interpretação do sonho e direção do tratamento

É bastante conhecido o simbolismo fálico associado ao automóvel, amplamente explorado pela indústria do setor. Veículos grandes e com a parte dianteira mais longa são invariavelmente mais caros e associados, nas sociedades capitalistas e culturalmente machistas, aos homens dominantes e mais poderosos. A potência do motor do veículo é, através da propaganda, subliminarmente tomada como referência à performance sexual do comprador. Apelo à conotação fálica implícita ao automóvel que é frequentemente feita, nos comerciais de televisão e nas fotos de revistas, associando o carro a belas mulheres.

Exemplo primoroso da associação simbólica entre automóvel e pênis aparece no belíssimo filme ítalo-francês de 1960 “Il Bell'Antonio”, dirigido por Mauro Bolognini, baseado no romance de Vitaliano Brancati e magistralmente interpretado por Marcello Mastroianni. As mulheres se apaixonam pelo belo e vistoso Antonio, porque imaginam que ele seja o "amante ideal", mas na realidade ele é sexualmente impotente. Ele casa-se com Bárbara, uma jovem muito rica, que só descobre a verdade sobre Antonio depois do casamento. Numa sequência do filme, Antonio está diante de uma alameda em frente à mansão de Bárbara, ladeada por árvores cujas copas se juntam formando um túnel. Ele vai e volta repetidamente com seu belo carro esporte – simbolicamente seu pênis – ao longo desse túnel – representação da vagina de Bárbara –, culminando com um orgasmo.

Simbolismo onírico similar pode ser identificado no sonho de R, onde o carro é investido de valor significante de falo e pênis, tanto dele como de seu pai. A garagem é referência significante à vagina da mãe. O desejo incestuoso é claramente manifesto no sonho de R através de sua intenção de colocar seu carro na garagem, não realizada, pois o carro do pai já estava lá, fazendo com que o dele fique de fora. O conteúdo manifesto do sonho revela de forma cristalina o conflito edipiano não resolvido de R e equipara seu pai ao “pai terrível” da horda primeva, imaginado e descrito por Freud em Totem e Tabu (FREUD, 1913): o pai que tem posse de todas as mulheres – inclusive a de R, como explicita seu outro sonho – e que defende com agressividade seu direito de exclusividade sobre elas. O interdito surge claramente no sonho através da ameaça de R ser morto pelo pai, por seu desejo incestuoso inconsciente pela mãe.

A história clínica marcada por dívidas recorrentes, que inclusive levaram R à prisão, confrontada com o denso conteúdo edipiano de seus sonhos, permitiu definir a direção de seu tratamento e apontar o enodamento entre castração, culpa e dívida como o cerne de seu conflito psíquico, tal como Contardo Calligaris tão precisamente definiu: culpa inconsciente pelo desejo incestuoso, dívida simbólica por não ter sido castrado (CALLIGARIS, 1993). Ao abandonar a análise afirmando “não poder pagar” por ela, R perde a única oportunidade de pagar simbolicamente esta dívida, ficando condenado a tornar-se um eterno devedor ao longo de sua vida.

 

Caso 2: Pub de Paris

1. Fragmento do percurso analítico

S, sexo masculino, 26 anos, com curso superior, funcionário público, solteiro.

Procurou tratamento analítico devido ao relacionamento conflituoso com os pais, que se separaram quando S tinha dez anos. O irmão sofre de séria doença psiquiátrica. A mãe, apesar de alcoólatra e com tendências suicidas durante os recorrentes episódios depressivos, era profissional de nível superior competente. O pai, profissional de nível superior, se casou duas vezes após a separação e não teve mais filhos, o que S considera uma prova de que ele sempre se preocupou mais com suas mulheres do que com eles. S refere-se ao “inferno” que ele e o irmão viveram por toda infância com a instabilidade emocional da mãe, que incluiu várias ameaças de suicídio após as brigas dos pais, antes e após se separarem. S sofreu de enurese noturna até os dez anos. Sofreu abuso sexual do próprio padrinho aos onze anos, o que o fez duvidar de sua heterossexualidade até iniciar a análise, durante a qual descreveu episódios recorrentes de dificuldade sexual. Ele e o irmão moravam alternadamente com a mãe ou com o pai e a madrasta, devido à grave instabilidade materna. S acusa o pai de ser “frouxo” e omisso por ter deixado os filhos à mercê da mãe doente e por não ter assumido sua guarda. Ele nunca se sentiu “em casa” morando com o pai. A mãe morreu durante a análise, enquanto S morava com o pai e se recusava a visitá-la. S instalou em seguida quadro depressivo, necessitando medicação. S e o irmão passaram a morar juntos desde então.

2. O sonho: “Pub de Paris”

Para S, em sua melhor foto sua mãe está admirando a torre Eiffel. Durante uma viagem à Itália, S teve este sonho: “Eu estava em um bar em Paris, a cidade predileta de minha mãe. Eu estava sentado e o ambiente era muito prazeroso. Resolvo ir ao balcão. Percebo então que o bar é um pub (pronunciado corretamente como tal em inglês) e me lembro neste momento que meu pai adora ‘pubs’ (pronunciado como púbis). Ao me levantar sou perseguido e preso por um policial sem saber por quê. Despertei assustado.”

3. Interpretação do sonho e direção do tratamento

O simbolismo onírico coloca a torre Eiffel com valor significante de falo, que é “admirado” pela mãe. Paris surge como referência significante ao que dá prazer à mãe, enquanto pub se refere simbolicamente ao que dá prazer ao pai. S sentar-se ou levantar-se pode ser interpretado como seu pênis, respectivamente mole ou ereto. O sonho revela o desejo de S de ter seu pênis “admirado” pela mãe como a torre Eiffel, ao se levantar (ficar ereto). As referências ao pai, visto por S como um fraco (“frouxo”), são indiretas: “pubs” – o chiste, caracterizado pelo equívoco de pronúncia do plural de “pub”, revela a censura de S ao interesse excessivo do pai por suas sucessivas mulheres, em detrimento dos filhos – e o policial que o prende por, simbolicamente, ele ter desejado se exibir sexualmente para a mãe. O interdito é expresso oniricamente pela perseguição e prisão de S, feitas por seu pai deslocado como policial, por “crime” que ele “desconhece”: seu desejo incestuoso inconsciente pela mãe. Punir-se no sonho por este desejo é uma confirmação da fórmula aplicada ao neurótico em relação à castração: ele “não sabe que sabe”, devido ao recalque. A escolha do título para o sonho – “Pub de Paris” – teve uma motivação específica, que reflete como a interpretação de um sonho é resultado da interação inconsciente entre analisando e analista e fruto de um movimento criativo que dela resulta: permutando-se as letras do título pode-se encontrar o termo “Par de púbis”, que tanto pode se referir ao par parental quanto ao desejado e incestuoso par filho-mãe.

Em função da evidente fragilidade identificatória de S em relação ao pai, um possível resgate da imago paterna e de um relacionamento pai-filho mais equilibrado, ao lado da conquista de uma verdadeira parceria com a mulher, nortearam o tratamento. S é bom profissional, mantém namoro estável há dois anos e pretende casar-se em breve. A relação com o pai, após grave atrito catártico no qual S disse a ele “tudo o que queria dizer” e de aceitar os seus limites pessoais, assumiu a forma de uma cordialidade respeitosa.

 

Caso 3: Eu jorro, tu jorras

1. Fragmento do percurso analítico

P, sexo masculino, 47 anos, graduado em curso superior, casado, um filho. Procurou análise inicialmente aos vinte anos de idade devido a “impotência sexual” e deixou o tratamento após quatro meses, por julgar-se curado de sua inibição. O último filho de família numerosa (quatro meninos, duas meninas) e órfão de pai aos dois anos. O pai sempre foi presente como tal no discurso da mãe. Doença na infância demandou maiores cuidados por parte da mãe e motivou fantasia de sua predileção por P, como a análise retomada aos quarenta anos de idade revelou. Voltou à análise por “não conseguir se entregar” ao amor. Heterossexual, revelou então ter sofrido abuso sexual na infância por parte do irmão mais velho, que se tornou homossexual. P sofreu de enurese noturna até os cinco anos de idade. Relatou que, em sua primeira “poluição” noturna aos treze anos, acordou todo molhado ao ter um orgasmo, durante o sonho no qual se aproxima excitado da barriga da mãe: “Eu jorrei com aquela imagem”. O chiste – referir-se equivocamente ao orgasmo como uma “poluição” e não, como seria correto, como polução noturna –, prontamente corrigido por P ao descrever o episódio, revela a associação inconsciente entre incesto e sujeira que, como é comum encontrar na neurose obsessiva, pode se estender a qualquer relação sexual no futuro, como prenuncia o fato de P ter se referido à sua “primeira” polução. P é profissional liberal de reconhecido sucesso. Iniciou formação psicanalítica durante a análise retomada aos quarenta anos.

2. O sonho: “Eu jorro, tu jorras”

Em pesquisa sobre o orgasmo feminino, P se deparou na Internet com imagens “impressionantes” de mulheres que “ejaculam” neste instante. À noite, teve este sonho: “Minha mãe está nua, se expõe explicitamente para mim e jorra de excitação quando eu me aproximo. Eu a repreendo e digo: ‘Isto não é possível, você é minha mãe!’ Percebo com satisfação que ela fica muito envergonhada. Despertei com uma estranha sensação de alívio e bem-estar.”

3. Interpretação do sonho e direção do tratamento

Não há simbolismo onírico ou conteúdo latente. Não existem significantes, só há significados explícitos, que revelam cruamente o desejo incestuoso recalcado, o qual é recusado punindo a mãe com o sentimento de vergonha pelo desejo “dela”. Esta recusa anuncia também a travessia da fantasia narcísica da predileção materna por P. Apesar de o pai ter morrido precocemente e ter sido fisicamente ausente desde muito cedo para P, ele permaneceu presente no discurso da mãe como ótima referência, permitindo que sua imago fosse introjectada e que a Lei, simbolicamente, se instaurasse. A função paterna, legitimada pelo discurso da mãe, pôde assim ser exercida no inconsciente, embora algo enfraquecida pela falta precoce do pai. Esta debilidade identificatória está na origem da impotência de P, tanto a genital que motivou a curta análise aos vinte anos, como a afetiva que o levou a retomar a psicoterapia aos quarenta. Assim, o interdito é imposto no sonho pelo próprio P ao seu desejo incestuoso. O trabalho analítico possibilitou o resgate da função paterna, que é convocada por P no sonho de travessia de sua fantasia, anunciando o final de sua análise. O apaziguamento pulsional desta interdição inconsciente é expresso pelas sensações de alívio e bem-estar descritas por P ao despertar deste sonho demarcando, ainda que tardiamente, o fim do horror à castração simbólica e a efetiva “dissolução do complexo de Édipo” (FREUD, 1924). Após um casamento fracassado, P casa-se novamente, tem um filho como fruto desta relação estável e prossegue com sua formação em Psicanálise.

Estes três casos reiteram a pregnância do conflito edípico na contemporaneidade e parecem não deixar dúvidas de que a resposta à terceira questão aqui levantada deva ser negativa. Reforça esta conclusão a presença de ícones de nossa época nos sonhos relatados, na forma de “restos diurnos”: o automóvel no caso 1, a torre Eiffel no caso 2 e a Internet no caso 3.

A Psicanálise tem, contemporaneamente, enfrentado os assim chamados “novos sintomas”: 1. os “borderline”; 2. o “vazio” da depressão; 3. a passagem ao ato, seja ela dirigida ao próprio corpo (fenômeno psicossomático, suicídio), seja endereçada ao Outro (violência, delinquência) e 4. as compulsões já conhecidas (álcool, drogas, comida, compras, sexo, jogo). A estas se deve acrescentar o vício pela Internet, como uma nova categoria de compulsão a ser considerada pelo psicanalista, na sua abordagem das patologias psíquicas da contemporaneidade (COUTINHO, 2002). Entretanto, apesar de constituírem novos desafios, todas estas condições clínicas podem ser contempladas, no arcabouço teórico psicanalítico, com referenciais que permitem estabelecer a direção do tratamento. Há, porém, uma nova contingência contemporânea que abala a certeza de uma resposta negativa à terceira questão aqui proposta, por colocar em xeque o cerne de toda a teoria psicanalítica, o complexo de Édipo: a parentalidade homossexual.

 

Édipo sem diferença?

Nasio define assim o complexo de Édipo: “É a chave-mestra da Psicanálise. É o conceito soberano que gera e organiza todos os outros conceitos psicanalíticos e justifica a prática da Psicanálise.” (NASIO, 2007, p.17). Ele propõe esta definição categórica em seu livro intitulado Édipo, o complexo do qual nenhuma criança escapa e reitera a ubiquidade do atravessamento edípico no desenvolvimento psíquico humano. Será mesmo verdade, entretanto, que “nenhuma criança escapa” do complexo de Édipo? Se consideramos o par parental tradicional, heterossexual, certamente esta lei se aplica, já que a criança estará diante do enigma da sexualidade e terá, como “chave mestra” para seu deciframento, a dialética do “ter ou não ter” da teoria falocêntrica psicanalítica.

Porém, a contemporaneidade reserva aos psicanalistas e à própria teoria analítica um novo e enorme desafio: casais homossexuais e a possibilidade de sua parentalidade, seja através da adoção, seja através das várias alternativas que os grandes avanços da Medicina da Reprodução têm apresentado à gestação humana natural. Estes avanços podem permitir, por exemplo, que um casal parental feminino possa ter filhos através da inseminação artificial de uma das parceiras com o esperma de um “banco de sêmen”, prescindindo completamente da presença do homem na concepção e na futura educação desta criança. Por outro lado, mesmo o casal parental masculino, se não quiser recorrer à opção mais simples da adoção, pode garantir a um ou a ambos os parceiros a possibilidade da paternidade biológica, cedendo esperma à “barriga de aluguel” de uma irmã, de outra familiar ou mesmo de uma amiga e conseguindo, assim, um filho sem a relação sexual com a mulher e excluindo-a de qualquer participação em sua criação.

Assim, o direito ao casamento homossexual, seu consequente acesso à adoção e as opções que a Ciência oferece a estes casais em obterem a parentalidade biológica são circunstâncias contemporâneas que anulam o aspecto essencial do complexo edipiano: a diferença sexual. As implicações teóricas e clínicas de mudança tão radical não podem ser previstas, já que a parentalidade homossexual, a priori, priva a criança da dialética do “ter ou não ter” o falo, base do complexo edipiano, confrontando-a com o enigma da sexualidade sem esta “chave mestra” para seu deciframento: ou ambos do par parental têm ou ambos não têm. A criança ficaria, assim, diante da ausência da diferença sexual. Mesmo que se argumente que o que está em jogo no desenvolvimento psíquico-sexual infantil é o papel que as “funções” paterna e materna exercem sobre ele, é inconcebível não teorizá-las, com base na teoria psicanalítica falocêntrica vigente, como um natural desdobramento que a dialética da diferença sexual anatômica introduz para a criança. É esta diferença sexual ou, no caso do par parental homossexual, a ausência da diferença que está no imaginário da criança quando ela começa a descobrir sua própria anatomia. Esquematicamente, esta criança estaria diante das seguintes possibilidades:

 

 

Postulados teóricos psicanalíticos essenciais, emanados do complexo edipiano e ancorados na dialética da diferença sexual como a castração, o falo, falta e identificação têm, diante da ausência desta diferença exposta à criança pelo par parental homossexual, sua aplicabilidade teórica frontalmente questionada. No lugar de respostas teóricas e diretrizes clínicas, estes novos casais apenas oferecem aos psicanalistas contemporâneos novas e diversas questões. Como pensar a castração, base imaginária do atravessamento edípico, se ambos do par parental têm ou ambos não têm o objeto desta operação? Se, no imaginário infantil, não há o que ser castrado ou se nenhum dos pais foi submetido à castração, como pensar o falo e seu corolário simbólico, a Lei? Diante disto, como falar em “funções” paterna e materna? Se não existe a base imaginária para a construção da castração simbólica, como é possível instaurar-se a dialética da falta do objeto, que alicerça a emergência do desejo? É possível a um adulto lidar de forma saudável com a alteridade se o seu desenvolvimento psíquico-sexual não foi marcado pela diferença, tal como Freud apontou? (FREUD, 1925). A identificação sexual da criança do par parental homossexual será sempre homossexual? Uma menina criada por mulheres que não têm atração por homens pode vir a desejar sexualmente o homem? Se criada por homens que não desejam mulheres, como poderá ela desenvolver sua feminilidade? Menino criado por homens que se desejam pode vir a ter a mulher como objeto sexual? Se criado por mulheres que não desejam sexualmente os homens, como se construirá sua virilidade? Diante destas e de muitas outras questões que podem ser levantadas a respeito da sexualidade das crianças criadas por estes pares parentais homossexuais, pode-se conjecturar uma nova leitura para os “invertidos” descritos por Freud (FREUD, 1905), ao se referir aos homossexuais que se definem sexualmente no seio do casal parental tradicional, heterossexual: já que a identificação sexual destas crianças parece apontar fortemente para a homossexualidade como a escolha natural, a “inversão” desta tendência mais provável seria a heterossexualidade? Em outras palavras, o “invertido” deste novo complexo familiar seria um heterossexual?

Portanto, os psicanalistas contemporâneos estão diante de um novo desafio que interpela os fundamentos teóricos de sua práxis e, assim como Freud procedeu nos primórdios da Psicanálise, resta-lhes buscar nesta clínica que se aproxima os novos referenciais teóricos que irão sustentar o seu saber e direcionar o seu tratamento, num movimento que pode ser assim esquematizado:

 

 

Bibliografia

CALLIGARIS, C. Dívida e Culpa. Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n.5, 1993.         [ Links ]

COUTINHO, A.H.S.A. Internet, um vício de linguagem. Reverso, n.49, p.73-83, Belo Horizonte, 2002.         [ Links ]

COUTINHO, A.H.S.A. Édipo, sonhos e interdito. Estudos de Psicanálise, n.35, p.15-22, Belo Horizonte, 2011.         [ Links ]

FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a sexualidade. ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.7, 1996.         [ Links ]

FREUD, S. (1913) Totem e tabu. ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.13, 1996.         [ Links ]

FREUD, S. (1924) A dissolução do complexo de Édipo. ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.19, 1996.         [ Links ]

FREUD, S. (1925) Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.19, 1996.         [ Links ]

NASIO, J.-D. Édipo, o complexo do qual nenhuma criança escapa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Antônio de Albuquerque, 1288/500 – Lourdes
30112-011 – BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3224-7125
E-mail: ah.coutinho@terra.com.br

RECEBIDO EM: 30/03/2012
APROVADO EM: 04/05/2012

 

 

Sobre o Autor

Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho
Médico. Psicanalista. Sócio do Círculo Psicanalítico