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versión impresa ISSN 0102-7395
Reverso vol.34 no.63 Belo Horizonte jun. 2012
Delicadezas do Eu: fundamentos da vulnerabilidade
Delicacies of the I.: fundaments of vulnerability
Ana Cleide Guedes Moreira
Universidade Federal do Pará
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental
RESUMO
Neste trabalho analisa-se a hipótese metapsicológica segundo a qual o impacto subjetivo de um diagnóstico de HIV Aids é traumático, no sentido psicanalítico do termo, o que significa que é preciso construir um dispositivo clínico que permita deslindar, na dinâmica psíquica desses pacientes, os conflitos desencadeados pela certeza científica da Aids como diagnóstico. Analisa-se em um caso clínico a economia psíquica resultante, no sentido do circuito pulsional que gira em torno do eu vulnerável, atingido em cheio em sua crença na imortalidade. Analisam-se seus efeitos na tópica psíquica, ou seja, o impacto produzido nas instâncias id, eu e superego. Entre elas deixa-se indicada a mais significativa evidência clínica nos casos de Aids: o ataque do superego ao eu, conhecida por todos que exercem a clínica da Aids, a presença da melancolia, que resta como problema de pesquisa.
Palavras-chave: Melancolia, Trauma, HIV, Dispositivo clínico.
Abstract
This paper analyzes the metapsychological hypothesis according to which the subjective impact of a diagnosis of HIV AIDS is traumatic, in the psychoanalytic sense of the term, which means that a clinical setting, which allows clinical unravel the psychodynamics of these patients, conflicts triggered by scientific certainty such as a diagnosis of AIDS, needs to be built. From a clinical vignette the author analyzes the psychological economy resulting – the drive dynamics – that makes the self vulnerable, targeting his, or her, belief of immortality. The author also analyzes its effects on topical mental, ie, the impact for a id, superego, and I. Such a fact brings about the most significant clinical evidence about AIDS: the attack of the superego onto the self, known for all those who engaged in the AIDS clinic, the presence of melancholia, which remains as a research problem.
Keywords: Melancholy, Trauma, HIV, Clinical setting.
Dedico este trabalho a Joyce McDougall
“Como veem, quando alguém começa a desculpar-se, no final resulta que tudo foi inevitável, foi tudo obra do destino. Submeto-me a ele, e peço-lhes que façam o mesmo” (Freud, 1932).
Introdução
Começo com esta citação de Sigmund Freud, fazendo destas as minhas palavras de abertura, certa de que terei de vocês maior solidariedade se lhes digo que preciso apresentar, de início, minhas desculpas por entrar em terreno tão espinhoso com vocês esta noite.
Freud jamais pronunciou estas palavras, mas as escreveu para seus leitores, quando já não podia mais falar em público, por mais uma cirurgia realizada quando estava com 76 anos. Mas afirma no prefácio, que intitula estas “Novas conferências” porque “isto pode ajudar-me a não me esquecer de levar em conta o leitor, à medida que me aprofundar mais em meu tema” (FREUD, [1932]1933, p.15).
Aludir ao destino tem, para mim, um valor específico, que me permite situar para vocês o lugar de onde eu falo, como na tradição acadêmica francesa. É como, na tradição grega, o lugar de onde se vê, o teatro. Ou seja, de onde eu vejo, o que eu falo, como na tradição da observação clínica, que se inicia, também, na antiguidade helênica. Para sintetizar, é do lugar de uma psicanalista que se inseriu na tradição clínica e na tradição universitária, e de lá ainda não saiu. Sim, porque, como para todos, algum dia o destino baterá a minha porta. E aí, como na 5ª Sinfonia, quando o destino bate à porta, no ponto mais vulnerável do narcisismo, a imortalidade do eu, também serei colhida como uma fruta madura demais.
Vejam que assim posso começar a colocar para vocês que vieram para uma aula, que por alguma razão desconhecida sou eu a lhes oferecer, que tenho a ideia de conversar sobre as subjetividades vulneráveis, quando tomadas por uma paixão, um pathos, algo da ordem do excesso e da desmesura, como nomeia Berlinck (2000).
E se digo ‘razão desconhecida’, embora sabendo, tão bem quanto vocês, que estou aqui por um convite de meus amigos Ceccarelli e Ana Cristina Salles, é porque quero aqui saber, mais ainda, o não sabido da clínica da melancolia na presença da aids, meu principal tema de pesquisa, e conto com vocês para dar contorno às ideias que serão desenvolvidas neste encontro.
E que Freud tenha se desculpado muitas vezes quando pronunciava suas teses sobre a feminilidade, me põe mais à vontade com vocês, pois não sei exatamente tudo o que quero dizer hoje, já que uma aula é um acontecimento entre professores e alunos, desde sempre. Isso é o que faziam, na Idade Média, os primeiros professores como Pedro Abelardo (1070-1142), em suas aulas da Universidade de Paris, quando apresentava suas ideias e oferecia a palavra livre para seus alunos, estimulando a discussão dialética. Mestre Abelardo, tão duramente punido por sua liberdade sexual, propunha fazer circular o pensamento. E em sua liberdade intelectual deu ouvidos a Heloísa, jovem brilhante, educada na igreja católica, leitora dos clássicos e dos doutores medievais, em uma época em que a maioria da população era analfabeta e as mulheres não frequentavam as universidades. Da tragédia que se tornaram suas vidas pode-se aprender ainda hoje que a paixão amorosa desperta também sua oposição, e que é esta que traz consigo o sofrimento para os amantes. Como cantou o poeta Monsueto (1962), na canção brasileira: “Para que rimar amor e dor?” Estamos, portanto, nós também hoje, em nome da liberdade do pensamento para expressar as paixões, colocando em questão o pathos e as delicadezas do eu.
Mas aqui atravessaremos a tradição cartesiana e os princípios positivistas para tratar também dos pensamentos inconscientes, na expressão freudiana da Die Traumdeutung (1900), aqueles que podem ganhar representação com o método psicanalítico. Mas a aula, ou a conferência, como vocês a nomearam, não precisa estar pronta antes que aconteça, e aqui estamos em uma concepção ligeiramente diferente de ensino, pois estamos em um Círculo Psicanalítico, e isso supõe uma horizontalidade, uma distribuição igualitária pela responsabilidade das ideias. Então devo dizer-lhes que me sinto também agora à vontade, pois sei que seu Círculo faz parte de um conjunto numeroso de psicanalistas do mundo ocidental que promove a psicanálise a partir de um “conceito de pluralismo na teoria e na prática, bem como nos intercâmbios interdisciplinares”. Estou citando, vocês devem ter percebido, o compromisso formal da International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS), a qual o Círculo Psicanalítico de Minas Gerais é associado.
Então podemos trabalhar nosso tema dentro do campo psicanalítico, mas também em suas fronteiras, seus vizinhos saberes, pois as paixões não são propriedade de ninguém, nem do próprio Eu que as vive ou, diante delas, tropeça, como os patos com seu andar claudicante de dançarino desajeitado. As paixões acometem corpo e psique, nenhum deles imortal, ou quem sabe sejam? Não é o que pensava Freud que afirmou que temos uma vulnerabilidade fundamental: “o ponto mais delicado do sistema narcísico, a imortalidade do Eu”.
É com o texto freudiano sobre o narcisismo que podemos analisar o que aqui estamos nomeando a temática da delicadeza do Eu. Ou seja, de sua vulnerabilidade, para usar um termo que se tornou precioso na luta mundial contra a aids. Ali Freud nos ensinará muitas coisas sobre a delicadeza dos índios, crianças, das mulheres, dos parafrênicos, paranoicos e hipocondríacos, da vida amorosa dos sexos, do egoísmo dos doentes e dos sonhos. Todas reunidas sob o conceito de amor próprio, narcisismo, por oposição ao amor ao outro, ao “investimento de objeto” (FREUD, 1914, p.18).
Neste texto em que faz sua aposta na pesquisa psicanalítica, literalmente para afirmá-la como um saber que funda uma psicologia, Freud convoca o saber sobre as neuroses de transferência, as neuroses atuais e a metapsicologia resultante desta pesquisa psicopatológica, para analisar a teoria da libido em suas entranhas, ameaçada que foi pelas infundadas sugestões junguianas e adlerianas (FREUD, 1914).
Não vamos examiná-lo em sua densa extensão, nem adentrar toda a problemática institucional, sócio-histórica e epistemológica que a noção de eu – das Ich, no original freudiano, tem para a psicanálise que o seguiu. O interesse aqui é fazer falar a clínica da melancolia na presença da Aids, onde o narcisismo é o mais duramente afetado, e isso em todas as dimensões metapsicológicas: tópica, econômica e dinâmica. Talvez um problema grande demais, mas para o qual vamos nos servir da produção de um grupo de pesquisa que vem se dedicando a ele há quase duas décadas.
As delicadezas de Clara
De nossas pesquisas, e dentre os vários casos estudados, trazemos para este trabalho uma mulher que chamaremos de Clara: ela tinha 44 anos na época da entrevista. Clara manteve uma relação estável desde os quinze anos de idade com um homem, com quem teve três filhos homens. Tendo sido fiel, sempre, na relação com ele, ficou alarmada com o diagnóstico de Aids. Seu companheiro, que ao longo dos vinte anos de vida em comum várias vezes foi violento com ela, jamais aceitou realizar exames para o HIV e, mesmo tendo tido um filho com outra mulher no período dessa relação estável com Clara, negou que fosse responsável pela contaminação, que atribuiu a ela.
O seu filho caçula morreu de acidente um mês antes de Clara descobrir o diagnóstico, ou seja, quando estava de luto pela morte do filho começaram a surgir doenças graves que a levaram ao diagnóstico positivo de HIV. Triste e de luto, seu eu em estado delicado foi insuficiente para o enfrentamento com o vírus.
O destino, implacável, impôs a Clara mais uma perda: seu filho mais velho foi assassinado, logo a seguir, na violência cotidiana nas cidades brasileiras. Mais uma perda, mais um luto, mais frágil ainda se tornou esta mulher. Por fim separou-se do companheiro. Seu estado se agravou muito e esteve internada no Hospital Universitário João de Barros Barreto, após o que iniciou o tratamento no ambulatório especializado (SAE) do hospital, em 2008, profundamente melancólica. A certa altura de seu tratamento psicológico foi solicitada a dar entrevista para a pesquisa, no que consentiu. Indagada sobre seu desejo de ter outro companheiro e uma vida sexual, respondeu que tinha medo:
É um pouco de cada coisa... medo também de voltar a amar alguém, me machucar, machucar alguém assim como me machuquei. Não me machuquei só fisicamente, me machuquei amorosamente também. A gente confia na pessoa... amar aquela pessoa..e de repente aquela pessoa...praticamente ele acabou com a minha vida (Clara, 44 anos).
Toda a problemática da sexualidade em nossa civilização ocidental judaico-cristã diz respeito à relação entre os sexos, e ao que é permitido e ao que é proibido, a propósito das práticas sexuais. Como o falicismo é para mim não mais que uma fantasia sexual infantil, muito bem analisada por Freud em sua obra, não considero relevante estabelecer a diferença entre os sexos em torno da noção, ainda que simbólica, do falo. Também a definição freudiana de sexualidade como experiência de satisfação, que começa no inocente gesto de mamar ao seio de uma mulher, de preferência, na própria mãe, até as práticas sexuais com múltiplos parceiros e fetiches de ambos os sexos, pode ser analisada em torno da ideia de que a sexualidade humana, diferentemente de outras espécies, é sobredeterminada pelo princípio do prazer, e não regulada por normas biológicas ou de reprodução. Esta última é uma noção perfeitamente ideológica, partilhada entre os cientistas e as religiões, especialmente a católica, assim como pelo senso comum, como demonstrou Freud nos Três Ensaios (1905).
Eu corporal e erógeno: narcisismo
Com Freud aprendemos que “O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície”. (FREUD, 1923, p.39).
Laplanche desenvolveu longos estudos sobre a tópica do eu antes de concluir que o sistema do ego é ‘inseparável de uma representação figurada’ (LAPLANCHE, 1987, p.241). É desse eu corporal que não se pode fugir quando se trata de fazer psicanálise com pacientes acometidos da síndrome da imunodeficiência adquirida. O trauma de um diagnóstico positivo atinge um eu que é corporal, e mais, atinge um eu imaginário, aquele onde reside a fantasia ilusória de imortalidade, afetada duramente pela certeza científica da morbidade do corpo. Ainda que sua mortalidade prometa ser adiada por terapêuticas desenvolvidas nas duas últimas décadas, os chamados coquetéis, sua eficácia científica é probabilística, e sabe-se que esse tratamento não oferece resultados em todos os casos. Além disso, percebe-se na clínica que a associação aids e morte, apropriada pela mídia e pelas propagandas da primeira década da epidemia, nunca deixou de se reinscrever no imaginário que cerca essa pandemia, o que não deixa de ser uma verdade científica. É o que aconteceu com Clara, como veremos mais adiante.
O sujeito é atingido em duas dimensões com as quais aprendemos a pensá-lo: no real do corpo, afetado por um vírus, o HIV, e em seu imaginário, porque o ego é por si já corporal, ou seja, o sujeito se pensa indissociavelmente como um corpo.
A certeza científica atinge também o sujeito em seu corpo erógeno, pois que vem imediatamente associada à sexualidade. A Aids como doença sexualmente transmissível produziu no imaginário vários novos sentidos que abalam o eu e as instâncias ideais, destronando o Ego-ideal de sua fantasia de perfeição narcísica, e abalando os ideais de ego que compõem modelos de realização pessoal e profissional. Ou seja, é o próprio mundo interno de fantasia que pode receber um diagnóstico positivo como uma catástrofe do eu. Foi tudo isso e, mais ainda, o que aconteceu com Clara.
O Ideal do eu faz sua introdução na obra freudiana no texto sobre o narcisismo: segundo Freud, os efeitos das primeiras identificações são gerais e duradouras, e são incorporadas como Eu-Ideal, uma identificação primária, anterior a todo investimento objetal (FREUD, 1914), que mais adiante, em sua obra, se torna uma instância na tópica, associado ao superego.
Esse conceito será ampliado pelos estudos da identificação em Psicologia de Grupo de Análise do Ego (1921) onde Freud demonstra sua importância na constituição do eu e na estrutura libidinal dos grupos, massas e instituições.
Foi em O Ego e o Id (1923) que Freud introduziu o termo das Über-Ich, que ficou conhecido, em língua portuguesa, como superego. Neste texto que, como todos sabem, inaugura a segunda tópica, aquele que brilha por sua ausência no título será objeto de rigorosa análise, agora, a partir do desenvolvimento conceitual da identificação secundária, esta que provém do caráter triangular do Édipo e da bissexualidade constituindo os ideais de eu, tomando a forma da nova instância, o superego. Nesse texto o superego passa a incorporar, além da noção de ideal desenvolvida anteriormente, a de consciência moral que, como censura, já fizera sua aparição nos textos da década de 1890, quando Freud lança as bases da psicanálise no conflito entre o inconsciente e as defesas – especialmente, o recalque. A censura, que Freud indica como a razão por que os sonhos sofrem deslocamento e condensação, na Die Traumdeutung (1900), ganha, em 1923, seu estatuto definitivo de uma nova formação psíquica, o superego. Em suas palavras:
“O amplo resultado geral da fase sexual dominada pelo complexo de Édipo pode, portanto, ser tomada como sendo a formação de um precipitado no eu, consistente dessas duas identificações... [com o pai e com a mãe]. Esta modificação do eu retém a sua posição especial; ela se confronta com os outros conteúdos do eu como um ideal de eu ou superego” (FREUD, 1923, p.46).
No entanto, prossegue Freud, o superego não é apenas um reflexo dessas primeiras escolhas objetais do Id (que no excerto acima reproduzimos, em acréscimo ao original), pois ele pode também representar uma formação reativa contra tais escolhas, o que resulta num embate, no exemplo do menino, entre o ser como seu pai ou não ser como ele (FREUD, 1923). Isso nos permite pensar no caso das mulheres de nossa pesquisa, que também podem desejar ser como a mãe ou não ser como ela. Ora, a grande questão colocada pelo feminismo à psicanálise freudiana é que Freud teria proposto que às mulheres restavam apenas duas saídas do conflito edípico: ser como a mãe, ou seja, identificar-se com ela e abandonar o pai como objeto de amor, passando a ter como ideal ter um filho. Ou identificar-se com o pai e desenvolver-se no sentido da masculinidade.
Ora, hoje sabemos que estas eram as duas únicas saídas da mulher vitoriana, que foi paciente de Freud em seu tempo. A mulher emancipada que vemos hoje ter ideais de eu anteriormente tidos como masculinos, como ser intelectual, ter uma profissão ou um trabalho rendoso, ser ativa em sua posição de cidadã e manifestar-se propositivamente em locais de debate público, como nos movimentos sociais, tão frequentemente dedicados e eficazes na luta contra a Aids, não existiam no tempo de Freud. Havia, claro, as exceções nesse panorama geral e grandes mulheres escritoras, professoras, médicas frequentavam não apenas o divã de Freud, mas sua sala de reunião das quartas-feiras, em Viena do início do século XX, como Lou Salomé e Sabina Spielrein, só para ficar em duas que mais despertaram paixões de homens como Nietzsche, Rilke, Tausk e Jung. São estes os ideais de eu que também são fundantes na problemática do crescimento da epidemia e de sua feminização, em escala mundial. As delicadezas do eu não devem ser confundidas com a preconceituosa noção de fragilidade do feminino, que está longe de passar de ideologia. O exame da temática da feminilidade em Freud foi realizado com maestria pela psicanalista brasileira Maria Rita Khel (2008), a quem remetemos para uma compreensão ampla da temática.
Pais e filhos: narcisismo e imortalidade
Como vimos, segundo Freud, essa delicadeza do eu é muito duramente acossada pela realidade, uma vez que somos mortais, embora ‘sua majestade o bebê’ – aquele que habita cada um de nós – seja levado a negá-lo, uma vez que tenta se aproximar do Ideal de Eu que, dos pais, introjetou: ele sim, este filho, seria ‘imortal’. Que a segurança narcísica dos pais seja obtida refugiando-se na criança é o que aprendemos com Freud (FREUD, 1914, p.37).
Eis a razão por que acostumamo-nos à observação clínica de pacientes que manifestam seu desejo de viver, diante de impactos subjetivos como o anúncio de um diagnóstico de HIV Aids, deslocando-o para os filhos: “Não posso morrer antes de criar meus filhos’’, é fala recorrente na clínica da Aids. O diagnóstico de Aids muitas vezes é um trauma profundo provocando um desequilíbrio narcísico-objetal que inibe o pensamento. Mas do lado do clínico e suas delicadezas, exige pensamento. E um dispositivo clínico para o sujeito, afetado agora por paixões narcísicas e melancólicas, eivadas de fantasias de desejo de vida e morte. Ao clínico que o acompanha na desventura, que pode ser trágica, cabe garantir as condições para que suas vivências gerem experiência e saber sobre o inconsciente, o pulsional ganhando representação, afastando-se da dimensão de catástrofe. A re-inscrição do trauma na dimensão da linguagem, em uma relação transferencial, é a direção de todo tratamento possível em um dispositivo clínico que se instale entre sujeito e analista diante do pathos e da demanda do primeiro. No caso de Clara, seu narcisismo perdeu dois refúgios, dois filhos trágica e precocemente perdidos. Clara não perdeu o ideal de ser mãe de família, como sua mãe, mas perdeu seu ideal de mulher, sua sexualidade inibida daí por diante: “Não me machuquei só fisicamente, me machuquei amorosamente também. A gente confia na pessoa... ama aquela pessoa... e de repente...”
O saber sobre o inconsciente e a luta contra o sofrimento psíquico
Citemos novamente Clara, que teve nas figuras da mídia suas referências sobre a doença, nessa associação de algo devastador, levando à morte:
O Cazuza (cantor), eu gosto muito dele, e aí de repente ele foi a público e anunciou que tinha o vírus... e uma pessoa que tem dinheiro, fama, de repente isso... E aquela atriz, a Sandra Bréa, ela também morreu jovem. Sabe, há gente... até hoje pacientes que conversam comigo que tem pessoas que vivem até vinte anos, que as pessoas não morrem disso. E as pessoas famosas? E não foram só essas, que tinham dinheiro, recursos, tudo? Às vezes eu dizia para a mamãe que eu sou uma bomba relógio que tem dentro de mim que a qualquer momento pode explodir... (CLARA, 44 anos).
E foi assim que se mediu também pelos seus ídolos, eles também vulneráveis, apesar de ricos e famosos, e viu que o desamparo em que estava não podia mais se sustentar em modelos ideais.
A falta de acesso à informação e a aconselhamento quando a infecção do HIV Aids é um dos problemas mais pungentes encontrados entre as mulheres pesquisadas, que, em geral, as pesquisas brasileiras indicam que pouco sabem ou estão mal informadas sobre o uso do preservativo, o que também aparece frequentemente nos trabalhos em grupo realizados no SAE-HUJBB. Indica que as desigualdades sociais produzem efeitos perversos para as mulheres deste extrato social e que a vulnerabilidade social e programática é uma realidade para a população investigada em que pese os avanços alcançados nas últimas décadas.
Como notou Freud, o humano se pensa, de modo consciente e inconsciente, como um eu corporal e a contribuição do imaginário popular também se faz sentir na clinica da Aids, quando o paciente fala, como no caso que aqui estamos analisando, que não quer ficar igual ao Cazuza. O poeta e cantor que não se poupou de mostrar-se ao mundo em sua agonia final, como não tinha jamais se poupado de se mostrar em sua máxima beleza juvenil e intelectual, por vezes, extremamente sensível ao realizar travessias melancólicas, desde que findou sua ilusão de imortalidade. Delicadezas de eu com que ele criou canções que são passagens inesquecíveis da MPB, nos palcos e na discografia exuberante de rockeiro-poeta que ouviu o destino bater tão cedo à porta.
Analisamos, portanto, a hipótese segundo a qual o impacto subjetivo de um diagnóstico de HIV Aids é traumático, no sentido psicanalítico do termo, o que significa que é preciso construir um dispositivo clínico que permita deslindar, na dinâmica psíquica desses pacientes, os conflitos psíquicos desencadeados pela certeza científica da Aids como diagnóstico. Também analisar a economia psíquica resultante, no sentido do circuito pulsional que gira em torno do eu vulnerável, atingido em cheio em sua crença na imortalidade e, portanto, suas vicissitudes narcísicas. E, por último, mas não menos importante, será preciso analisar seus efeitos na tópica psíquica, ou seja, no abalo produzido nas instâncias id, ego e superego. Entre elas deixemos apenas indicada a que reputamos como mais importante a ser investigada nos casos de Aids: o ataque do superego ao ego está entre as mais importantes evidências clínicas, conhecidas por todos que exercem a clínica da Aids, evidenciando a presença da melancolia, como preferimos nomear com Freud. Há os que a nomeiam depressão, o que se tornou usual desde o início do século XX (MOREIRA, 2002).
A observação clínica desses pacientes tem mostrado sucessivas vezes como se trata de buscar, em muitos casos, o consolo de uma religião, de uma divindade, de crenças antes jamais professadas como as de reencarnação. Mas esta observação também se encontra entre os homens quando se descobrem portadores de HIV Aids. Seria preciso um estudo avançado que permitisse refletirmos sobre o desejo de encontrar o pai protetor da infância na figura de uma divindade, que nos levaria para os estudos freudianos da religiosidade como neurose obsessiva da humanidade, que não teremos tempo de retomar, mas que foi analisada com precisão por Oscar Miguelez (2007).
Para terminar, provisoriamente, nossa exposição e cumprir o compromisso de fazer desta aula um acontecimento de produção conjunta de saber abrindo a palavra para os participantes desta aula, o que forneceu as questões que permitiram construir este texto conclusivo para publicação, fiquemos com uma importante expressão da mudança da realidade das mulheres neste século XXI. Produzido por um coletivo brasileiro, o Plano Integrado de Enfrentamento da Feminização da Epidemia de HIV e outras DST prevê que um grande desafio a ser vencido é o acesso à informação. O Plano prevê:
“O enfrentamento da feminização da epidemia exige que os esforços se concentrem na redução dos fatores de ordem social, individual e programática que implicam a limitação de acesso à informação, aos insumos de prevenção, ao diagnóstico e ao tratamento. Essas limitações, somadas aos aspectos socioculturais relacionados às desigualdades de gênero, se constituem como os principais desafios para a implantação do Plano” (MS, 2007, p.8).
Cabe agora a cada um de nós levar o debate adiante, aos fóruns psicanalíticos onde o interesse pelo pathos, pelo sofrimento psíquico permanece um ideal permanente uma vez que, para nós psicanalistas, isso significa acesso também ao saber sobre o inconsciente, sem o qual toda informação permanece parcial e incompleta.
Bibliografia
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Endereço para correspondência:
Travessa Tupinambás, 540/1301 – Batista Campos
66033-815 – BELÉM/PA
Tel.: (91)8117-7158
E-mail: acleide@uol.com.br
RECEBIDO EM: 30/03/2012
APROVADO EM: 20/04/2012
Sobre a Autora
Ana Cleide Guedes Moreira
Psicóloga. Psicanalista. Doutora em Psicologia Clínica PUC-SP. Professora da Universidade Federal do Pará – Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Pesquisadora CNPQ – Proc.n.402524/2010-1.