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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso vol.34 no.63 Belo Horizonte jun. 2012

 

Uma nota sobre a diferenciação estrutural de Freud entre neurose e perversão

 

A note on freud’s structural differentiation between neurosis and perversion

 

 

Paola Mieli, Ph.DI, II, III, IV
Tradução: Eliana Rodrigues Pereira Mendes

IAprès-Coup Psychoanalytic Association
IIMembro do Cercle Freudien
IIISchool of Visual Arts
IVLacanian School of Berkeley

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora apresenta uma visão geral da elaboração de Freud a respeito da diferenciação entre neurose e perversão. Enfatiza o modo pelo qual o sujeito se relaciona com a configuração edípica – o modo que decide a sua relação com a castração, com a realidade, com o desejo e com seus objetos. Estruturas diferentes estão relacionadas a mecanismos psíquicos específicos, que manifestam diferentes soluções para a interdição edípica (recalque na neurose e denegação na perversão), o que também é importante na condução da transferência e do próprio tratamento psicanalítico.

Palavras-chave: Neurose, Perversão, Recalque, Denegação, Fantasia, Fetichismo, Configuração edípica.


Abstract

The author presents an overview of Freud’s elaboration of disawoal, considering the question of the differentiation between neurosis and perversion. She emphasizes the way in which the subject relates to the oedipal configuration – the way that decides his relation to castration, to reality, to desire and to his objects. Different structures are related to specific psychic mechanisms, that manifest different solutions to the oedipal interdiction (repression in neurosis and disawoal in perversion), what is also important in dealing with the transference and the psychoanalytic treatment itself.

Keywords: Neurosis, Perversion, Repression, Disawoal, Phantasy, Fetichism, Oedipal configuration.


 

 

As neuroses são, pode-se dizer, a negativa das perversões” (FREUD, 1905, p.165). Com essa afirmação Freud indica, entre outras coisas, como a sintomatologia psiconeurótica representa – através do recalque – a expressão convertida dos impulsos que poderiam ser qualificados, de um ponto de vista normativo, como pervertidos. Freud comenta, mais especificamente, que as “fantasias histéricas inconscientes correspondem completamente às situações em que a satisfação é conscientemente obtida pelos perversos” (1908, p.162). Graças ao papel fundamental exercido pelas fantasias, a histeria, em particular, parece pôr em foco a relação que a neurose mantém com a perversão. A proximidade e ao mesmo tempo a oposição entre neurose e perversão levantam a questão da relação entre as duas, assim como a sua diferenciação estrutural.

 

Em direção a uma diferenciação estrutural

Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade Freud (1905) nota a dificuldade de dar uma definição de ‘perversão’, tendo em conta a natureza da própria pulsão. A perversão é originalmente compreendida como um desvio da pulsão em relação à sua meta ou objeto. Esse ponto de vista, contudo, implica na existência de uma satisfação ‘normal’ da pulsão, uma pressuposição que a descoberta de Freud do caráter polimórfico universal da sexualidade humana põe em questão. De fato, graças a seu estudo da sexualidade infantil, Freud aponta a peculiaridade da relação entre a pulsão sexual, sua meta e seu objeto. Como sabemos, a meta dessa pulsão é a satisfação em si mesma. O objeto de uma pulsão, por outro lado,

é aquele que por si mesmo ou através do qual a pulsão se acha apta a atingir sua meta. O objeto é o que é mais variável na pulsão e não está originalmente conectado a ela, mas se torna determinado a ela apenas em consequência do fato de ser particularmente apropriado para possibilitar a satisfação. O objeto não é necessariamente extrínseco: ele pode igualmente ser uma parte do próprio corpo do sujeito. Ele pode mudar quantas vezes forem possíveis no curso das vicissitudes que a pulsão percorre durante a sua existência” (FREUD, 1915, p.122-123, grifos nossos).

Dessa forma, do ponto de vista da natureza da pulsão, a noção de um ‘desvio’ em relação ao objeto ou à meta parece ser autocontraditório em seus próprios termos, desde que não existe uma coisa tal como um objeto estável para que a pulsão atinja sua satisfação, ou a satisfação que deve ser privilegiada em si mesma. Paradoxalmente, a qualidade ‘perversa’ da pulsão é ‘normal’, se desejamos manter essa terminologia, e como aponta Freud, “do ponto de vista da psicanálise, o interesse exclusivo sentido por homens e mulheres é também um problema que necessita elucidação e não é um fato evidente por si mesmo baseado numa atração que é basicamente de natureza química” (1905/1915, p.146).

Tendo analisado a natureza da pulsão sexual, Freud chega às seguintes conclusões:

Tudo isso pode ser dito pelo modo de caracterização da pulsão sexual. Elas são inúmeras, emanam de uma grande variedade de fontes orgânicas, atuam em primeira instância independentemente umas das outras e apenas conseguem uma síntese mais ou menos completa no último estágio. A meta pela qual cada uma delas se empenha é a obtenção do ‘prazer do órgão’; apenas quando a síntese é alcançada é que elas começam o trabalho da função reprodutiva e logo após tornam-se geralmente reconhecíveis como pulsões sexuais. Quando aparecem pela primeira vez estão ligadas às pulsões de autopreservação, das quais apenas gradativamente tornam-se separadas; na sua escolha de objeto, também, elas seguem os caminhos que lhes são indicados pelas pulsões do ego. Uma porção delas permanece associada com as pulsões do ego ao longo da vida e lhes fornecem componentes libidinais, o que no funcionamento normal facilmente escapa à percepção e é revelado apenas pelo estabelecimento da doença” (FREUD, 1915, p.125-126).

A sexualidade humana não é biologicamente determinada, assim como o próprio conceito de ‘pulsão sexual’ – um conceito na fronteira entre o mental e o somático – dá a entender, e a escolha do objeto sexual individual é independente da distinção biológica dos gêneros. Com a descoberta do caráter polimórfico perverso da sexualidade infantil, Freud indica como, para ambos os sexos, a sexualidade é primeiro organizada em torno das zonas erógenas do corpo, onde uma troca privilegiada com o outro – o cuidador, a mãe – acontece. As mesmas pulsões parciais que caracterizam a sexualidade das crianças estão em ação na sexualidade dos adultos, tanto independentemente quanto promovendo prazer preliminar no intercurso genital. Portanto, as pulsões que poderiam ser qualificadas como ‘perversas’ se revelam como uma inevitável parte do processo que fundamenta a estrutura da própria organização psicossexual.

Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (FREUD, 1905), as perversões parecem ser o resultado de uma regressão e de uma fixação a uma certa fase do desenvolvimento libidinal, caracterizado pela prevalência das pulsões parciais específicas. Baseada na evidência fenomenológica, essa hipótese sobre a natureza da perversão não responde à questão aberta sobre a especificidade de sua estrutura, especialmente à luz do caráter universal ‘normalmente perverso’ da própria pulsão parcial. Ao atualizar, na realidade, os modos de satisfação idênticos àqueles manifestados na sequência dos estágios e fantasias psicossexuais dos neuróticos, a perversão permanece como o ‘reverso’ da normalidade e da neurose. Nada ainda explica as razões pelas quais a regressão e a fixação têm lugar na perversão nem se explica o que distingue esses mesmos mecanismos daqueles em curso nas neuroses. Apesar do avanço na compreensão dos processos perversos e sua relação com a chamada sexualidade ‘normal’, a questão da distinção no nível da estrutura de caráter entre a neurose e a perversão permanece aberta.

É nas teorias que Freud expandiu nos anos 20 que emerge uma possível resposta a essa questão. Dois aspectos fundamentais permitiram uma nova abordagem da estrutura da perversão: em primeiro lugar o estudo da organização genital infantil; em segundo, a descoberta do mecanismo psíquico que fundamenta a constituição do fetichismo. Um terceiro aspecto também deve ser mencionado: a noção de Freud sobre a “fusão (Vermischung/Verquickung) das pulsões” (1924), entre a libido e as pulsões de morte ativas no sadismo e no masoquismo. Não vou elaborar, neste terceiro ponto, e neste contexto particular, já que isto iria requerer uma longa discussão sobre as pulsões de morte – uma discussão certamente complementária ao presente argumento, mas não essencial para esta introdução.

Nos anos 20 Freud mostra como a passagem da sexualidade polimórfica originalmente indiferenciada das crianças para o estabelecimento de uma supremacia genital se funda na existência de uma organização genital infantil, que reflete a posição da criança na configuração edípica. Abrindo o caminho para a futura organização sexual do indivíduo, a organização genital segue e recapitula as fases caracterizadas pelas pulsões parciais. Para ambos os sexos esta fase fundamenta a supremacia do falo. Tê-lo ou não tê-lo se torna a questão, que determina duas posições diante da castração: por um lado, a crença de ter o falo e a ansiedade de perdê-lo, por outro lado a crença de o haver perdido e o desejo de consegui-lo de volta. Deixando de lado a muito bem conhecida ideia da assimetria dos gêneros no complexo de Édipo, vamos simplesmente recordar aqui o ponto crucial de sua descoberta: o próprio fato de que para ambos os sexos a relação com o falo, estabelecida pela organização sexual infantil, aponta para uma perda ou uma falta fundamental. Independentemente do gênero, a apropriação da sexualidade humana necessariamente se confronta com a castração, necessariamente se confronta com uma perda e uma perda como tal. O complexo de castração está implicitamente associado à configuração edípica e à interdição a ela associada – simbolicamente representada pela lei do pai, como Freud indica, por exemplo, em Totem e Tabu. Tal proibição, que separa a criança de seu objeto, tanto o menino quanto a menina, enfatiza o fato de que a própria existência do desejo está implicitamente relacionada a uma falta, a algo que à medida que é barrado, pode ser desejado. O modo como a confrontação com a ansiedade de castração e a perda imaginária relacionada a ela acontece, determina a futura configuração da sexualidade do sujeito e estabelece a diferenciação estrutural entre as patologias. Nesta articulação, em que começa a emergir a ansiedade de castração, as fobias infantis circunscrevem o campo da futura escolha da neurose ou da perversão.

É precisamente no estudo da organização sexual infantil e sua relação com a ansiedade de castração que Freud introduz um termo específico para representar o modo pelo qual as crianças podem reagir à ausência do pênis na mãe: confrontadas com tal ausência

Elas denegam (leugnen) o fato e acreditam que viram de verdade um pênis na mãe. Elas atenuam a contradição entre a observação e a ideia preconcebida do assunto, ao dizerem a si mesmas que o pênis ainda está pequeno e depois se tornará maior; e assim, lentamente, chegam à conclusão emocionalmente significativa de que, apesar de tudo, o pênis esteve no lugar antes e foi tirado depois” (FREUD, 1923, p.143-144).

Tanto na Organização Genital Infantil (FREUD, 1923) quanto em Algumas Consequências Psíquicas da Distinção Anatômica entre os Sexos (FREUD, 1925), a noção de Verleugnung, de denegação, chega a indicar, de modo geral, uma reação psíquica da criança à descoberta da diferença sexual e à ameaça representada por ela. Nesses mesmos anos, a noção de denegação adquire uma posição central no estudo de Freud sobre o mecanismo de defesa do ego na negação psicótica da realidade. Enfatizando as diferentes relações ao mundo externo da neurose e da psicose, Freud indica que, enquanto a neurose “não denega a realidade”, mas simplesmente “a ignora”, a psicose “a denega e tenta substituí-la” (1924, p.185). Uma distinção fundamental se deduz entre a atitude que “se contenta em evitar” um pedaço da realidade através do recalque e da formação de sintomas, e uma outra que a nega literalmente a fim de substituí-la.

A noção de denegação continuará a ocupar a elaboração de Freud até o fim de sua vida, na sua tentativa de estabelecer uma diferenciação estrutural entre a neurose e a psicose. Mas é precisamente ao perseguir tal diferenciação que Freud encontra uma ‘terceira’ via de relacionamento com a realidade, uma perversão: o fetichismo. Ele descobre que o mecanismo de denegação determina a solução fetichista ante a descoberta da diferença sexual e a ameaça de castração que ela representa. A denegação, assim como aparece no fetichismo, assume uma nova especificidade. Freud observa que, confrontada à ausência do pênis no corpo da mãe, confrontada à castração materna, a criança denega essa ausência, isto é: por um lado a criança nega a percepção e por outro lado toma conhecimento dela (1927). É precisamente esta duplicidade, este simultâneo ‘sim e não’ que caracteriza o mecanismo Verleugnung no fetichismo. Chega-se assim a um compromisso, um compromisso que é apenas possível, como Freud o coloca, sob a dominação das leis inconscientes do pensamento (1927). Através de um deslocamento no ato da percepção – um deslocamento do olhar, por exemplo, da visão dos genitais da mãe, para seu cabelo, seu pé, seus sapatos – o fetiche se constitui ao ‘tomar o lugar’ do pênis ausente. Como um substituto daquilo que está faltando, ele representa tanto a “lembrança” do horror à castração quanto um “testemunho do triunfo” sobre a sua ameaça, uma “proteção contra ela” (FREUD, 1927). Sua existência tanto confirma quanto nega uma ausência. Como o fetiche é, geralmente, desconhecido pelos outros, o acesso a ele permanece aberto e a satisfação sexual ligada a ele é facilmente acessível. Paradoxalmente, então, através da sua solução para o dilema da castração, os fetichistas podem alcançar facilmente o seu objeto, podem obter sem esforço aquilo que os “outros homens têm que cortejar e trabalhar duro para conseguir” (FREUD, 1927, p.154).

Mais tarde, no entanto, Freud descobre que há um resíduo para a perfeita operação fetichista: a cisão do ego (1938). Confrontada a um conflito entre a demanda por parte da pulsão e um obstáculo ou uma proibição na realidade – a insistência, no exemplo de Freud, à renúncia de sua satisfação masturbatória em face da ameaça de castração –,

a criança não toma nenhum desses caminhos, ou melhor, toma ambos simultaneamente, chegando assim à mesma coisa... Por um lado, com a ajuda de um certo mecanismo ela rejeita a realidade e recusa aceitar qualquer proibição; por outro lado, com o mesmo fôlego ela reconhece o perigo da realidade, assume o medo daquele perigo como um sintoma patológico e tenta, subsequentemente, se livrar desse medo” (FREUD, 1938, p.275).

O triunfo sobre a castração “é obtido pelo preço de uma fenda no ego que nunca cicatriza” (idem, p.276). No exemplo de Freud, o remanescente do mecanismo da denegação é um medo, uma atitude fóbica, que persiste, embora deslocada, junto à persistência da satisfação sexual. Dessa forma, a solução do perverso ocasiona sua contiguidade com a fobia. Já que a maneira pela qual a confrontação com a castração acontece decide a estrutura da sexualidade do sujeito, a ansiedade de castração constitui a base comum para a emergência da neurose e da perversão. Ao revelar sua contiguidade com a fobia, o fetichismo descortina a história de sua origem junto à sua diferenciação estrutural da neurose, manifesta na especificidade do mecanismo de denegação da diferença sexual. Talvez seja por causa da experiência com essa ansiedade residual que o psicanalista seja procurado por pessoas que, se não fosse por isso, seriam perfeitamente ‘ajustadas’ à sua solução ‘perversa’.

É importante salientar que, começando por seu trabalho de 1927 sobre o Fetichismo, Freud sempre irá mencionar a denegação da diferença sexual como uma especificidade do fetichismo. Ele não mais se referirá a ela como uma reação psíquica geral da criança à ameaça de castração. Por outro lado, o fenômeno da cisão do ego, do qual o fetichismo constitui “um assunto particularmente favorável” de estudo (FREUD, 1938, p.203), revela-se como um mecanismo psíquico comumente partilhado pela neurose e a psicose (ib.). A denegação das percepções, na tentativa de conseguir um distanciamento da realidade ou da urgência da pulsão, representa, de acordo com os artigos finais de Freud, uma das principais linhas de defesa do ego infantil. No entanto, se é verdade que a cisão do ego é um fenômeno comum a diferentes patologias, é também verdadeiro que Freud enfatiza como a distinção entre neurose, psicose e perversão pressupõe uma diferenciação topográfica e estrutural do modo pelo qual a cisão acontece. “Os fatos dessa cisão do ego, que acabamos de descrever [ele escreve em Um Esboço da Psicanálise], não são tão novos ou estranhos como podem parecer a princípio. Ela é, na verdade, uma característica universal da neurose que está presente na vida mental dos sujeitos, e que se relaciona a um comportamento peculiar, a duas atitudes diferentes, contrárias entre si e independentes uma da outra. No caso da neurose, contudo, uma dessas atitudes pertence ao ego e a outra contrária, que é recalcada, pertence ao id. A diferença entre esse caso e o outro [fetichismo] é essencialmente topográfica ou estrutural e nem sempre é fácil decidir, num exemplo individual, com qual das duas possibilidades se está tratando” (1938, p.204, grifos nossos). Ao apontar como o fenômeno da cisão do ego é uma característica ‘universal’ da neurose e, podemos acrescentar, do funcionamento da mente em geral, Freud indica que isso acontece precisamente porque esse fenômeno está estruturalmente ligado ao mecanismo do recalque. Na medida em que o inconsciente existe, a censura e o recalque marcam a passagem do processo primário para o secundário, e mostram a natureza do sujeito humano como estruturalmente dividida. De fato, a noção de Freud sobre o recalque primário (1915) como um evento psíquico fundamentando a constituição do inconsciente, torna o recalque universal na mente humana.

Apesar do termo comum ‘cisão do ego’, Freud sublinha como esse fenômeno pode ter diferentes conotações dependendo do modo e do contexto nos quais ele opera. A diferença é estrutural e topográfica, como ele especifica, indicando a importância de manter uma distinção que possa responder aos vários modos pelos quais a psicose, a neurose e a perversão lidam com a realidade. Implicitamente, Freud parece sugerir que a denegação, assim como ela acontece no fetichismo, não envolve uma cisão entre o Ego e o Id, mas uma cisão, uma aberta oposição do ego em si mesmo, no seu trato com a realidade. Freud não vai mais longe no encalço de sua ênfase a respeito das diferenciações topográficas. Ele tanto sustenta a ideia da universalidade do mecanismo da denegação quanto da especificidade estrutural diferente na qual a denegação acontece. Mais especificamente, ele parece desenvolver duas posições: a que classifica a denegação como um mecanismo de defesa geral a ser acrescentado ao recalque, e a outra posição é a que discerne na própria denegação um modo de cisão do ego governado pelo recalque, característico da neurose e diferenciado daquele que opera no fetichismo. A oscilação de Freud não habilita seus seguidores a eliminar o problema privilegiando o ponto de vista da denegação como um mecanismo estruturalmente indiferenciado de desligamento da realidade, operando no mundo externo justamente como o recalque faz no mundo interno. Tal redução põe em perigo a natureza diferencial das afirmações de Freud, que são, sem dúvida, de grande relevância clínica.

Na verdade, à luz do tema das configurações estruturais, vale a pena perguntar por que o caminho privilegiado pelo estudo de Freud sobre o mecanismo de denegação deveria ser precisamente uma perversão. O que caracteriza o fetichismo é a denegação específica da diferença sexual. Com o estudo da organização sexual infantil e a universal confrontação da criança com a ansiedade de castração, esse próprio fato adquire uma significância especial, já que a maneira pela qual tal confrontação acontece fundamenta diferentes configurações sexuais. Como já vimos, na visão de Freud a ansiedade de castração está estruturalmente relacionada à interdição edípica, a qual estabelece um conflito entre a urgência da pulsão e a lei do princípio da realidade, entre o desejo e sua satisfação através de objetos específicos. Desse ponto de vista, a denegação e o recalque são dois modos distintos de lidar com a ansiedade de castração e a lei simbólica nela implicada. Enquanto os fetichistas respondem com uma denegação à oposição entre a urgência da pulsão e uma interdição da realidade, os neuróticos tomam conhecimento de tal oposição e recalcam a pulsão a fim de se protegerem contra o emergente conflito frente à realidade. Ao reconhecer, de imediato, e negar a diferença sexual, a denegação eleva uma contradição a uma condição ética que permite, pelo menos num de seus aspectos, evitar a renúncia de uma pulsão.

Aqui não é o lugar para se retornar à natureza do recalque e aos diferentes caminhos que ele opera numa neurose particular. No entanto, já que mencionei a relação especial que a histeria mantém com a perversão, vale a pena relembrar, como exemplo geral, que, de acordo com Freud, o recalque histérico usualmente opera instigando uma disjunção entre o afeto ligado à pulsão e a pulsão em si mesma. Segundo a posição de Freud de 1915, tanto no caso da histeria de angústia, a “porção ideacional” da pulsão recalcada é deslocada ao longo de uma cadeia de conexão para uma nova representação e o afeto é transformado em ansiedade, quanto na histeria de conversão as duas representações relacionadas à pulsão e seu afeto são recalcadas e é formado um sintoma que condensa em si mesmo o investimento pulsional (1915).

Os modos de recalque e denegação relacionados ao complexo de castração e à interdição edípica implicam em diferentes vicissitudes da pulsão. Se o recalque envolve o deslocamento e a substituição da satisfação que se procura através da constituição de um sintoma, a denegação permite, por sua duplicidade, pelo menos uma possibilidade de satisfação da pulsão sem o recalque e o deslocamento. A esse respeito, o deslocamento da percepção a trabalho da constituição do fetiche não deveria ser confundido com o deslocamento do alvo da própria pulsão. Esta é precisamente uma das razões pelas quais os fetichistas podem obter aquilo que “os outros homens têm que cortejar e trabalhar duro para conseguir”. Do ponto de vista das vicissitudes da pulsão, como uma consequência do trato com a diferença sexual e a interdição edípica, uma diferença estrutural distingue o comportamento do Pequeno Hans (FREUD, 1908) e o do Pequeno Arpad (FERENCZI, 1913). Enquanto o Pequeno Hans, confrontado à ameaça de castração, submete-se à proibição edípica, recalca suas pulsões e desenvolve uma fobia a cavalos, Arpad não apenas tem medo dos galos. Na verdade, denegando a interdição edípica, desafiando seu poder, Arpad age, ele mesmo, como um galo, ele literalmente se torna um galo, destronando seu pai – tanto reconhecendo como negando sua função simbólica. O medo de galos que Arpad apresenta, constitui um resíduo fóbico, o reverso da própria denegação que lhe permite efetuar sua satisfação sem recalque.

De fato, à luz dos dados clínicos, vale a pena se perguntar se o próprio mecanismo da denegação da diferença sexual poderia ser concebido como um elemento estrutural que caracteriza a constituição não apenas do fetiche, mas da perversão em geral. Se é verdade que as perversões aparecem como a regressão para as fases específicas do desenvolvimento libidinal e a fixação nessas mesmas fases, estas mesmas regressão e fixação parecem ocorrer a posteriori (nachträglich), como um resultado da confrontação à castração na configuração edípica. Freud já sugere isso em seu artigo de 1919, Uma Criança é Espancada, num período que precede seu estudo da organização sexual infantil e sua descoberta do mecanismo de denegação: aqui ele indica a possibilidade geral de derivar a perversão do complexo de Édipo, o que agregaria nova “força” para o próprio complexo (FREUD, 1919, p.193).

A ideia de que a denegação sexual poderia constituir a ‘solução perversa’ para o complexo de castração e a interdição a ele relacionada, parece especialmente adequada do ponto de vista clínico. De fato, como uma consequência do mecanismo de denegação, uma persistência daquilo que pode ser chamado de comportamento sexual ‘normal’ permanece paralelo ao comportamento ‘perverso’. Os pervertidos podem ser socialmente bem integrados – como muitos casos da criminologia demonstram, quando o autor de certas proezas se revela como sendo o suspeito menos provável – e clinicamente não é infrequente descobrir, por exemplo, a presença de um fetiche subsequente à manifestação de uma configuração sexual neurótica. O fato de que dois conteúdos psíquicos possam coexistir parece corresponder a uma atitude ética muito específica que permite o acting out das satisfações pulsionais junto à sua restrição em circunstâncias estabelecidas. A esse respeito os perversos não “desligam seu ego da realidade” completamente, ao contrário dos psicóticos, que “tentam substituí-la”. Por outro lado, a própria especificidade da denegação da diferença sexual como um modo parcial de desligamento da realidade, distingue-se do modo parcial do neurótico, da evitação de um conflito com a realidade, graças ao recalque da pulsão.

Se os neuróticos reagem à interdição edípica, à barreira contra o incesto, e à renúncia da satisfação pulsional com um reconhecimento que fundamenta, através do recalque, a constituição dos seus sintomas, a denegação perversa reconhece a interdição apenas com o propósito de desafiá-la interminavelmente. É esse desafio da lei que, muitas vezes, anima o comportamento perverso; um desafio, no entanto, que pressupõe uma compreensão da lei em si mesma, uma tomada de consciência do princípio da realidade. Essa duplicidade, quando representada por uma sutil habilidade de se adaptar às leis da sociedade, ao mesmo tempo em que as burla, tem sido um tema favorito de muitas obras do cinema e da literatura. De fato, a fascinação produzida pelo herói perverso e suas façanhas mostra como ele encena uma satisfação e uma habilidade para persegui-la, fantasiada e/ou recalcada por parte de seu público. Pensemos na magnética atração que os criminosos exercem na cultura popular. É como se a perversão representasse um modo de quebrar o mal-estar na civilização. Citando alguns exemplos literários da duplicidade perversa em relação às leis, só precisamos relembrar os famosos Dr.Jekill e Mr. Hyde, ou o estupendo livro Lolita de Nabokov, no qual o Prof. Humbert Humbert é representado, a princípio, como um personagem socialmente integrado, ou o filme recente Vanishing – no qual um pai ‘normal’ de classe média, de uma família ‘normal’, mascara um sofisticado assassino. Nesse último exemplo, o herói relembra especificamente as primeiras manifestações de seu comportamento como estando associadas à sua necessidade de desafiar a lei: ele explica, por exemplo, que, quando criança, pulava de uma sacada... a fim de desafiar a consequência esperada da lei da gravidade.

Embora muitas teorias contemporâneas afirmem que as linhas divisórias da perversão tenham-se tornado difusas e venham sendo definidas mais em relação ao comportamento do que em termos de estrutura psíquica, a obra tardia de Freud indica um mecanismo que pode distinguir a perversão no nível da estrutura do caráter. Retornando à observação de Freud sobre a correspondência entre as fantasias histéricas e as ações perversas, é possível questionar essa distinção estrutural à luz da relação entre fantasia e ação.

 

Fantasia e realidade

Os diferentes modos de relacionar-se à interdição e ao princípio da realidade parecem afetar, de acordo com Freud, as diferentes maneiras de fantasiar ou agir. Desde que se toma conhecimento de uma ameaça, a ação que permite uma satisfação do desejo é barrada e uma ação substituta é criada. Na visão de Freud, esta substituta constitui uma ação – uma opção de descarga – de um novo tipo. Mas, se esta substituição pode tomar lugar é porque uma certa fantasia está presente para dar-lhe suporte. Freud é muito firme nesse ponto: “Os sintomas histéricos são a realização de uma fantasia inconsciente que serve para cumprir um desejo” (FREUD, 1908, p.163).

A questão, assim, pode ser colocada: Qual é o status da fantasia? Partindo da elaboração do processo secundário e da assunção do princípio da realidade, a atividade psíquica de fantasiar chega a constituir um ‘reservatório’ de prazer no domínio do pensamento. Freud observa que o protótipo das fantasias são os devaneios (1908), os quais funcionam para definir um território para a satisfação imaginária de desejos em oposição à realidade. O fantasiar, de fato, é sempre construído para corrigir a realidade, a fim de propiciar uma realização imaginária, alternativa, do desejo. A esse respeito, o fantasiar é uma resposta ao princípio de realidade, a um obstáculo encontrado no caminho para a satisfação, para uma impossibilidade no nível da ação. Se é verdade que o protótipo das fantasias são os devaneios, quer dizer, produtos de uma atividade psíquica consciente, é também verdade que Freud insiste na existência de fantasias originalmente inconscientes. De um modo muito geral, a fantasia pode ser definida como a trajetória psíquica dos traços mnêmicos que são investidos a fim de atingirem certa satisfação do desejo. Desse ponto de vista, o modelo freudiano do aparelho psíquico mostra a intrínseca conexão entre fantasia, sexualidade e desejo. Freud levanta a hipótese, ou melhor, constrói um ponto de partida para o aparelho psíquico, o qual ele chama de Befriedigungs erlebnis (1900), isto é, a experiência original de satisfação. Tendo por base esta experiência, as fantasias mais fundamentais são aquelas que tendem a reencontrar os objetos de satisfação alucinatória: desse ponto de vista é impossível isolar a origem da fantasia – da combinação de sinais que levam à satisfação – da origem do desejo e da sexualidade. A constituição da sexualidade, como Laplanche e Pontalis observam (1985), ocorre no próprio momento em que a pulsão, descomprometida de seu objeto natural, se volta para a fantasia, ou vice-versa, no próprio momento em que a fantasia provoca a disjunção entre a libido e a necessidade. A primeira ‘ação’ psíquica a satisfazer o desejo está na ordem de uma fantasia, da produção de um objeto alucinatório. Logo, fantasia e desejo estão estruturalmente relacionados. Não deveria nos surpreender, então, a facilidade com que as fantasias adquirem um papel fundamental na sexualidade e na vida humanas, em geral, e na constituição da sintomatologia neurótica em particular. Podemos observar que o mecanismo do recalque, ao impedir a satisfação do desejo por meio de uma ação na realidade, favorece o re-investimento das fantasias assim como a repetição da solução original do aparelho psíquico à urgência da pulsão. Ao permitir a constituição de um “substituto para a realidade” (FREUD, 1924, p.187), a atividade de fantasiar reflete diferentes modos de se relacionar com a realidade. Freud observa que na psicose o mundo imaginário “tenta colocar-se no lugar da realidade externa”, enquanto na neurose “está apto, como na brincadeira das crianças, a se ligar a um pedaço da realidade” (ib.). Mais uma vez a neurose manifesta sua ‘submissão’ ao princípio da realidade e sua tentativa de evitar um conflito com ele. Tendo em vista a função estrutural da fantasia no aparelho psíquico, assim como na própria natureza da denegação, seria incorreto manter a ideia de que na atuação perversa não há espaço para a fantasia. Ao contrário, através de dados clínicos, sabemos que na perversão a chegada à satisfação pode envolver a encenação de componentes imaginários relacionados a fantasias subjacentes; ao mesmo tempo, sujeitos cuja constituição psíquica indica uma estrutura perversa, muitas vezes são particularmente dotados artisticamente – e é bem conhecida a conexão básica que Freud estabelece entre a atividade de fantasiar e a produção de arte. Esta última consideração levanta a complicada questão da sublimação. Recordemos aqui, simplesmente, que ao manifestar a mudança da pulsão sexual para uma meta e um objeto diferentes do original, na visão freudiana a sublimação mostra como a pulsão sexual pode encontrar sua satisfação em qualquer outro lugar que não seja sua finalidade sexual. O que é interessante notar, nesse particular contexto, é que o processo de sublimação permite a satisfação de um impulso sem repressão. Dada a natureza da estrutura psíquica perversa e a ‘técnica’ particular com a qual ela pode se relacionar com a realidade sem reprimir as pulsões sexuais, é possível levantar a questão da predisposição particular da perversão em direção à sublimação.

No caso da histeria, podemos relembrar que os sintomas histéricos representam o resultado de um compromisso entre os impulsos libidinais e os recalcados, e constituem a satisfação de um desejo alcançado através de um deslocamento. Recalque e deslocamento são dois elementos fundamentais que caracterizam a histeria. O próprio sintoma, como metáfora para a fantasia inconsciente que lhe está subjacente, tem o status de uma ação de satisfação. A noção freudiana da neurose como a negativa da perversão se refere, entre outras coisas, à oposição fantasia/sintoma versus ação, sendo que esta oposição aponta mais claramente para a diferenciação estrutural entre dois tipos de ações do que para os dados fenomenológicos ou comportamentais; ao identificar diferentes modos de satisfação, ela aponta para os mecanismos psíquicos que os fundamentam.

Tendo como causa a dialética relação que a neurose mantém com a perversão, uma distinção estrutural entre as duas é crucial para a compreensão e o manejo dos acontecimentos clínicos. Os dados comportamentais das duas não são suficientes para definir a natureza dessa diferença. Sabemos como é frequente que os sintomas histéricos possam ter a qualidade de ações ‘pervertidas’, como em certos casos de automutilação histérica ou em comportamentos sexuais específicos que acompanham, por exemplo, desordens orais histéricas. Por outro lado, uma estrutura perversa, pela própria natureza do mecanismo que a fundamenta, é, muitas vezes, acompanhada de manifestações neuróticas, como, por exemplo, o medo ou a inibição. O fracasso do tratamento pode se dever, entre outras coisas, a uma confusão entre a denegação perversa e uma identificação pré-edípica, ou por se tomar uma fantasia ou um acting out histéricos como um sinal de uma patologia perversa. O próprio fato de que uma distinção estrutural entre a neurose e a perversão pode ser fundamentada no modo pelo qual o sujeito se relaciona com a configuração edípica – aquele modo que decide a relação do sujeito com a castração, com a realidade, com o desejo, e com seus objetos – reflete-se nos diferentes desenvolvimentos da transferência. O mecanismo de denegação e a relação específica que o perverso mantém com a lei – e consequentemente com as figuras parentais, com o superego – estabelecem uma configuração transferencial diferente daquela do neurótico. A má compreensão dessa condição, por exemplo, do desafio específico endereçado à posição do analista como o “sujeito suposto saber”, muitas vezes leva a uma abrupta interrupção do tratamento.

Tentei apresentar aqui uma breve visão geral da elaboração de Freud a respeito da noção de denegação à luz da questão da diferenciação entre a neurose e a perversão. Argumentei a favor de que as diferentes estruturas podem estar relacionadas aos mecanismos psíquicos específicos que manifestam diferentes soluções para a interdição edípica. Tais afirmações devem ser distinguidas daquelas teorias que tratam a perversão como uma consequência dos processos ou identificações pré-edípicos, incluindo aquelas teorias da relação de objeto que desvalorizam o componente fundamentalmente sexual das perversões. Essas posições divergem das afirmações de Freud, de sua ênfase na relação entre o complexo de Édipo e o complexo de castração na constituição das diferentes configurações sexuais, e sua constante concepção da perversão como patologia sexual. O mais importante de tudo isso é que essa visão parece não produzir progressos clínicos. Num período histórico e num país que, muitas vezes, em prol da simplificação, tem presenciado o florescimento de várias visões psicanalíticas pós-freudianas, parece particularmente desejável retornar a uma leitura mais rigorosa dos textos freudianos: apesar de todas essas precauções e contradições, esses textos ainda fornecem a mais efetiva estrutura para a compreensão dos fenômenos clínicos, para a direção e o desenvolvimento de posteriores teorizações.

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência:
274 W 12th St
10014 – NEW YORK
Tel.: (212)691-0019
E-mail: parolapm@yahoo.com

RECEBIDO EM: 20/03/2012
APROVADO EM: 20/04/2012

 

 

Sobre a Autora

Paola Mieli
Psicanalista. Fundou e preside a Après-Coup Psychoanalytic Association em Nova Iorque. Membro do Cercle Freudien (Paris). Leciona no Departamento de Fotografia e Ciências Midiáticas da School of Visual Arts (Nova Iorque) e na Lacanian School of Berkeley (São Francisco). Autora de vários artigos publicados na Europa e na América, co-editou Being human: the technological extensions of the body (Nova Iorque: Agincourt/Marsilio, 1999). Autora de uma coletânea de artigos publicada no Brasil sob o título Sobre as manipulações irreversíveis do corpo e outros textos psicanalíticos (Rio de Janeiro: Contra Capa/Corpo Freudiano, 2002).