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versión impresa ISSN 0102-7395
Reverso vol.34 no.63 Belo Horizonte jun. 2012
Entrevista de Alain Badiou e Elisabeth Roudinesco à Revista Le Nouvel Observateur publicada na França, em abril de 2012
Tradução: Raul Octávio Amaral do Valle
“Critiquem os seus desvios: disso depende a sobrevivência de vocês!”1
Alain Badiou et Elisabeth Roudinesco fazem soar o alarme: a psicanálise se afastou da sociedade.
Porém, mais do que nunca é necessário defender a sua dimensão libertadora.
Le Nouvel Observateur
N. O.: Ao final de uma obra escrita em conjunto (“Jacques Lacan, passé présent”, Seuil, 104 p.) o Sr. lançou um apelo para salvar a psicanálise. O que está ocorrendo de tão grave? (O livro Jacques Lacan, passé présent – Jacques Lacan, passado presente – será publicado em breve no Brasil pela Editora Bertrand. Ele aborda, de forma bem mais completa e detalhada, as considerações dos autores apresentadas na presente entrevista.)
Alain Badiou: A psicanálise é, com o darwinismo e o marxismo, uma das maiores revoluções do nosso tempo. Nos três casos não se trata nem de ciências exatas nem de ciências filosóficas ou religiosas, mas de “pensamentos”: materialistas, ligados à prática, eles transformaram nossa visão do mundo e sofreram o mesmo tipo de crítica. Os ataques contra a psicanálise devem ser compreendidos no quadro de uma crise global da intelectualidade. Uma crise que, se podemos resumi-la, se caracteriza pela tentativa de substituir o “sujeito” pelo indivíduo. O que é o “sujeito”? É o ser humano compreendido como uma rede de capacidades que lhe permitem pensar, criar, dividir, agir coletivamente, ir além das singularidades – um corpo, uma identidade, uma posição social, pulsões – mas que não se reduz a isto. Ser sujeito é circular entre a singularidade e a universalidade, e é sobre este distanciamento que a psicanálise estabelece sua ação: colabora com o indivíduo para tornar-se um sujeito pleno. Nesta medida trata-se de uma disciplina emancipadora, antes de ser terapêutica.
N. O.: Esta dimensão está realmente ameaçada?
Alain Badiou: Atualmente dizem que ser um indivíduo é suficiente. É o discurso do liberalismo dito democrático e liberal, mas que produz indivíduos maleáveis, submissos, doentes, incapazes de ações comuns: indivíduos privados da capacidade de ser sujeito. Pois o capitalismo não produz sujeitos: seu único interesse é o apetite animal do indivíduo. Este é também o discurso da neurologia, que pretende reduzir o indivíduo a sua dimensão neuronal. Criticando os sábios que, no século XIX, acreditavam poder deduzir os caracteres de um indivíduo a partir da forma de seu crânio, Hegel disse que, para eles, o espírito é um osso. Atualmente a neurologia diz: O homem é um grande saco de neurônios. Isto não constitui um avanço! Atingimos um novo cientificismo submetido desta vez ao desenvolvimento do capital. No campo do psiquismo somente a psicanálise, creio, está em condições de nos preservar desta ameaça. Mas – e esta é a segunda parte do nosso apelo – tenho a impressão que os psicanalistas, aprisionados em suas querelas internas, não fazem o que é necessário para se defender. Eles precisam encontrar a forma de satisfazer a nova demanda que lhes é dirigida sem ceder a este neopositivismo. Eles estão imobilizados: cabe-lhes dar um passo à frente.
N. O.: Elisabeth Roudinesco, a Sra., que defende a psicanálise há longo tempo, como chegamos a este ponto?
Elisabeth Roudinesco: Inicialmente a psicanálise, como formação de psicopatologias, é ensinada nos departamentos de psicologia, que não têm a capacidade de levar em conta o inconsciente e não dispõem da formação adequada à sua compreensão. Dominada pela ciência médica, a psicologia obedece a critérios que nada têm a ver com as ciências humanas. Outrora, para tornar-se psicanalista, era necessária uma formação clínica e uma sólida cultura filosófica, histórica e literária. Ao inscrever a psicanálise em uma lógica de profissionalização, nós destruímos sua transmissão como pensamento. Por outro lado, há trinta anos, a maioria dos psicanalistas era psiquiatra por formação e, por consequência, clínicos da alma; atualmente, são psicólogos. A psiquiatria se aliou a terapias cognitivas e comportamentalistas (TCC), que remetem a uma concepção do homem reduzida a seus neurônios. É claro que as patologias podem ter uma dimensão orgânica. Mas, mesmo nestes casos, o medicamento não é suficiente: é também necessário levar-se em consideração a parte subjetiva do paciente.
N. O.: Qual é a parcela de responsabilidade dos psicanalistas?
Elisabeth Roudinesco: Eles não produzem mais obras teóricas. Suas sociedades funcionam como corporações profissionais. Condenar a homoparentalidade, a procriação assistida ou o poder das mães contra a função paterna é uma situação complicada: não cabe aos psicanalistas se instituírem como soldados da boa conduta em nome do complexo de Édipo. Eles realizam diagnósticos ao vivo nos meios de comunicação, e abandonam a questão política: eles são majoritariamente estetas céticos, desengajados da sociedade. Pretendem, sobretudo, tratar os sofrimentos através de um modelo antigo. As patologias mudaram. A psicanálise nasceu da neurose e da histeria, dois sintomas próprios das sociedades marcadas pela frustração sexual. Atualmente, o que faz sofrer é a relação consigo mesmo: nota-se isso pela importância atribuída ao narcisismo e à perversão. No tempo de Freud, os pacientes eram os grandes burgueses que dispunham de tempo e de dinheiro, coisas de que carece o nosso público, menos elitista.
N. O.: Então, como se adaptar?
Elisabeth Roudinesco: O “passo à frente“ de que nos fala Alain Badiou seria escutar esta nova demanda. Creio ser possível, no enquadre da psicanálise, conduzir terapias de curta duração com sessões longas, como fazia Freud, nas quais se fale às pessoas com empatia. A análise clássica ficaria reservada para aqueles que assim o quisessem. Nem todo mundo deseja explorar tão profundamente o seu inconsciente. Não estamos mais em 1900; a psicanálise faz parte da cultura e as pessoas sabem que possuem um inconsciente. A demanda não é mais descobri-lo, mas solucionar uma situação concreta. A nova geração de analistas deverá fazê-lo e se não o fizerem não terão mais pacientes. É a esta geração que nos dirigimos.
N. O.: Não é isto que dizem os pais das crianças autistas?
Elisabeth Roudinesco: O desamor não vem de qualquer lugar. Ainda assim, não se pode aceitar todas as críticas. Por exemplo, assistimos a um fenômeno novo: os doentes querem decidir sobre o tratamento e consideram em especial que seus episódios delirantes fazem parte de sua identidade. Eles não veem por que deveriam ser controlados pelos medicamentos sob o pretexto de que escutam vozes. É nisto que é preciso escutá-los. Mas, estamos indo em direção à transformação do paciente em senhor do seu destino, o que não é desejável. Nisto ainda, os psicanalistas têm uma parcela de responsabilidade, porque ao se fecharem em suas torres de marfim, perdem sua autoridade. No essencial, o que foi perdido pelas sociedades psicanalistas foi a posição de mestre em proveito de uma posição de pequenos chefes.
N. O.: O que se entende por “mestre”?
Elisabeth Roudinesco: A posição de mestre permite a transferência: o psicanalista é “suposto saber” sobre aquilo que o analisante irá descobrir. Sem isto a busca da origem do sofrimento é quase impossível.
N. O.: É realmente necessário passar pela restauração do mestre?
Alain Badiou: O mestre é aquele que ajuda o indivíduo a se tornar sujeito. Pois se admitimos que o sujeito emerge na tensão entre o indivíduo e o universal, é evidente que ele necessita de uma mediação para avançar em seu caminho. E, portanto, de uma autoridade. A crise do mestre é a consequência lógica da crise do sujeito, e a psicanálise não escapou dela. É preciso restaurar a posição do mestre, e engana-se quem acha que podemos evitar isso principalmente, e sobretudo, numa perspectiva emancipatória.
Elisabeth Roudinesco: Quando o mestre desaparece ele é substituído pelo chefe, pelo autoritarismo, e isso sempre termina, cedo ou tarde, no fascismo – a história, infelizmente, já nos provou isto.
N. O.: A psicanálise, o Sr. diz, faz parte das ciências humanas e não da avaliação científica. Mas, diferentemente de outras ciências humanas, ela se propõe cuidar e ser paga por isto.
Alain Badiou: Os políticos não cessam de solicitar aos sociólogos e economistas – remunerando-os! – relatórios a partir dos quais eles elaboram medidas que têm efeitos concretos sobre a vida dos cidadãos. Tomemos a economia: ela vai de fracasso em fracasso e, entretanto, ela se apresenta sempre como uma ciência. O que dizer da indústria farmacêutica, que tira vantagens do rótulo científico, mas cujos produtos revelam-se, regularmente, muito mais perigosos do que um tratamento analítico? Nossa sociedade está infestada de práticas que se pretendem científicas. É justamente isto que a psicanálise não faz.
Elisabeth Roudinesco: Quando caímos nas mãos de um mau cirurgião não acusamos Hipócrates! Sim, a medicina realizou imensos progressos que beneficiaram todos nós, mas a comparação não tem sentido. Se a psicanálise pode fazer progressos, isto se dará sobre outras modalidades, simplesmente porque jamais seremos curados da condição humana.
N. O.: Portanto há impostores .....
Elisabeth Roudinesco: Há, é verdade, e provavelmente mais do que em outras disciplinas, pois o psiquismo é um domínio menos tangível. As associações de analistas devem editar regras e é este também o sentido do apelo que lançamos: critiquem seus desvios, disso depende a sobrevivência da psicanálise. Caso contrário, caminharemos em direção a uma sociedade orgânica onde seremos tratados como objetos.
Elisabeth Roudinesco, 67 anos, historiadora da psicanálise. Escreveu uma História da Psicanalise na França, em dois volumes, bem como uma biografia de Jacques Lacan (1993). Defende regularmente a psicanálise contra seus detratores, mas criticou igualmente o dogmatismo dos psis, sobretudo no momento do pacs (contrato de união civil estável).
Alain Badiou, 75 anos, filósofo e escritor. Figura de proa do novo pensamento radical, é autor do ensaio Que nome encerra Sarkozy? (2007). Nos anos 60 pertenceu ao grupo que, em torno de Louis Althusser, criticava o marxismo e a psicanálise. Atualmente Lacan permanece uma de suas grandes fontes de inspiração.
Maio/2012
1 Critiquez vos dérives, il en va de votre survie! Texto publicado no Le Nouvel Observateur, n.2476, em 19 de abril de 2012.