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versión impresa ISSN 0102-7395
Reverso vol.34 no.64 Belo Horizonte dic. 2012
ARTIGO
Sonata a Kreutzer
Sonata to Kreutze
Carlos Antônio Andrade Mello
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
A leitura do conto de Leon Tolstói, Sonata a Kreutzer1, oferece mais uma oportunidade de constatar, na ficção, uma confirmação daquilo que a clínica tanto nos revela quando se trata das vicissitudes do amor: o ciúme e suas apresentações. Para isso, a elaboração de Freud em seu texto Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo torna-se um referencial sempre valioso. O personagem criado por Tolstói parece vivenciar o ciúme nas modalidades descritas no texto freudiano, dispostas em camadas, que vão do ciúme descrito como normal ou competitivo até a modalidade delirante. Sua história tem um desfecho semelhante a muitos daqueles noticiados pela mídia em nossa contemporaneidade.
Palavras-chave: Amor, Ódio, Ciúme normal ou competitivo, Ciúme projetado, Ciúme delirante, Paranoia, Impulso homossexual, Bissexualidade.
Abstract
Leon Tolstoi's Kreutzer Sonata gives us the opportunity to recognize, through fiction, the confirmation of something that we frequently witness in clinical work when dealing with the vicissitudes of love: jealousy and its forms of presentation. There being, Freud's development in some neurotic mechanisms in jealousy, in paranoia and in homosexuality has become a valuable reference. The character created by Tolstoi seems to experience jealousy in the very manner described in Freud's writing; layers are exposed that range from what could be described as normal or competitive jealousy to that of delirium. His history ends in a way that is similar to many headline stories that are published and broadcast in contemporary media.
Keywords: Love, Hate, Normal or competitive jealousy, Projected jealousy, Delirious jealousy, Paranoia, Homosexual impulse, Bisexuality.
Na sala de armas de um castelo, em Chipre, Iago prevenia Otelo:
Ah, cuidado com o ciúme;
É o monstro de olhos verdes que debocha
Da carne que o alimenta. Vive o corno
Ciente feliz, se não amar quem peca:
Mas como pesa cada hora àquele
Que ama, duvida, suspeita, e mais ama!2
Inútil advertência! Uma das vicissitudes do amor, o ciúme é parte indissociável deste e, para Freud, “é um daqueles estados emocionais, como o luto, que podem ser descritos como normais” (FREUD, 1922/1969, p.271). Ancorado na clínica, afirma que se alguém não o admite em si, fica patente que, fruto de intenso recalcamento, nessa pessoa, o ciúme desempenha papel mais importante ainda no plano inconsciente.
Um anônimo trovador provençal já cantara o amor como engodo e inconsistência, que carece da posse e do ciúme para encarnar-se e dar aos homens alguma ilusão de sua existência. Ao longo do conto de Tolstói, Sonata a Kreutzer, podem-se identificar ali alguns aspectos da importante elaboração de Freud (1922/1969) em Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo.
Numa longa viagem de trem, pelo interior da Rússia, o narrador encontra um tipo sorumbático, um cavalheiro grisalho que se dispõe a contar sua história, já enunciada de chofre, ao se apresentar: Pózdnichev – aquele que matou a própria esposa.
Entre um gole e outro de chá, para combater os rigores do frio, começa narrando a pureza em que vivia até a mocidade, quando se entrega ao que denomina uma vida de devassidão, a fumar, a beber e, com mais ênfase, aos prazeres extraídos do contato com a mulher:
“Lembro-me de que imediatamente, lá mesmo, ainda antes de sair do quarto, me senti triste, triste, de modo que dava vontade de chorar, chorar a perda da inocência, a minha relação com a mulher estava arruinada para sempre. Sim, a relação natural, singela, com a mulher estava arruinada para sempre. Desde então, não havia mais em mim, nem podia haver, uma relação pura com a mulher. Tornara-me o que se chama um libertino. E ser libertino é uma condição física, semelhante à condição de morfinômano, bêbado, fumante. Assim como um morfinômano, um bêbado, um fumante, não são mais gente normal, um homem que conheceu algumas mulheres, para seu prazer, não é mais uma pessoa normal, mas está estragado para sempre: um libertino” (TOLSTÓI, 2000, p.152).
Aos trinta anos, já predisposto a se casar, durante um passeio encontra Lisa, uma jovem encantadora, por quem se apaixona irremediavelmente.
Passam-se anos, vêm os filhos, o casal vive entre conflitos, reconciliações, queixas de tédio, e da parte do marido foi se desenvolvendo uma crítica impiedosa acerca de sua mulher e de todas as mulheres.
Enfim, fala do ciúme que é confessado como existente desde sempre, mas até então poderia ser enquadrado naquele tipo já descrito acima por Freud como sendo o ciúme normal. Talvez essa seja mesmo a forma mais habitual como o ciúme é retratado. “O ciúme, quase sempre, não passa de uma inquietante necessidade de tirania, exercida sobre as coisas do amor” (PROUST, 1954, p.106, trad. do autor).
Uma busca pela palavra ciúme e suas acepções em nossa língua e também em outros idiomas pode ser contribuinte. O termo latino zelumen, zeluminis nos dá, em português, além de ciúme, a palavra zelo, que expressa muito bem a valorização e o cuidado para com o objeto amado.
No alemão, Eifersucht pode ser desdobrado em Sucht, mania, vício, dependência, e Eifer, zelo, fervor. Em francês e inglês, os termos muito parecidos jalousie e jealousy têm uma curiosa homofonia com o substantivo português gelosia, espécie de tapume feito de estreitas ripas de madeira entrelaçadas, treliça, através da qual se pode ver sem ser visto e era o recurso usado no Oriente para resguardar da visão alheia as mulheres do harém.
Voltemos à viagem e à história que agora encontra Lisa, aos trinta anos, assim descrita pelo marido:
“Estava na plena força de uma mulher de trinta anos, que não dá mais à luz e que está supernutrida e excitada. O seu aspecto causava perturbação. Ao passar entre os homens atraía os seus olhares. Parecia um cavalo por muito tempo parado, supernutrido, e que foi atrelado, tirando-se-lhe ao mesmo tempo o freio. Não havia nenhum freio, como não existe nenhum em noventa e nove por cento das nossas mulheres. Eu sentia isso e tinha medo” (TOLSTÓI, 2000, p.187).
Aqui, já podemos voltar a Freud quando se refere ao ciúme denominado anormalmente intenso, como já se começa evidenciar, e que se constitui de três camadas, descritas como ciúme (1) competitivo ou, ainda, normal; (2) projetado e; (3) delirante. Parece que é por onde vai se enveredando nosso sombrio personagem, a partir da maneira como ele passa agora a descrever sua esposa:
“Ocupava-se menos dos filhos, sem o desespero de antes, mas cada vez mais se ocupava de si, com sua aparência... Dedicou-se de novo, com arrebatamento, ao piano, que havia abandonado de todo. E tudo começou por isto... Sim, apareceu este homem... Era, em minha opinião, um homúnculo bem ordinário. E não por causa do sentido que ele teve na minha vida, mas porque realmente era assim. Aliás, o fato de que ele fosse tão ruim, serviu apenas de prova de como ela era irresponsável. Não fosse ele, e seria um outro, isso tinha de acontecer... Sim, era um músico, um violinista; não um músico profissional, mas um homem meio profissional, meio de sociedade” (TOLSTÓI, 2000, p.189).
Se, num primeiro momento, para Freud o ciúme é considerado apenas um estado emocional diante do risco de perda do objeto amado, já nessa modalidade que ainda denomina como normal, acrescenta ou competitivo e considera que é um estado experimentado bissexualmente:
“Embora possamos chamá-lo de normal, esse ciúme não é, em absoluto, completamente racional, isto é, derivado da situação real, proporcionado às circunstâncias reais e sob o controle do ego consciente... é digno de nota que, em certas pessoas, ele é experimentado bissexualmente, isto é, um homem não apenas sofrerá pela mulher que ama e odiará o homem seu rival, mas também sentirá pesar pelo homem, a quem ama inconscientemente, e ódio pela mulher, como sua rival; esse último conjunto de sentimentos adicionar-se-á à intensidade de seu ciúme” (FREUD, 1922/1969, p.272).
O ciúme denominado da segunda camada, o ciúme projetado, “deriva-se tanto nos homens como nas mulheres de sua própria infidelidade concreta na vida real ou de impulsos no sentido dela que sucumbiram ao recalque” (FREUD, 1922/1969, p.272). No conto, embora não haja evidências de infidelidade do personagem depois de casado, este relata com ênfase ao narrador sua vida desregrada, que lhe custava constrangimentos, censuras, enfim, era o que considerava um passado deplorável.
Portanto, já o encontramos bem enquadrado nas duas primeiras modalidades descritas por Freud, e a que resta, a terceira, o ciúme delirante, da mesma forma lhe cai bem. Este é descrito como tendo
“... sua origem em impulsos reprimidos no sentido da infidelidade, mas o objeto, nesses casos, é do mesmo sexo do sujeito. O ciúme delirante é o sobrante de um homossexualismo que cumpriu seu curso e corretamente toma sua posição entre as formas clássicas da paranoia” (FREUD, 1922/1969, p.273).
Há vários trechos do relato muito sugestivos quanto ao componente homossexual do personagem, naturalmente velado por uma posição oposta, aquela de marido atento, vigilante, disposto a tudo para defender seu objeto de amor, sua mulher. Paradoxalmente, acaba por tirar-lhe a vida. Faz lembrar uma fala de Otelo, quando incitado por Iago sobre a infidelidade de Desdêmona: “Preciso ver antes de duvidar. Quando eu duvidar, precisarei de provas. E, uma vez fornecida a prova, não há nada além disso: o fim simultâneo do amor e do ciúme” (SHAKESPEARE, 1999, p.87 ).
E assim relata o viajante a respeito da chegada daquele homem à vida do casal:
“... voltou para a Rússia e apareceu em minha casa. Com seus olhos de amêndoa, úmidos, lábios vermelhos, sorridentes, bigodinho com fixador, penteado da última moda, um rosto bonitinho e vulgar, era o que as mulheres chamavam de boa pinta, e tinha compleição frágil, embora não disforme, com um traseiro particularmente desenvolvido, parecendo de mulher... Pois bem, ele e sua música foram a causa de tudo” (TOLSTÓI , 2000, p.189-190).
“Vi que já nesse primeiro encontro ela teve um brilho particular nos olhos, e, provavelmente em consequência do meu ciúme, estabeleceu-se entre eles uma espécie de corrente elétrica, que provocava uma identidade de expressões, de olhares e de sorrisos... Lembro-me desse instante justamente porque, nesse momento, eu podia não mais o chamar, e, então, não aconteceria nada. Mas eu dirigi o olhar para ela, depois para ele. E não pense que tenho ciúme de você – disse mentalmente à minha mulher – ou que tenho medo de você – disse mentalmente a ele, e convidei-o a voltar uma noite qualquer, com seu violino, a fim de tocarem juntos. Lembro-me do sentimento estranho com que eu olhava a nuca de Trukhatchévski e o pescoço branco, que se destacava dos cabelos negros, separados em direções opostas... Eu não podia deixar de confessar a mim mesmo que a presença deste homem me atormentava” (TOLSTÓI , 2000, p.195-196).
“Eu não podia vê-lo e sofria tremendamente. Mas, apesar disto, ou, talvez, em consequência disto, certa força obrigava-me, contra a minha vontade, a ser não particularmente cortês com ele, mas carinhoso até... Eu devia acarinhá-lo, a fim de não me entregar ao desejo de matá-lo naquele mesmo instante... É estranho como a presença desse homem atuava sobre mim... Eu queria xingá-lo, expulsá-lo, mas sentia que novamente devia ser amável e carinhoso com ele. Foi o que fiz... E apertei com um carinho particular a sua mão branca, macia” (TOLSTÓI, 2000, p.199-200).
Dividido entre o tormento do ciúme e essa postura incontrolável de extrema aproximação com o suposto rival, suportou que a esposa e o violinista cultivassem sua parceria musical e ainda comentou suas impressões após um sarau daquele dueto:
“Eles tocaram a Sonata a Kreutzer, de Beethoven. O senhor conhece o primeiro presto? Conhece? – exclamou ele – Uh! Como é terrível esta sonata! Precisamente essa parte. E a música em geral é uma coisa terrível. O que é ela? Não compreendo. O que é a música? O que ela faz? E por que ela faz aquilo que faz? Dizem que a música atua de maneira a elevar a alma: é absurdo, é mentira! Ela atua, e terrivelmente, digo-o por experiência própria, mas não de maneira a elevar a alma. Ela não eleva nem rebaixa a alma, ela a excita” (TOLSTÓI , 2000, p.204).
Enfim, chegando à casa, inesperadamente, de uma viagem abreviada por seus tormentos imaginários, Vássia Pózdnichev surpreendeu o par numa situação absolutamente trivial, apenas piano e violino em ação, mas isso já foi o bastante para não poupar a vida de Lisa, curiosamente deixando escapar seu parceiro musical, aquele nomeado como causador de todo o mal. Se esse último e trágico episódio denota uma manifestação extrema da terceira forma, a do ciúme delirante, é importante assinalar que, segundo Freud, essa não pode ocorrer isoladamente. “Num caso delirante deve-se estar preparado para encontrar ciúmes pertinentes a todas as três camadas, nunca apenas à terceira” (FREUD, 1922/1969, p.273).
Embora instalado numa confrontação dual, para a estruturação do ciúme é indispensável a entrada em cena de um terceiro, esse Outro. Assim o ciúme que, à primeira vista, pode parecer a mais intensa demonstração de amor, zelo, apego ao objeto amado, certamente oculta uma poderosa força libidinal dirigida ao outro componente da tríade, àquele ou àquela que concreta ou imaginariamente disputa com o portador do ciúme o mesmo objeto de amor.
Portanto, atrás da máscara de um sentimento, à primeira vista, francamente direcionado ao sexo oposto, condizente e valorizado na cultura como a resposta esperada daquele sujeito, se oculta um intenso, poderoso impulso auto, e mesmo homorreferencial.
Contradições, paradoxos, incoerências, discrepâncias, assim costuma ser a vida, até diante da morte.
Bibliografia
FREUD, S. Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo (1922). ESB, v.XVIII. RJ: Imago, 1969. [ Links ]
PROUST, M. À la recherche du temps perdu – La prisonnière. Paris: Gallimard, 1954. Trad. do autor. [ Links ]
SHAKESPEARE, W. Otelo, o Mouro de Veneza. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999. [ Links ]
SHAKESPEARE, W. Otelo. Trad. Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L PM, 1999. [ Links ]
TOLSTÓI, L. Sonata a Kreutzer. In As obras-primas de Leon Tolstói – contos & novelas. Trad. Marques Rebelo, Boris Schneiderman e Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. [ Links ]
Endereço para correspondência:
Av. Brasil, 283/1502 – São Lucas
30140-000 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: carlosaamello@gmail.com.br
RECEBIDO EM: 13/09/2012
APROVADO EM: 17/09/2012
Sobre o Autor
Carlos Antônio Andrade Mello
Psicanalista. Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
1TOLSTÓI, L. As obras-primas de Leon Tolstói – contos & novelas: Sonata a Kreutzer, Trad. Marques Rebelo, Boris Schneiderman e Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p.136.
2SHAKESPEARE, W. Otelo, o Mouro de Veneza, Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999.