SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.34 número64O engajamento político dos “intelectuais” índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Compartir


Reverso

versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso vol.34 no.64 Belo Horizonte dic. 2012

 

RESENHA

 

Pequeno comentário sobre o texto de Sophie de Mijolla-Mellor

 

Brief comment on sophie mijolla's text

 

 

Jô Gondar

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo realiza um comentário crítico sobre as teses apresentadas por Sophie Mijolla-Mellor no texto “O engajamento político dos intelectuais”, valorizando suas inovações e destacando seus problemas.

Palavras-chave: Política, Cultura, Teoria e Prática, Intelectuais.


Abstract

The article makes a critical comment on the arguments presented by Sophie Mijolla-Mellor in the text "The political engagement of intellectuals", valuing their innovations and emphasyzing their problems.

Keywords: Politics, Culture, Theory and practice, Intellectuals.


 

 

Em “O engajamento político dos intelectuais”, Sophie Mijolla-Mellor nos apresenta uma reflexão bastante interessante – e não menos discutível – sobre a responsabilidade política daqueles que se ocupam, em planos diversos, da atividade do pensamento. Gostaria de destacar neste texto duas teses para, a partir delas, desenvolver alguns comentários.

A primeira é a ideia de que o pensamento já contém uma ação política potencial. Esta é a tese central do texto. Atravessando as oposições habituais entre teoria e prática, pensamento e ação, intelectual e homem de ação, Sophie chama atenção para a dimensão do agir que todo pensamento, do mais concreto ao mais abstrato, contém. E usa a teoria psicanalítica para esclarecer a relação entre pensar e agir: todo pensamento traz consigo uma fantasia de ato, engendrada e habitada pelas pulsões. Esta base pulsional, atuando em toda teoria e todo discurso, permite que vejamos, nos teóricos de mãos mais brancas, mais encerrados num gabinete, a presença de uma pulsão erótica e/ou agressiva, de expansão ou de destruição. Assim, Freud podia enxergar a si mesmo como um conquistador, apesar de suas conquistas se realizarem dentro dos limites de seu consultório. E Kant poderia ser descrito como um intrépido revolucionário, ainda que jamais tenha saído dos limites de sua cidade.

A ideia de uma força pulsional expressando-se no pensamento nos convida a interrogá-lo num plano que não é apenas o dos atos imaginados. O pensamento deve ser interrogado como um movimento que se dirige ao mundo real, mesmo que a realidade desse movimento seja potencial. Todo pensamento é um mundo possível, contém um porvir e o desenho de um certo horizonte. Nesse caso, o homem de ação seria aquele que, mais do que aderir às ideias de um pensador, consegue se identificar com a fantasia de ato que seu pensamento contém. Sustentadas no pulsional, a ousadia, a intrepidez e a violência já se encontram presentes no pensar. A pulsão aponta para a brutalidade do texto, ao invés de sua inocência.

Essa tese é igualmente interessante ao ser rebatida sobre a psicanálise e suas instituições. Um exemplo: por que motivo haveria, entre os seguidores de Lacan, uma crítica forte ao discurso do mestre e aos efeitos de grupo, ao mesmo tempo em que se constata, na prática institucional lacaniana, a submissão à figura de um líder teórico, de um chefe de escola? Não estaria já presente, na própria forma pela qual o pensamento de Lacan se constrói, uma potencialidade hierárquica, tendendo à produção de relações de submissão ou de mestria?

Uma segunda tese que se apresenta de maneira forte, derivando da primeira, é a que destaca a potência inumana das utopias teóricas. Uma utopia teórica seria, para Sophie, uma teoria abstrata. E toda teoria abstrata estaria escondendo um profundo desdém pela singularidade e pelo sofrimento das pessoas que a ela deveriam se submeter. Esse seria o seu caráter inumano: “O inumano nasce do desprezo pela singularidade das vítimas que são identificadas ao princípio abstrato. Assim se pode encontrar a inspiração para atos de barbárie vindos de escritos em nome dos quais eles seriam cometidos” (MIJOLLA-MELLOR, 2012). De fato, quanto mais abstrata uma teoria, mais ela desconsidera as particularidades concretas, a subjetividade e as inclinações pessoais. Haveria nesse desprezo uma disposição para a crueldade e a barbárie, que poderiam depois ser cometidas por aquele ou aqueles que abraçam a teoria, mas que já estariam presentes – ao menos potencialmente – nela. Aqui Rousseau, grande defensor da bondade natural do homem, estaria já, com sua teoria do contrato social, preparando a crueldade que seria plenamente exercida por Robespierre.

Podemos nos dirigir agora para a pergunta central do texto: seriam os pensadores responsáveis por aquilo que se exerce em seu nome e pelos atos que nele se inspiram? Seria Nietzsche responsável pelo nazismo e Rousseau pelo terror francês? Sophie responde: sim e não. Sua resposta segue, propositalmente, o modo de funcionamento do paradoxo, que é também o modo de funcionamento do espaço transicional, por ela mencionado no trabalho: “A obra não seria somente produto de um autor, ele mesmo determinado por sua época, mas deveria ser considerada como um ‘espaço transicional’ que não pertence nem ao autor nem àquele que vai colocá-la em prática” (MIJOLLA-MELLOR, 2012). Sophie pensa a atividade política como um processo compartilhado que envolve pensadores e homens de ação; estes últimos se apropriam dos textos teóricos, possivelmente os deformam e os colocam em prática. “A colocação em prática é apenas uma das modalidades da partilha da obra que engendra não somente uma obra da mesma natureza, mas também atos” (MIJOLLA-MELLOR, 2012). Portanto, a atividade política é uma esfera que não pertence apenas ao autor ou ao homem de ação: ela se exerce num espaço transicional – e é justamente aqui que eu gostaria de centrar meus comentários.

A noção de espaço transicional, mencionada, mas não desenvolvida no artigo, é de fato mais afeita à zona de indiscernibilidade entre teoria e prática defendida pelo texto do que a ideia de uma dialética entre pensamento e ato, ou entre intelectual e homem de ação. O espaço transicional é uma noção proposta por Winnicott para designar uma zona intermediária entre o mundo interno e o mundo externo, onde se fazem a brincadeira, o jogo e a experiência cultural compartilhada (WINNICOTT, 1953/1975; 1967/1975). É um espaço de fronteiras indeterminadas, um hiato entre o sujeito e o mundo, aonde vai se dar, permanentemente, um processo de passagem entre eu e não eu. É nesse sentido que o espaço transicional é um espaço potencial – e é assim que Winnicott o denomina na maior parte das vezes: um espaço de passagem do informe para a forma, da potência para o ato, espaço de indeterminação e, ao mesmo tempo, de criação. O que Winnicott destaca como atividade criativa neste espaço não é a produção de representações, mas sim o gesto, erótico ou agressivo, que se exerce sobre a materialidade do mundo.

É neste ponto que a proposta de pensar as bases pulsionais do político – no texto e na ação – vai ao encontro da noção de espaço potencial: mais do que um lugar de discurso, o espaço potencial é um espaço de inscrição de gesto – isto é, inscrição de uma moção pulsional erótica ou agressiva sobre a materialidade que o mundo oferece para suportar ou resistir a esse gesto. A argumentação de Sophie parece afinar-se com essa ideia quando pensa a presença da pulsão agressiva no texto teórico. E é ainda sob uma base mais profunda que essa afinidade se constitui no momento em que Sophie responde de forma paradoxal à pergunta sobre a responsabilidade política dos intelectuais: ela afirma que o pensamento é responsável por aquilo que ele engendra, ao mesmo tempo em que sua realização é uma tarefa compartilhada, engajando outros sujeitos que também desejam colocar ali a sua marca. Portanto, esse espaço compartilhado é um espaço paradoxal. Também assim o é em Winnicott: o espaço potencial se dá entre a fantasia e o fato, entre eu e não eu, separando e reunindo ao mesmo tempo. Em Winnicott, esse paradoxo deve ser suportado, ao invés de ser contestado. Trata-se de uma lógica diversa da dialética hegeliana, já que esta pretende resolver os paradoxos através da formação de sínteses que ganham o estatuto de identidades temporárias. Um espaço potencial, contudo, apresenta um outro tipo de dinamismo, onde não cabem as fronteiras entre pensar e agir, entre teoria e prática. Trata-se de um espaço de limiares, onde não cabem as identidades.

Nesse sentido, me pareceu curioso que no plano da argumentação todo o texto de Sophie se desenvolva numa direção bastante consonante à ideia de espaço potencial, e mesmo aos paradoxos do espaço potencial, enquanto que no plano dos exemplos apresentados – e apresentados para tornar mais concreta a argumentação – haja um retorno às identidades. O texto apresenta inúmeros exemplos de relações entre os intelectuais e os acontecimentos políticos. Começa com Romand Rolland apelando aos alemães, a quem chama de bárbaros, e termina com De Gaulle e o Marechal Pétain, o chefe colaboracionista. Na maior parte desses exemplos, o político ganha a forma de uma peleja entre identidades nacionais, e especificamente entre a França e a Alemanha. Nessa peleja, os alemães são apresentados como o inimigo – a barbárie, o nazismo – e a França como o sujeito em conflito, entre Rousseau e Robespierre. Mas, curiosamente, os pensadores que são convocados para sustentar a argumentação teórica do texto escrevem em alemão: Musil, Freud, Hegel. É como se o texto tivesse duas linhas: uma mais explícita e argumentada teoricamente, que faz o pulsional atravessar pensamento e ato, desfazendo as fronteiras estabelecidas entre individual e social, sujeito e objeto, teoria e prática, trabalhando mais com limiares do que com identidades; e uma outra linha onde essas identidades são recuperadas de maneira não tão explícita, na escolha dos exemplos apresentados – como se houvesse uma concepção do que é político num plano e uma concepção diversa em outro.

Aqui o que está em causa é justamente a concepção do político que alimenta o projeto de Sophie. Foi explicado, desde o início do texto, o que seria um “engajamento político”, mas não exatamente o que seria o “político” nesse engajamento. Pergunto então: o que seria preciso entender aí como político? Sophie faz questão de diferenciar a política do político. Deixa claro que não se interessa pela política em sua dimensão contingente, a de brigas pelo poder, e sim pela dimensão do político enquanto “estrutura da realidade humana”, seguindo a indicação de Paul Ricoeur (RICOEUR, 1995). Mas podemos, neste ponto, rebater o argumento sobre uma das principais teses do texto: pois não se propõe ele a criticar o caráter inumano de toda teoria abstrata, de toda ideia que despreza as particularidades concretas e as inclinações contingentes? Nesse sentido, não seria demasiadamente platônica – ou inumana, como Sophie a denomina – a proposta de separar o político enquanto entidade da política concretamente exercida? É justamente por estar de acordo com a tese de Sophie que não creio na possibilidade de uma concepção “pura” do político enquanto estrutura da realidade humana, desvinculada de uma inclinação política determinada. Sendo assim, a pergunta permanece: qual é a concepção do político – concepção que necessariamente traduzirá alguma orientação política – trabalhada pelo artigo?

Ainda que suas ideias não pretendam estar apoiadas numa causa ou numa ideologia, alguma concepção do político se desenha quando Sophie pressupõe, através de seus exemplos, a existência de identidades nacionais, e o fato de que as ações políticas são exercidas por “grandes homens”, imaginariamente colocados no lugar do pai. Trata-se aqui de uma concepção “disciplinar” (no sentido fornecido por Foucault às sociedades disciplinares) do político, baseada num modelo verticalizado, hierárquico e identitário. Ora, seria preciso levar em conta que hoje as identidades desmoronam também no plano da ação política, e que não dispomos mais de “grandes homens” para realizar um projeto de emancipação global. Para pensar e agir na política hoje, seria preciso, para além das pelejas entre identidades europeias, levar em conta os imigrantes, os refugiados, as minorias que vivem no Norte e no Sul. E se esta organização menos identitária se realiza atualmente na política, podemos pensar, seguindo as ideias defendidas por Sophie, que essa potencialidade já existiria no político enquanto “estrutura da realidade humana”.

Gostaria, então, de perguntar à Sophie: como podemos pensar hoje o engajamento e a responsabilidade política dos intelectuais sem dispor de identidades que funcionem como motor da luta, e sem líderes políticos que a levem adiante? Como pensar hoje a função dos intelectuais a partir dos acampamentos na Praça do Sol ou em Wall Street, movimentos produzidos por aquilo que Negri e Hardt (2004) chamariam de multidão – nem um povo com contornos identitários, nem tampouco uma massa amorfa e carente de um líder, mas uma multiplicidade de singularidades? Como pensar o engajamento dos intelectuais em estruturas de participação horizontal, sem líderes nem representantes específicos? Como se dá esse engajamento quando perdemos o lugar hierárquico e verticalizado de sujeito suposto saber? O modo como o político se constitui hoje não estaria apontando também para os intelectuais um lugar mais modesto? Talvez, ao invés de faróis, o lugar de vagalumes em meio a outros vagalumes, para usar a metáfora de Didi-Huberman (2009).

Ao mesmo tempo, vemos os intelectuais serem convocados para pensar questões que não eram consideradas políticas até então e que, justamente pelo estabelecimento de um laço social mais horizontal, passam a sê-lo. Judith Butler, por exemplo, faz da questão do luto, da perda e do reconhecimento da dor as questões políticas por excelência (BUTLER, 2004). Mostra como a perda revela a vulnerabilidade de todos nós, aposta num laço social construído a partir da precariedade e destaca a importância política de se pensar os processos de constituição do sujeito, não só porque desejamos entender as bases da violência, mas também porque precisamos engendrar movimentos de responsabilização coletiva. Não apenas Butler, mas diversos outros pensadores – Homi Bhabha (1994) e Axel Honneth (2003), para citar apenas alguns – mostram como as lutas políticas integram um fator subjetivo, que é a necessidade primária que todo indivíduo possui de ser reconhecido e respeitado em seu ser e suas dores. Fala-se hoje em afetos políticos, e questões como luto, vergonha e desamparo deixam de se reduzir ao foro íntimo e se tornam problemas públicos. Somos então surpreendidos com o fato de que temas que sempre nos pareceram subjetivos são considerados hoje como assuntos políticos. Isso também não nos levaria a repensar nossa própria tarefa? A tarefa política de todos aqueles que trabalham com o campo subjetivo e social, aí incluindo os professores, os educadores e os psicanalistas?

Tanto o trabalho clínico quanto o trabalho pedagógico podem ser vistos como atividades políticas. Isso sempre foi mais claro no campo da educação. Mas na clínica também tratamos de questões políticas, e num plano que não é abstrato: o plano do desejo e da pulsionalidade vividos na carne. Assim, as questões subjetivas com as quais nos defrontamos são políticas, mesmo quando surgem no seio de uma família, numa escola ou numa relação amorosa. O que está em jogo é sempre quanto os desejos e os afetos podem se expressar diante das injunções que buscam assujeitá-los, tanto pela restrição quanto pelo incitamento. E o modo como vamos encarar as dificuldades e as formas de sofrimento que daí decorrem nos coloca, de imediato, comprometidos ética e politicamente.

 

Bibliografia

BHABHA, H. The location of culture. New York: Routledge, 1994.         [ Links ]

BUTLER, J. Precarious life: the powers of mourning and violence. New York/London: Verso, 2004.         [ Links ]

DIDI-HUBERMAN, G. Survivance des lucioles. Paris: Éditions de Minuit, 2009.         [ Links ]

HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.         [ Links ]

MIJOLLA-MELLOR, S. O engajamento político dos “intelectuais”. In.: Reverso, n.64, Dez./2012. Publicação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.         [ Links ]

NEGRI, A. e HARDT, M. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2004.         [ Links ]

RICOEUR, P. Politique et totalitarisme. In.: La critique et la conviction. Paris: Calmann-Lévy, 1995.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. Objetos transicionais e fenômenos transicionais (1953). In O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. A localização da experiência cultural (1967). In O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua General Cristóvão Barcelos, 24/701
22245-110 – RIO DE JANEIRO/RJ
Tel.: (21)2558-9870
E-mail: jogondar@uol.com.br

RECEBIDO EM: 17/09/2012
APROVADO EM: 28/09/2012

 

 

Sobre a Autora

Jô Gondar
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro – CPRJ. Doutora em Psicologia Clínica. Professora associada do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO.