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versión impresa ISSN 0102-7395
Reverso vol.35 no.65 Belo Horizonte jul. 2013
O corpo imóvel e sua imagem imortal
The motionless body and its immortal image
Carlos de Brito e MelloI; Priscila de Lima CatãoI
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Este artigo pretende discutir a natureza da fruição associada ao fenômeno virtual, produzido pela experiência de usuários de programas informatizados baseados em imagens virtuais. Em sites de relacionamento como o Second Life, a telepresença e a telemediação instauram uma realidade imaterial baseada na simulação, com significativas implicações para o corpo e para o sentido da mortalidade.
Palavras-chave: Corpo, Finitude, Imagem virtual, Narcisismo.
ABSTRACT
This article discusses the nature of the enjoyment associated with the virtual phenomenon produced by the experience of users of computer programs based on virtual images. On sites such as Second Life, the telepresence and its mediation establish an immaterial reality based on simulation, with significant implications for the body and the sense of mortality.
Keywords: Body, Mortality, Virtual image, Narcissism.
Introdução
Toda imagem está inevitavelmente ligada a uma rede simbólica partilhada por sujeitos e socialmente construída; portanto, capaz de revelar “um certo estado do mundo, isto é, uma cultura” (DEBRAY, 1993, p. 15). Não será preciso, porém, recuperar sua história ou proceder a uma “física dos vestígios” (DEBRAY, 1995, p. 21) para entender a relação entre um signo imagético, sua face volitiva, sua força agregadora e a vida social. Desejamos, aqui, compreender uma qualidade de imagem contemporânea e tecnológica, que introduz nova relação entre objeto representado e representação: as imagens virtuais.
Característico do que Santaella classifica como o terceiro paradigma do processo de produção de imagens (SANTAELLA, 2001, p. 15) e do que Virilio denomina era da lógica paradoxal (VIRILIO, 1994, p. 91), o fenômeno virtual se diferencia dos paradigmas e eras anteriores — exemplificados pela pintura e pela fotografia — por apresentar um modo de produção resultante de um modelo numérico. A natureza da representação que observamos nas telas dos computadores é a simulação, feita de uma realidade imaterial de origem calculada e controlada, organizada segundo uma matriz numérica que surge à nossa percepção por meio do pixel.
"O que preexiste ao pixel? Um programa, linguagem e números. O que está implícito no programa? Um modelo. O ponto de partida de uma imagem sintética já é uma abstração, não existindo a presença do real empírico em nenhum momento do processo" (SANTAELLA, 2001, p. 167).
A conexão entre máquinas informatizadas em um sistema de rede torna nossa discussão ainda mais problemática, ao instalar a dimensão da telepresença ou da telemediação. Nos sites de relacionamento como o Second Life, objeto de reflexão deste trabalho, não encontramos apenas representações à disposição do investimento dos sujeitos, mas sujeitos virtuais idealizados e projetados para desempenhar tais representações.
Ao criar um ambiente virtual que simula em vários aspectos a vida real do ser humano, configurando novas inter-relações pessoais e sociais, o programa Second Life se apresenta, em nossa análise, como um recurso disponível aos sujeitos voltados ao cumprimento do programa do princípio do prazer. Diante da possibilidade de solucionar um dos desafios da condição humana — a busca da felicidade e as realizações de desejos — usuários se conectam ao programa diariamente, onde penetram no ambiente virtual sob a forma de avatar, um boneco virtual que simula um ser humano, podendo assumir forma e aparência desejadas, escolher a profissão, namorar, fazer amigos, se transportar, voar, etc.
Neste artigo procuramos, com base em Sigmund Freud, compreender como a utilização do Second Life, ao promover a imersão dos sujeitos em uma dimensão imagética particular, produz certas transformações nas instâncias social e individual da experiência. Interessam-nos, em especial, aquelas relacionadas à finitude e ao corpo.
Seu mundo, sua imaginação
Ao ler O imortal, de Jorge Luis Borges, Zygmunt Bauman estabelece uma condição inequívoca e determinante a partir da qual a experiência humana pode começar e se sustentar: sua mortalidade. Para Bauman, os sentidos conferidos a uma existência só podem se estabelecer tendo em vista a consciência sobre a finitude: todos os esforços dos homens se concentram no breve intercurso que os separam da destruição física.
Em O mal-estar na civilização (1930) Freud analisa com atenção o trabalho que desenvolvemos, desde nossa infância, em prol de nossa preservação. Se, para Bauman, uma vida humana só pode ganhar sentido diante do seu fim, Freud aponta o propósito que norteia essa vida. Em sua opinião, os homens “querem ser felizes e assim permanecer” (FREUD, 1996, p. 85).
Para alcançar essa meta eles devem, portanto, reduzir o quanto conseguirem as fontes de sofrimento e privilegiar aquelas outras que são causadoras de prazer: “Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início” (FREUD, 1996, p. 84).
O autor aponta, entretanto, para a impossibilidade de efetivação desse plano: se a felicidade for conquistada a ponto de se tornar um estado, seu efeito tende a se reduzir drasticamente. A tendência ao fastio que o prolongamento de um prazer provoca cria um paradoxo insolúvel, ao passo que o sofrimento produz ameaças permanentes vindas, afirma Freud, de nosso próprio corpo, que perecerá, das forças destrutivas do mundo externo e dos relacionamentos humanos (FREUD, 1996, p. 84-85).
Vários recursos — isolamento social, intoxicação e sublimação — são apontados por Freud como forma de se proteger contra a infelicidade. Entre eles, o investimento naquilo que Freud chama vida da imaginação tende a recusar as evidências do teste de realidade com a criação de uma zona de intimidade subjetiva onde “a satisfação é obtida através de ilusões” (FREUD, 1996, p. 88). Aliado a esse recurso, relacionamos outro ao programa Second Life, quando se pode tentar recriar o mundo: em seu lugar construir outro mundo, no qual os aspectos mais insuportáveis sejam eliminados e substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos (FREUD, 1996, p. 88-89).
Ora, não nos parece desprezível que o programa Second Life (http://www.second.life.com) se apresente como “um mundo virtual inteiramente criado por seus residentes”: em primeiro lugar, atente-se para o fato de que o site é chamado de mundo; em segundo lugar, para a constatação de que esse mundo é uma criação, e não uma extensão do mundo real; finalmente, para a denominação dada ao usuário — residente. Também não podemos negligenciar o slogan dado ao site, que vincula diretamente a instituição do mundo virtual à atuação do imaginário: “seu mundo; sua imaginação”.
O mundo que nasce das operações digitais e do aparato tecnológico tende a ser uma reação radical a permanecer em uma realidade percebida “como a única inimiga e a fonte de todo sofrimento” (FREUD, 1996, p. 88). Parece-nos inevitável considerar que os esforços por camuflar a morte na vida contemporânea, mencionados por Bauman, integram esse conjunto de estratégias — apontadas por Freud — que visam proteger contra o desprazer. Acreditamos, entretanto, que a obliteração da morte só tenha se tornado possível por meio de uma operação de duplicação.
O duplo
Retomando Freud, com base em seus textos sobre o narcisismo e o fenômeno do duplo, se fazem presentes abordagens que proporcionam melhor entendimento sobre o fenômeno virtual. Sabe-se que traços isolados do narcisismo aparecem em muitas pessoas, além daquelas que sofrem de diferentes perturbações, podendo este reivindicar um lugar no curso normal do desenvolvimento sexual humano; então, o narcisismo primário está presente em todos os sujeitos, quando, na infância, a criança escolhe a si mesma como objeto de amor, numa etapa que precede a plena capacidade de se voltar a objetos externos. O narcisismo secundário emerge através do retorno da libido ao ego, retirada de seus investimentos objetais, superposto a um narcisismo primário, obscurecido por influências diversas. Dessa forma, no narcisismo secundário, o sujeito procura o mesmo tipo de satisfação que desfrutava no nível primário.
Na medida em que o desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narcisismo primário, ocasionado pelo deslocamento da libido em direção a um ideal do ego imposto de fora, o sujeito não se predispõe
"...a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um ego ideal. O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal" (FREUD, 1914, p. 111).
Assim, o narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o qual, assim como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. Por ocasião da superação do narcisismo primário, o duplo recebe um novo significado nos estágios posteriores do ego e se caracteriza pela identificação do sujeito com outra pessoa, numa relação de comunhão, anulação do próprio eu, ou substituição por um alheio, semelhante à proposta do programa Second Life, no qual é criado um universo paralelo povoado por sujeitos “duplicados”, que não estão inseridos em noções usuais de tempo e espaço, onde não se admite a condição finita e limitada do ser humano, onde cada um é autor de sua segunda vida e pode viver novas experiências e legitimar suas fantasias mais diversas. Entretanto, para que a finitude seja imaginariamente superada, o corpo precisa ser protegido, através de sua imobilidade, para se tornar imortalizado.
O corpo e a imagem virtual
Sobre a história das representações da imagem, Virilio elabora um caminho desde a era da lógica formal — da qual a pintura, a gravura e a arquitetura são representantes — passa pela era da lógica dialética, caracterizada pela fotografia e a cinematografia, em que se estabelece a relação da imagem real, verdadeira, com a imagem-tempo capturada pela lente da objetiva, e chega até a lógica paradoxal, iniciada pela videografia, holografia e infografia, onde uma nova logística de percepção é inaugurada. A infografia se caracteriza pela abolição das noções de distância e dimensão, onde espaço e tempo se confundem, ou mesmo são excluídos com a introdução do intervalo da luz, do conjunto de imagens luminosas que leva a uma transmissão numérica, através de pixels, formando uma imagem de síntese, uma imagem da estatística.
A questão do fascínio pela imagem e das vivências que a envolvem não parece ser característica exclusiva da pós-modernidade. Com o movimento documentarista, por exemplo, o uso das imagens na fotografia, na videografia e na investigação policial se resumia a um registro factual, uma prova inquestionável do fato, que dispensava o testemunho. Tal supervalorização da imagem provoca o deslocamento do centro de interesse da coisa para sua imagem. A imagem é a verdade, uma realidade degenerada, e o sentido do real, do espaço real, é perdido.
A utilização da imagem virtual como veículo de interação e comunicação social se experimenta de modo que as fronteiras da imagem virtual se confundem com as da imagem mental, subjetiva. Tal fusão distorce o movimento do que está ao alcance do olhar, tendo em vista a virtual possibilidade do olhar de perto, a distância, onde sujeito e mundo não são mais separados. Além disso, a virtualidade expõe o ser humano através de um aparelho e em tempo real, o que permite “não somente o tele-espetáculo dos objetos expostos, mas a teleação, o telecomando...” (VIRILIO, 1994, p. 93).
Diante dessa construção, os espectadores presentes cedem lugar aos telespectadores ausentes, com níveis cada vez maiores de participação e interação, tal como capacidade paradoxal de promover reuniões a distância de pessoas ou, no Second Life, “alunos-avatares que jamais poderiam sentar ‘lado a lado’ no mundo real” (UNISINOS, 2007, p. 20) em busca da troca de opiniões ou exposição de comportamentos. A ideia de ver sem olhar é abarcada pela elaboração, transmissão e recepção das imagens via computadores, ou seja, uma comunicação de máquina para máquina. Desse modo, a entrada no universo virtual tende a excluir a participação efetiva do corpo e do olhar humanos, restringindo-os à imobilidade, enquanto as imagens instantâneas, ao contrário, se tornam mais rápidas e se multiplicam como um metralhar de imagens luminosas enviadas por programas de simulação da vida real, dando oportunidade ao indivíduo, paralisado, de experimentar virtualmente aspectos do universo real. Dessa preservação do corpo, resta o registro imortal de suas vivências na memória computadorizada. Virilio expõe que:
"...o paradoxo lógico é finalmente o desta imagem em tempo real que domina a coisa representada, este tempo que a partir de então se impõe ao espaço real. Esta virtualidade que domina a atualidade, subvertendo a própria noção de realidade... uma presença paradoxal, telepresença à distância do objeto ou do ser que supre sua própria existência, aqui e agora" (VIRILIO, 1994, p. 86).
Considerações finais
O efeito da relação do sujeito em sociedade, de sua subjetividade e de seus movimentos de busca da felicidade e evitação do sofrimento, tal como foi explicitado através dos escritos de Freud e Bauman, reforça o conteúdo complexo das questões sobre a posição do corpo físico diante das novas formas de experimentação, mais especificamente, do universo virtual.
A captação e a formação artificial das imagens virtuais, transgredindo — como nos mostra Virilio — a nossa capacidade de percepção de tempo e espaço, propicia a inércia do corpo, que, imaginariamente preservado da exposição à vivência real, transfere para a imagem virtual suas amplas possibilidades funcionais, além de eternizá-las, torná-las imortais tanto pela via da exposição do corpo ausente, quanto pela proteção do corpo presente.
Referências
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Endereço para correspondência:
Rua Guajajaras, 910/ 1018 - Lourdes
30180-100 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: cataopriscila@gmail.com
Recebido em: 22/03/2013
Aprovado em: 22/04/2013
Sobre os Autores
Priscila de Lima Catão
Psicanalista. Médica da Família e Comunidade. Candidata em Formação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
Carlos de Brito e Mello
Psicanalista. Escritor. Professor. Mestre em Comunicação Social (UFMG). Candidato em Formação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.