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versión impresa ISSN 0102-7395
Reverso vol.35 no.65 Belo Horizonte jul. 2013
Apontamentos de leituras - O encantamento do jogo (Entre Fort e Da)
Notes on readings - Enchantment game (between fort and da)
Maria Helena Ricardo Libório Barbosa Mello
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Este breve artigo tem como objetivo tratar o jogo Fort-Da como um mais além da expressividade simbólica, isto é, seu caráter de presença do REAL.
Palavras-chave: Fort-Da, Real, Vazio, Memória.
ABSTRACT
This short article aims to treat the game: Fort-Da as a further expression of the symbolic, in other words, treating his character's presence REAL.
Keywords: Fort-Da, Real, Empty, Memory.
Ir mais além...
Quem se interessaria por uma fala nova não transmitida?
O que importa não é dizer, é redizer e, nesse redizer,
dizer a cada vez ainda uma primeira vez.
Ouvir no sentido augusto, é sempre já ter ouvido:
tomar o seu lugar na assembléia dos ouvintes anteriores,
permitir-lhes que estejam novamente presentes
à audição perseverante.
BLANCHOT, 2010, p. 49
1ª Travessia
“O canto é memória:”1 “O menino proferia seu expressivo ‘o-o-o’. Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre “da” a-a-a...2
Nosso pequeno aedo traz em seu canto fonemático a canção “matriz” à qual nós, falantes, estamos convidados a fazer a trajetória do vão. Caminho inexorável da presença sob o fundo de ausência, caminho do “Mais além”..., caminho que só é possível fazer aos tropeços. A vida e a clínica dão provas disso numa mostração cotidiana. Canto poético, musicalidade da letra, que um pouco mais tarde recebe do Outro o significante Fort (fora, lá, em outro lugar) Da (apareceu), assim como recebe para seu ato o nome de “primeira linguagem simbólica”.3
Mas, a combinação harmoniosa e expressiva daqueles sons vocais não é suficiente para sustentar o princípio do prazer: há o vão entre perto e distante. A brincadeira nada inocente do pequeno aedo nos envia a uma certa tomada da memória: a questão da vida da morte.
Maurice Blanchot em “conversa infinita” (título também nada inocente) rascunha uma paisagem à beira da perda de qualquer ingenuidade: “...A memória é de início confusão, ela é “confusa memória”, “ligeira memória”, essa força de alteração que instala em nós, numa proximidade surpreendente, o enigma de uma mudança indefinida”.4
Supomos o enigma além do indefinido no infinito, pois estamos dando um tratamento à vida da morte. Ao vão. E é ainda Blanchot que nos arrasta:
A poesia rememora aquilo que os homens, os povos e os deuses não têm ainda por recordação própria, mas sob cuja custódia permanecem e que é também confiado à sua custódia. Essa grande memória impessoal que é a recordação sem recordação da origem [...] ninguém em sua particularidade tem acesso. É o longínquo. É a memória como abismo.5
Pensamos a memória em abismo, não a comparando ao abismo. A memória em ato, ato de memória, nexum, reatamento, tempos de desaparecimento/aparecimento.
Nossa hipótese é de que a “matriz” do jogo Fort-Da acontece num contínuo em dois tempos, num ritmo que faz cintilação, e talvez aí esteja o seu encantamento.
“Benjamin disse, certa vez, que a primeira experiência que a criança tem do mundo não é a de que “os adultos são mais fortes, mas a sua incapacidade de magia”.6
O jogo, suportando por uma obra da perda talvez convoque apenas o balbucio, o canto fonemático da letra (ó-ó-ó: a-a-a), uma primeira (quem sabe?) invocação ao simbólico, a vida da morte, que tenha a magia de contornar o poço do pavor da ausência. Uma voz: resto a exigir (em nome da bíos) uma jaculação, elementar, primitiva, tênue e eficaz o bastante para fazer simulacro de discurso e que aposte no salto: sístole: diástole.
Atentemos: a philia está causa, possibilitando a estética, que faz laço.
2ª Travessia
Se pinçamos o ritmo do jogo é porque estamos fascinados pelo gozo da repetição tão estranha e tão familiar a nós falantes, tropeçantes, coxos.
O jogo risonho nos indica um além do pavor, repondo em jogo o pior em que a renúncia volta a cruzar o júbilo num ato de autoalteração: exigência de que aquele que joga seja alterado.
Recorremos a Alain Didier-Weill (2011) em sua conferência Acordar, Despertar II que, ao tratar do ritmo na repetição, nos põe em contato com o trabalho possível com a restância do jogo:
Há em questão dois aspectos do ritmo: um ligado ao fato de que isso se repete, e esse é tique-taque do relógio, e um novo ritmo sobre o qual refletimos ontem, e que possui um poder extraordinário de escapar ao repetitivo, transmitindo-nos o sentimento de que isso recomeça...7
Em seguida esclarece que o ritmo é formado por dois tempos:
E se há dois tempos, há dois silêncios. Há um silêncio entre o primeiro e o segundo tempo, e um silêncio estranho entre o segundo e o retorno ao primeiro tempo. O retorno ao primeiro tempo faz com que haja ou não — um recomeço do novo ou, talvez, uma repetição...8
O trabalho de ir além do pavor no jogo, repondo em jogo o pior cruzando a renúncia e o júbilo no silêncio do vão é considerar não a ausência da mãe, mas a ausência na mãe.
3ª Travessia
De quando o objeto se torna inerte, indiferente fora da pulsação do jogo.
Mas nesta terceira travessia certamente estamos mais próximos das margens, pudorosos da densidade das águas, à beira de profundezas absconsas: o que se revela se mantém secreto nos interstícios de silêncio.
Agradecemos ao filósofo Jacques Derrida por nos incitar ao trabalho ainda tratando da restância do jogo, nos detendo no RE. Ele nos diz:
No ponto em que estamos, a pretensa “brincadeira completa” não concerne mais a este ou àquele objeto em sua determinação; por exemplo, o carretel e o que ele supre. Trata-se do re — em geral, do que retornou e do que retorna, do retornar em geral. Trata-se da repetição do par desaparecimento/aparecimento, não somente do reaparecimento como momento do par, mas do reaparecimento do par que deve voltar. Temos que fazer revir a repetição do que revém, a partir de seu revir.9
Assim, o que está sendo examinado não é mais objeto, mas “o retorno de si do retorno, o retorno a si do retorno”.
O que versa na brincadeira é o ritmo do sujeito que brinca pondo em jogo e no jogo seu próprio desaparecimento/reaparecimento, que o retorno ao primeiro tempo faça sua função de recomeço.
Derrida acentua:
É bem isso que se passa, e do próprio objeto re-tornado como sujeito do fort/da, o desaparecimento-reaparecimento de si mesmo: reaparecimento, diremos em francês, de seu próprio carretel, com todos os fios na mão.10
Travessia: movimento, ritmo de inquietante estranheza, obra da perda e quando disto há restância: o tratamento à vida da morte. Ir mais além... se possível.
Referências
AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. [ Links ]
BLANCHOT, M. A conversa infinita: a ausência do livro, v. 3. Tradução de João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2010. [ Links ]
DERRIDA, J. Cartão postal: de Sócrates a Freud e além. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. [ Links ]
DIDIER-WEILL, A. Acordar, Despertar II. In: MAURANO, Denise: NERI, Helonoida; JORGE, Marco Antonio Coutinho (Orgs.). Dimensões do despertar na psicanálise e na cultura. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. [ Links ]
FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920). In: ______. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, 18). [ Links ]
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 238-324. [ Links ]
Endereço para correspondência:
Av. Getúlio Vargas, 54/401 – Funcionários
30112-020 – BELO HORIZONTE/MG
Recebido em: 28/02/2013
Aprovado em: 31/03/2013
Sobre a Autora
Maria Helena Ricardo Libório Barbosa Mello
Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
1BLANCHOT, 2010, p. 50.
2FREUD, (1920)1976.
3LACAN, 1998, p. 277 e 320.
4BLANCHOT, 2010, p. 50-51.
5BLANCHOT, 2010, p. 50.
6AGAMBEN, 2007, p. 23.
7DIDIER-WEILL, 2011, p. 78.
8DIDIER-WEILL, 2011, p. 79.
9DERRIDA, 2007, p. 353.
10DERRIDA, 2007, p. 353.