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versión impresa ISSN 0102-7395
Reverso vol.38 no.72 Belo Horizonte dic. 2016
CLÍNICA PSICANALÍTICA
Atrever-se ou não se atrever a sonhar? Questões sobre terror no campo analítico1
To dare or not to dare dreaming? Questions about terror in the psychoanalytical field
António Alvim
IAssociação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica
RESUMO
Numa perspectiva de campo em psicanálise, a presença de terror no encontro analítico deverá ser encarada como produto da interação de paciente e analista, num palco onde as suas mútuas projeções e introjeções se cruzam de tal forma que é difícil dizer com precisão quem é o terrorista e quem é aterrorizado. Tanto o paciente quanto o analista estarão frente a frente com o desconhecido, potencialmente catastrófico, na experiência emocional do seu encontro; ambos terão de decidir escapar-lhe, abrindo caminho ao terror, ou atrever-se a transformá-lo narrando a sua história. Uma vinheta clínica ilustra o modo como o analista deve pensar a sua responsabilidade nesse processo, como forma de viabilizar a capacidade do campo transformar experiências emocionais aterradoras em narrativas úteis ao pensamento.
Palavras-chave: Experiência emocional aterrorizadora, Campo analítico, Transformações narrativas, Capacidade de sonhar.
ABSTRACT
From a field’s perspective in psychoanalysis, the presence of terror in the analytical encounter should be faced as a product of both parties’ interaction on a stage in which their mutual projective identifications interplay in such a way that it is difficult to say precisely who the terrorist is and who is the terrorized. At different levels of experience and by different ways of expression, both patient and analyst will be facing the unknown of terrifying emotional experiences about their potentially catastrophic encounter; both having to decide either to evade it, giving way to terror, or daring to transform it telling the story. A clinical vignette will be presented as an illustration of the process of working through his position in the field both as terrorized and as a terrorist, enabling the field’s capacity to transform terrifying experiences in useful narratives for thinking.
Keywords: Terrifying emotional experience, Analytic field, Narrative transformations, Dreaming capacity.
Q: Pergunto-me se haverá um caminho psicanalítico para a verdade…
Bion: Nenhum. A psicanálise é só um instrumento técnico,
algo que podemos usar para qualquer propósito que queiramos…
Tudo depende de quem a está a usar…
BION, 2005b, p. 87.
Introdução
Robespierre, pai do slogan “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, declarou à Convenção Nacional Francesa (1794) que,
[...] se a base de um governo popular em tempo de paz é a virtude, suas bases em tempo de revolução são a virtude e o terror – virtude, sem a qual o terror seria barbárie; e terror, sem o qual a virtude seria impotente.
Ou seja: desde que haja o caminho para a virtude, haverá um caminho para o terror… ou vice-versa – “Como pode alguém saber o que produz crescimento e o que é veneno para a mente?” (BION, 1990, p. 47), quando, ética ou insanamente, cada lado crê nas suas próprias justificações, construídas a partir das suas próprias percepções das circunstâncias e das emoções por elas despertas?
Sempre que dada cultura sente as suas fundações e seus princípios seriamente questionados por qualquer outra, tende a considerar-se vítima de terrorismo, reagindo, por sua vez, com algum tipo de terrorismo, mesmo que de aparência civilizada e sofisticada. Não há monopólio no terror: cada lado tem a sua própria cota de ódio pelo estranho ameaçador; cada lado projeta os seus próprios medos no outro desconhecido. De alguma forma – delirantemente – cada lado está sempre e só contra-atacando, e as vítimas do outro lado são danos colaterais, um infortúnio arbitrário legitimado pelo direito de defesa… Não há monopólio no terror, a não ser o da natureza humana; e não há realmente muito a fazer contra esse pressuposto básico do funcionamento humano de ataque/fuga (BION, 1961), senão o esforço coletivo para o desenvolvimento cultural: a única coisa “que podemos ter a certeza de trabalhar contra a guerra” (FREUD, 1933, p. 215).
Amaral Dias considera o conceito freudiano de “disposição para a cultura”, tal como expresso em Thoughts for the times of war and death (FREUD, 1915), como forjado no que chama de ética do sujeito desejante: “não há ética fora do erótico. A disposição para a cultura só pode existir naqueles capazes de construir um vínculo erótico à realidade”, já que “apenas um amor transformativo abre o sujeito ao conhecimento” (AMARAL DIAS, 2005a, p. 144-145), e conclui: “a verdadeira bondade é erotizar o desconhecido” (AMARAL DIAS, 2005a, p. 147). Não será, então, qualquer tipo de desenvolvimento cultural que se erguerá contra a guerra (e o terror), mas um empenhado em fazer amor: isto é, empenhado em processos de triangulação do amor ao ódio e conhecimento (AMARAL DIAS, 1998, 2005a, 2005b), atrevendo-se a amar o desconhecido – no sentido da tolerância e do cuidado, mas também tendo como modelo a relação sexual entre mentes: um contentor, um conteúdo, e o produto transformado e transformador da sua relação, onde experiências emocionais podem florescer de modos imprevisíveis, diferentes pensamentos entrelaçando-se para germinar novos pensamentos (BION, 1962, 1963, 1991; Ferro, 1998, 2006, 2009), resultando numa constante expansão da mente que potencia uma cultura de rêverie capaz de aplacar e transformar a cultura de evacuação (FERRO, 2005), berço do terror.
Numa perspectiva do campo psicanalítico, essa cultura de rêverie desenvolve-se, antes de mais, e emana constantemente do nível bipessoal da situação analítica: a two way affair (BION, 1990) entre paciente e analista, “debruçando-se com o que ocorre entre os dois, em vez de sobre eles” (MOMIGLIANO, 1992, p. 8), e requerendo do analista “[...] um modo de estar na sessão pelo qual partilha com o paciente a construção de significado, numa base fortemente dialógica” (FERRO, 2006, p. 1).
Como nos recorda Bion, a experiência psicanalítica é explorar “o que não conhecemos, e não o já conhecido” (BION, 1990, p. 4). Dessa forma, ambas as personalidades presentes (e formando) o setting analítico encaram, um no outro, as suas janelas para o inconsciente: o inefável núcleo atómico do campo analítico, do qual, inevitavelmente, turbulentas protoemoções irradiam por identificação projetiva (BION, 1976a, 1979), procurando um contentor e transformar-se em sonho (FERRO, 2015). Assim, não é mais possível dizer com segurança “quem é o sonhador que sonha o sonho e quem é o sonhador que o compreende” (GROTSTEIN, 1981), já que, aqui, não há diferença substancial entre analista e paciente – isto é, outra diferença que a da responsabilidade do analista pelo processo analítico, fazendo o melhor para não impor seus pesadelos ao paciente por falta de contenção e de capacidade negativa, o que resultaria não na transformação em sonho, mas em alucinose, promovendo evacuação (BARALE; FERRO, 1992; FERRO, 1999, 2005, 2013).
Fred
Gostaria de apresentar Fred, um rapaz de 15 anos quando nos encontrámos. Foi-me enviado por uma pediatra forense, que o atendeu depois de alguns episódios de raiva contra o pessoal auxiliar da sua escola, a quem acusou de o tratarem de forma injusta, embora não tivesse dado qualquer explicação sobre como ou porquê o fariam. A pediatra pediu-me desculpa por enviar-me um caso como este, com uma elevada probabilidade de droping out e passagens ao ato disruptivas; contudo, assegurou-me, tinha a certeza de que a minha aparência física de homem forte seria um bom dissuasor para a sua tendência violenta; tinha também a certeza de que eu não teria medo dele – e eu não tinha… até esse momento.
Numa entrevista prévia com a sua mãe, fiquei a saber que o Fred veio com ela de uma ilha africana, aos seis anos de idade, sobre o pretexto de procurar melhores condições de educação; a mãe tinha já cá familiares bem integrados, mas o pai não e, não tendo conseguido arranjar uma licença de trabalho, não pôde vir com eles – pelo menos foi o que contaram ao Fred na altura. Na realidade, como veio acidentalmente a descobrir há cerca de um ano atrás – altura em que se agravam os desacatos e se afunda nas notas, porque sempre fora um rapaz arisco embora inteligente e com bom aproveitamento escolar –, o pai do Fred fora apanhado a manter uma relação bígama, criando uma outra família, pelo que fora perseguido e expulso da sua ilha por familiares da mãe. A questão era mais complexa que só a traição matrimonial, envolvendo rivalidades tribais e, assim, embora o modo de vida secreto do seu pai tivesse sido mantido em segredo para o Fred, a sua mãe e os seus familiares demonstravam abertamente uma grande animosidade contra o pai, impedindo-o e dificultando qualquer tipo de ligação que o Fred revelasse querer manter com o pai, pelo que o fazia muitas vezes em segredo, nomeadamente trocando desenhos por correio.
Fred parecia de fato um rapaz mal-encarado. Muito alto para a sua idade, bem constituído fisicamente, demonstrava expressões faciais tensas que, juntamente com uma postura corporal e movimentos desengonçados, davam-lhe um aspecto meio bizarro e selvagem. Não obstante, mantinha-se de cara fechada, queixo enfiado no peito, evitando contato ocular, respondendo laconicamente às minhas tentativas de diálogo com sins, nãos e sei-lás. Por um longo período de tempo não se passou nada nas sessões para além de um turbulento silêncio – ou pelo menos essa era a minha indigesta impressão, porque o silêncio parecia ser uma refeição ligeira para o Fred. Comecei a sentir uma espécie de dor de barriga infantil sempre que se aproximava a hora de receber o Fred, e não era pouco frequente dar por mim a pensar se ele viria ou não…
Sem surpresa, Fred começou a chegar atrasado e, ocasionalmente, a faltar a uma sessão ou outra (tínhamos duas sessões por semana). Num desses dias, olhou-me nos olhos – não sei se pela primeira vez, mas tenho ideia que sim – e pediu-me, num tom calmo e voz clara, se poderia vir só a uma sessão por semana, ou mesmo de 15 em 15 dias, ou uma semana sim e uma não… Reconhecendo uma peculiar sintonia nos nossos sentimentos, respondi-lhe sorrindo que, afinal de contas, podia dizer mais que sins e nãos, mesmo que fosse para dizer não a uma sessão, mas sim a outra; ficava contente por saber que o nosso tempo juntos não estava totalmente perdido, e que havia margem para crescer. Perguntei-lhe, então, o que faria nessas vezes em que gostaria de não vir, e o Fred contou-me como, por vezes, perdia-se no tempo a desenhar e quando dava por isso já era tarde para vir… Perguntei por que não poderíamos nós aproveitar o nosso tempo para desenhar. Podíamos, e assim fizemos.
Fred era muito cuidadoso e meticuloso nos seus desenhos: quase sem riscar o papel, e usando frequentemente a borracha para retocar e corrigir o que, de qualquer modo, eram já traços quase imperceptíveis. Cada desenho levava sessões a ser concluído… mas a seu tempo, suave e lentamente sobrepondo traço sobre traço, estes iam ganhando espessura e definição, e algo perceptível emergia do papel. Percebi que esta teria de ser a minha abordagem também: com toques leves e insaturados, dando-nos tempo e espaço para ir rabiscando a experiência do nosso encontro, deixando-a gradualmente ganhar forma nas nossas mentes, até que figuras possam emergir do fundo e desenvolverem-se histórias a partir delas.
Pela sua história, eu podia fazer uma boa ideia de como Fred sentiria essa partilha do seu desenho comigo. Mas também senti que qualquer revelação desse segredo, nesta altura, poderia ser sentida como um lápis afiado rasgando o papel em que ainda apenas se ia começando o nosso esboço. Seria como acordá-lo bruscamente de um sonho há muito desejado, para a dura realidade do seu vazio (GROTSTEIN, 1981; FERRO, 2015; CIVITARESE, 2014; FERRO; CIVITARESE, 2015): uma repentina diabolização (inversão e destituição do processo simbólico) do seu pai idealizado, uma verdade demasiado crua e dada cruelmente – imaginei uma ilha paradisíaca abruptamente poluída por um navio que não pôde conter o seu combustível, destruindo catastroficamente a sua viabilidade para suster vida. A interpretação precoce, saturada, pode também ela ser um elemento de terror, um conteúdo killer que estilhaça a capacidade contentora (FERRO, CIVITARESE, COLOVÀ et al., 2010; FERRO, 2011; CIVITARESE, 2014); mais que nada, teria de guardar em mim essa turbulência, que se apresentava sob a forma de ânsia em atribuir sentido, em definir rumos, em lançar âncora, e deixar-me navegar nos sonhos que o sonho do Fred me despertavam, salvaguardando, assim, a nossa experiência conjunta (MOMIGLIANI; ROBUTTI, 1992). Deixei-me ficar ao seu lado, em silêncio, enquanto desenhava.
O primeiro desenho de Fred foi uma representação da janela em frente à nossa mesa de trabalho, com vista para a longa fachada de um hotel, cheia de pequenas janelas; na realidade, também podemos ver uma praça larga entre o edifício do consultório e o hotel, mas na representação do Fred apenas constava um face a face de janelas. A minha primeira impressão foi que o Fred estava a representar o seu desejo de sair do gabinete, como se se sentisse enclausurado; mas então, por que desenhá-la fechada? Por que não desenharia apenas a rua? Apercebi-me dos meus próprios pensamentos enclausurados: estava a ser difícil entender o desenho das janelas, mas mais ainda o desejo de comentá-lo e fazer-lhe perguntas... Pensei, então, que talvez o Fred estivesse a mostrar-me como me sentia: o face a face de janelas, em que talvez eu fosse uma mente demasiado complexa, cheia de janelas por onde olhar, cada uma dando para um quarto diferente, onde se abrigavam diferentes emoções e pensamentos… Ou talvez eu fosse uma espécie de hotel onde o Fred poderia descansar, mas também sentir-se sobressaltado por outros hóspedes assaltando a sua intimidade…
Essas ideias, de alguma forma, levaram-me a reparar num aspecto invisível do desenho (quer dizer, presente, mas em negativo): tratava-se de caixilhos de metal emoldurando um vidro; contentores rígidos, que lhe davam uma aparência de fortitude, à volta de conteúdos também eles rígidos, mas que poderiam facilmente partir-se em incontáveis pedaços cortantes, se demasiada pressão fosse feita. O terror acontece quando os nossos medos projetados não encontram transformação, mas são confirmados pela realidade, retornando intensificados como terror: um explosivo terror sem nome (BION, 1962, 1984). Surgiu-me um nome: ‘Janela indiscreta’ (Rear Window, Alfred Hitchcock, 1954); disse-lhe como o seu desenho me lembrou o filme, ele não o conhecia e contei-lhe o argumento. Então, da nossa janela indiscreta, fomos gradualmente tendo acesso a outras vistas, fomos contando histórias sobre o sentimento de estar preso e perseguido, sobre as dores que vêm quando se carrega a turbulência emocional de outros, sobre a indisponibilidade que a dor carrega… Foi como se uma janela se abrisse, renovando o ar saturado das dinâmicas de ataque/fuga (BION, 1961, 1970) que o Fred sofrera grande parte da sua vida – incluindo na nossa pré-história, contaminado que estava da conversa inicial com a pediatra.
Algumas sessões depois, o Fred começou a contar as coisas que mais gostava de fazer, além de desenhar. Uma delas era jogar poker, o que só experimentara fazer no computador. O gabinete tornou-se numa espécie de cassino, onde testávamos os nossos nervos bufando e atrevendo-nos a all-in’s avassaladores. Era uma oportunidade para experienciar e expressar agressividade sem violência, integrando competição com cooperação, já que discutíamos as diferentes estratégias que usávamos para derrotar o outro. Era também uma forma suave de entrar em contato com más mãos e movimentos em falso, más apostas, decepções e desilusões; de aprender a esperar e apreender o outro, ir além da aparência e promover a tolerância ao desconhecido (BRITTON, 2011; BELL, 2011). Mas, mais que tudo, estávamos a arriscar um jogo mútuo e a ter prazer nisso.
Mas o tesouro secreto de Fred – que confessa ser uma espécie de vício censurado pela mãe – era seguir as aventuras da personagem de anime Naruto. Explicou-me que Naruto nascera numa aldeia ameaçada por um monstro, a raposa de nove-caudas. O seu pai, mestre em artes marciais, desafia o monstro, tentando proteger a aldeia e os seus habitantes, mas o monstro é demasiado poderoso para ser vencido convencionalmente. Então, o pai de Naruto recorre a uma prática mágica perigosa, que transferiria o poder do monstro para o seu filho recém-nascido; consegue, assim, derrotá-lo, mas com o custo da própria vida, e condenando o seu filho a carregar a marca da raposa. Os aldeões, longe de ficarem gratos, passaram a olhar Naruto com desconfiança e desdém. Por seu lado, Naruto cresce sentindo-se incompreendido e rejeitado, não obstante os seus esforços por granjear a admiração dos seus pares lutando contra a injustiça. Fred chorou, profundamente comovido, quando reconheci ligações entre a história de Naruto e a sua.
Veio, então, uma nova fase de desenhos, representando Naruto e outros personagens, cujas aventuras me ia relatando. Numa dessas animadas sessões, Fred desenhou uma cena diferente: no lado direito do papel, um corte frontal de uma selva onde, abaixo do solo, se podia ver um emaranhado de raízes que se transformam em árvores que parecem lutar pelo seu lugar ao sol; a selva divide-se ao meio por um rio que deságua numa cascata; na margem esquerda, apenas o vazio da folha em branco, que parece formar uma praia feita de nada. Fred parece ansioso tentando desenhar algo na margem branca, mas nada parecia ser suficientemente bom para aguentar a queda de água do rio suspenso na sua selva. Disse-lhe, então, que o lado vazio seria para as coisas ainda por vir. O Fred pôs esse desenho de lado e começou um outro: num estilo bastante infantil, muito diferente da sua sofisticação habitual, fez uma ilha tropical que parecia navegar num mar calmo, ao nascer/pôr do sol; na ilha, sob palmeiras carregadas de cocos, um pequeno macaco é abraçado por um leão sorridente.
Sem escarafunchar o passado nem as emoções ainda demasiado intensas no presente, pudemos conter e transformar violentas protoemoções, num processo que diria mais de sublimação que de descodificação, que gradualmente foi capaz de ir integrando narrativas capazes de ressignificar o sinal da raposa que o Fred carregava, transformando o mar revolto em que se afogava, numa brisa calma, avivando a ilha onde as suas emoções infantis (ainda sem fala) podem agora crescer de novo. Num dos seus últimos desenhos, Fred representa bem esse nosso processo de nos atrever-nos ao contato emocional profundo, de nos atrever-nos à exploração mútua de territórios desconhecidos, e a recontar a sua história a partir da nossa: em estilo de banda desenhada, Fred faz vários personagens em vários quadros contendo diferentes cenários e ações, com balões de diálogo em branco saindo das suas bocas e cabeças. O vazio de Fred – um autêntico buraco negro sugador de raiva e ressentimento – pôde finalmente dar à costa e ser transformado em pequenos vazios mais possíveis de ser contidos e passíveis de ser narrados: pequenos balões de diálogo insaturados, portadores de experiências emocionais pensáveis e publicáveis.
Atrevendo-nos a ir all-in nesse poker de sonhos que pôde ser o nosso encontro, os balões vazios de Fred falam bem de uma
[...] análise que olha para o futuro, não se focando no passado ou nos conteúdos, mas na transformação do aparelho para pensar do paciente – em quê, pouco importa (FERRO, 2011, p. 9).
Comentários finais
Acredito que em casos como o Fred, o sofrimento vazio causado pelo emaranhado de raízes sem lugar ao sol, secas e quebradiças – raízes socioculturais, mas principalmente o sentimento (ou melhor, a consequência sofrida mas não sentida, e menos ainda pensada) de não ter tido raízes afetivas a florescer no mundo interno do outro –, agravado pela fraca capacidade contentora e transformadora do seu macro e microambiente cultural, torna-os perigosamente vulneráveis e susceptíveis à influência de indivíduos e organizações perversas, como gangs e grupos fanáticos. Tais indivíduos ou organizações podem oferecer-lhes um “sentido de valor e virtude” (WRIGHT-NEVILLE; SMITH, 2009): uma espécie de exoesqueleto defensivo, construído a partir de ressentimento e desesperança, compensando as suas identidades frágeis e seu narcisismo líquido, em troca de uma licença para usar o seu turbulento potencial emocional ao serviço de propósitos invejosos, violentos e destrutivos.
Não obstante todos os ingredientes demográficos, sociológicos, económicos, políticos e religiosos com que se possa cozinhar um terrorista (ou um fanático, em suma, a radical rigidez psicótica), o ingrediente essencial, que sustenta e liga qualquer combinação dos outros, será a ausência ou deficiência da função sonhadora do aparelho mental – o instrumento fundamental para transformar a concretude de “olho por olho, dente por dente”, na troca simbólica de um olho por serviço comunitário, um jogo de bola, uma música: restituição, reparação, criação; enfim, a ética do sujeito desejante, função psicanalítica da mente que se atreve a continuar sonhando, expandindo-a continuamente, desdobrando narrativas vivas e úteis ao pensamento, gerando uma cultura de rêverie em que o amor ao desconhecido seja possível.
Pablo Picasso terá dito que, se todos pintassem, não seria necessário haver programas de reeducação política (ASHTON, 1988). Também afirmou, referindo-se à sua Guernica, que pintar não tem propósitos decorativos: é uma arma defensiva e ofensiva contra o inimigo (ASHTON, 1988). E pintar é, tão só, uma e apenas uma das muitas formas de sonhar – embora os sonhos, tal como a pintura (e permito-me aqui discordar parcialmente de Picasso, apesar de fazê-lo meramente na óptica do utilizador), a arte e a exploração filosófica e científica, podem também servir (e fazem-no frequentemente!) para tornar a vida mais bela e interessante, com mais prazer, dando força e motivos para continuar o duro trabalho que viver por vezes é.
A psicanálise está ao serviço da vida: sem o prazer de sonhar, de sonhar-se, não a serve, podendo ser tão só uma doutrina de virtudes que aterrorizará inevitavelmente quem a prevaricar. Na nossa microcultura psicanalítica, tal como no palco sociopolítico, “tem sido um longo longo caminho a percorrer, mas sabemos que a mudança virá” (COOKE, 1964) quando nos atrevermos a afirmar “eu tenho um sonho!” (KING, 1963).
Referências
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Endereço para correspondência:
E-mail: alvim.mail@gmail.com
Recebido em: 19/10/2016
Aprovado em: 28/10/2016
Sobre o autor
António Alvim
Psicólogo. Psicanalista. Psicodramatista.
AP - Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica.
1 Foi mantida a forma original da língua portuguesa de Portugal, conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).