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versión impresa ISSN 0102-7395
Reverso vol.38 no.72 Belo Horizonte dic. 2016
CLÍNICA PSICANALÍTICA
Infantolatria: atualização do infantil na operação de interdição
Idolary of childhood: updating of the infantile aspects in the interdiction operation
Maria Mazzarello Cotta Ribeiro
ICírculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
O termo “infantolatria” – uma idolatria da infância – instigou reflexões sobre possíveis questões que poderiam desenvolver em algumas crianças um comportamento autoritário e tirânico para com seus pais. Ao mesmo tempo observou-se que, diante de tal quadro, esses pais, invadidos pelo retorno do infantil em si mesmos, isto é, sua forma particular de lidar com a castração, paralisam-se em suas funções parentais, têm dificuldade em exercer a interdição na relação com os filhos, acarretando transtornos quanto aos limites e à construção da castração simbólica.
Palavras-chave: Infância, Idealização, Fantasias parentais, Interdito, Castração simbólica.
ABSTRACT
The term Idolatry of Childhood prompted reflections on possible issues that could develop in some children both an authoritarian and tyrannical behavior towards their parents. At the same time, it was noted that, in such circumstances, these parents, trespassed by the return of the infantile in themselves, that's to say, by their particular way of dealing with castration, they get paralyzed in their parental functions, have difficulty exercising an interdict in relation to children, which can cause disorders to the limits and the construction of symbolic castration.
Keywords: Childhood, Idealization, Parental Fantasies, Interdict, Symbolic Castration.
Nascimento: evento imperioso que atrai um precipitado de fantasias, desejos e dúvidas. Questões se abrem em torno do novo ser, que precisa ser decifrado a cada sinal.
Cada filho é uma experiência única, e os pais, embora pensem ser sempre iguais com todos, são, na verdade, também únicos com cada um.
A convivência com uma criança é algo arrebatador, mas nem por isso fácil. Sua chegada modifica a rotina da casa, os planos e a relação entre os membros da família. Será diferente também se ela é única ou se vai dividir esse espaço familiar com outras crianças.
Mesmo antes de nascer, a criança já é falada e tem um lugar determinado no imaginário dos pais. Desde a concepção, mais precisamente, desde um tempo imensurável, eles tecem seu perfil, imaginam como vai ser, o que desejam para ela, com quem vai se parecer, que nome vão escolher, não escapando de uma avalanche de significação de cada nome sugerido. O desejo dos pais, singular em cada gestação, impera nas relações objetais que serão desenvolvidas. Ele é de vital importância, assim como ter um projeto para esse filho, sonhar, apostar, depositar nele um olhar de confiança.
Na Antiguidade, na Idade Média e ainda no período colonial brasileiro, a criança não tinha um lugar de destaque na família. Sempre foi cuidada e amada, mas a sociedade não tinha uma consciência de suas peculiaridades naturais. O lugar principal na família era dado ao pai, e a criança ficava a cargo das amas e dos empregados da casa, e à mãe cabia fazer funcionar esse dispositivo; só mais tarde, é que ela se tornou a responsável pela sua educação. Essa mudança de estatuto ocorreu à medida que se foi verificando os efeitos e as consequências das experiências da infância na vida adulta. Vários pensadores se dedicaram a esse tema, mas foi a descoberta da psicanálise sobre a importância da vida psíquica da criança, das marcas impressas no inconsciente e seus efeitos na vida adulta que despertou os educadores para uma maior atenção à qualidade e às consequências das vivências na infância. Esse avanço na ciência do comportamento humano deu crédito ao ditado “A criança é o pai do homem”, do poeta inglês, William Wordsworth, confirmado nas palavras de Freud:
“[...] a psicanálise foi obrigada a atribuir a origem da vida mental dos adultos à vida das crianças” (FREUD, [1913] 1980, p. 218).
A “sacralização da infância”, sua valorização, é um movimento recente, que se deu a partir do século XVI. A infância passou a ser considerada como
[...] o período miticamente feliz – livre de obrigações e responsabilidades – que fez das crianças objeto de contemplação e agrado, herdeiras dos anseios e da insatisfação dos adultos (CIRINO, 2001, p. 21).
O recém-nascido, dependente do adulto, precisa ser cuidado e atendido nas suas demandas. O bebê, em seu desamparo estrutural, recebe do Outro, o Outro do desejo e da demanda, um banho libidinal que lhe faz marcas. Sua palavra libidiniza o corpo biológico e o transforma em corpo erógeno, onde as pulsões parciais se expressam ao longo das zonas erógenas distribuídas pelo corpo. Marcado pela linguagem, surge o sujeito dividido, que nessa operação, perde parte de si, perde, segundo Lacan ([1962-1963] 2005, p. 139), “uma libra de carne”, que cede ao Outro. O que se descola do sujeito é o objeto perdido, o objeto a.
Citando a expressão “Sua Majestade, o bebê”, Freud ressalta o ápice da vivência narcísica infantil (FREUD, [1914] 1980, p. 108). Porém, é do convívio familiar que a criança assimila as normas e as expectativas sociais, na medida do seu desenvolvimento neurológico, sensório-motor, cognitivo, alimentar e de hábitos higiênicos. É pelo amor, pela segurança nos laços afetivos que uma criança se deixa educar e se socializa.
A infância, assim estampada, faz com que as figuras parentais sejam tocadas no âmago de suas identificações. Reedita nelas, o infantil, isto é, a forma particular e peculiar de cada um lidar com a castração. Os personagens dessa história não escapam das vicissitudes desse percurso libidinal. O significante paterno reedita na criança a falta original através de sua eficácia no imaginário materno; e esse é o solo para se instalar a castração simbólica. A metáfora paterna vem confirmar a constituição do sujeito nesse ser, que um dia nasceu como “um pedaço de carne”, aberto às inscrições.
É esperado nos primeiros anos de vida, que a família viva em função da criança e a atenda em suas necessidades. Essas, além de decifradas, são também cifradas e nomeadas pela mãe ou outro adulto que desempenhe essa função. O que não quer dizer que essa situação deva se perenizar. A partir dos dois anos de idade ela já tem um desenvolvimento suficiente para perceber a existência de um mundo à sua volta, onde as pessoas têm interesses e necessidades diferentes dos dela e, principalmente, já é capaz de suportar o não.
Isso é diferente de deixar a criança entregue ao sabor do destino. Ela não é um adulto em miniatura. Não sabe ainda como dominar e integrar todos os seus impulsos. Necessita do “adulto experiente” (FREUD, [1895] 1980, p. 422) na função de pais responsáveis por sua educação, com discernimento e maturidade suficientes para acolher as características e os impasses próprios da infância, sem se misturar e competir com ela, regressivamente.
O comportamento que é chamado de infantolatria é a consequência de uma atitude de idolatria, uma paixão exagerada, excessiva por um objeto, a criança, ou melhor, a infância, considerada pelos adultos como o paradigma do tempo feliz, pelo qual nutrem uma nostalgia e um desejo de retorno. A criança passa a ser investida, não como um sujeito, dividido em sua essência, mas como um representante real de uma inscrição imaginária de um tempo sem castração!
A criança passa a exercer o comando autoritário e controlador sobre os pais. Algo aconteceu na relação pais/filho e até mesmo, entre os pais. Impossibilitados, pais e filhos, de administrar seu caos pulsional, o excesso de liberdade dado à criança a torna um tirano dentro de casa.
As figuras paternas, na sua intenção de tudo suprir ao filho, aquele que supõem suprir suas próprias faltas, acabam por levar o pequeno ser a uma busca incessante de satisfação, sem, no entanto, alcançá-la. A infantolatria acaba por gerar um quadro de comprometimento na criança do equilíbrio das pulsões de vida e de morte, com determinações múltiplas.
Permite-se que a criança, mesmo sem ter uma experiência de vida que lhe dê um conhecimento dos fatos, determine para os membros da família o que devem fazer e quando fazer, não admitindo ser contrariada. Os pais se colocam inteiramente à disposição da criança, tornando-se súditos dela, inteiramente submissos.
Assim se mostrou, numa escuta clínica, uma mãe, ao relatar que costumava não almoçar se seu filho, 5 anos, não permitisse que ela se assentasse à mesa com os demais. Não se trata de comportamentos ditos hiperativos, cujo diagnóstico também tem suas reservas! Constituem situações extremas de tirania infantil e esmaecimento do adulto!
Esse adulto parece temer frustrar a criança e faz da sua vida uma renúncia de projetos pessoais e conjugais. Nessa situação, deixa as decisões nas mãos da criança e, não conseguindo colocar limites a ela, confunde amor com permissividade, tenta agradá-la em tudo, julgando que o mundo é que é injusto e exigente para com ela. Em geral, não aceita as advertências de outros adultos que com ela convivem, na escola, por exemplo.
Não é a criança quem decide ser assim. O que ela busca é segurança e amor dos pais, que, temerosos de perder o amor do filho, incorrem na inoperância da lei! Os desejos podem ser atropelados por dificuldades emocionais. Os adultos podem não reconhecer suas inseguranças, seu sentimento de culpa inconsciente, suas frustrações, seu desejo de recompensar suas faltas, suas dificuldades narcísicas, conjugais e tantas outras. A criança torna-se o sintoma da família.
Fazer uma escolha é uma decisão de desejo, e mais estritamente, do desejo inconsciente, pedra angular de todos os nossos atos.
O que quer o adulto, ou o que se esconde por trás da atitude de dar à criança essa responsabilidade de escolhas, de comando, sem a devida maturidade psíquica e até física, ainda frágil e insegura diante de tantos apelos internos e externos?
Não seria mais um desejo dos pais, um ideal de perfeição e realização paterno depositado no filho, sua obra de arte, do que uma necessidade da criança?
Tanta permissividade pode trazer para a criança consequências como dificuldades de socialização, sentimento de exclusão do grupo, insegurança, podendo desenvolver uma agressividade e uma dificuldade de adaptação à realidade.
Calligaris (1991, p. 42) afirma que “[...] o adulto brasileiro parece constantemente preocupado com o prazer das suas crianças”. Aborda questões observadas na clínica sobre a dificuldade dos pais de operar a interdição, de sustentar o interdito sobre o corpo materno, o que colocaria a criança no lugar de filho, abrindo caminho para a constituição de uma filiação simbólica, necessária! Amplia suas reflexões para o desenvolvimento de “o gosto pelo esforço”, “o prazer da dificuldade”, quase ausentes na nossa educação, por uma ambição dos pais de que seus filhos realizem o “fantasma paterno de um gozo sem limites”. Assim,
[...] se abstêm de interditar por medo de frustrar a criança, ou seja, sobretudo de frustrar o próprio sonho do pai (CALLIGARIS, 1991, p. 48, 50).
Sem falta, não há desejo. Vivemos sob a égide do “seja feliz” a qualquer custo, não como uma consequência do advir de um sujeito desejante, mas como uma imposição do olhar do outro. Tal estado se faz presente no pensamento capitalista investindo, nem tanto na produção, mas muito mais no consumo cada vez maior de objetos descartáveis, incluindo-se nisso os relacionamentos. Também pode se apresentar na redução do núcleo familiar com a restrição do número de filhos, visando um consequente investimento na satisfação, ou talvez, e de abordagem mais complexa, numa frágil vivência de intimidade dos laços afetivos.
É a família que detém, ou deveria deter, as rédeas da educação. Cabe a ela exercer a moderação dos impulsos infantis, oferecendo estofo à construção da castração simbólica. Essa tarefa não é sem consequências para os adultos. Esses são tocados em sua essência, em seus traumas, em seu narcisismo, em seu desejo de acertar, de não ter faltas e, até mesmo, de se realizar através do filho. Isso torna mais difícil para o filho ter seu próprio projeto de vida, original, que seja diferente do projeto de seus pais!
No colapso familiar não existe mais a hierarquia dos lugares: o filho passa a ser o pai de seus pais, não consegue cumprir uma rotina que poderia lhe trazer segurança, não se inclui nos pequenos trabalhos domésticos, não suporta as frustrações, perde a capacidade de concentração e, com uma sensação imaginária de domínio, faz exigências que se tornam insuportáveis para o grupo familiar, podendo se estender para o social, e mais tarde, para o profissional e outros.
O par parental pode desenvolver dificuldades como perda do interesse entre si com declínio do desejo sexual, dos planos para a família, podendo chegar à falta de respeito entre os genitores em função de uma distribuição equivocada das responsabilidades.
A situação fica insustentável, e a criança, vista como um problema, é encaminhada para tratamento psicológico.
Chegam ao nosso consultório os pais com a queixa de que não sabem mais o que fazer nessa situação que sentem como incontrolável.
O que pode a psicanálise?... Pela escuta analítica deixar falar o sujeito para que sua verdade doída venha à tona e, quem sabe, possa liberar o filho “problema” de ser o depositário da angústia paterna.
Referências
CALLIGARIS, C. Hello Brasil! Notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São Paulo: Escuta, 1991. [ Links ]
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LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Vera Ribeiro. Versão final de Angelina Harari. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]
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Endereço para correspondência
E-mail: mazzarellocotta@yahoo.com.br
Recebido em: 28/09/2016
Aprovado em: 28/10/2016
Sobre a autora
Maria Mazzarello Cotta Ribeiro
Psicóloga.
Psicanalista.
Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.