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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso vol.39 no.73 Belo Horizonte jun. 2017

 

Teoria e Clínica psicanalítica

 

Luto e melancolia - variações com o texto de Freud

 

Mourning and melancholia: variations with Freud’s text

 

 

Benoît le Bouteiller
Tradução:
Bernardo Maranhão
Revisão da tradução:
Carlos de Brito e Mello

I Université Paul Valéry
II Centre de Soin, d'Accompagnement et de Prévention en Addictologie

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Sigmund Freud, a partir de sua descoberta, dará novas coordenadas no que concerne à melancolia. Esboçaremos aqui uma rápida arqueologia dessa elaboração freudiana e abordaremos o novo giro que Lacan lhe imprime. Quais são as incidências dessas construções em nossa clínica diferencial? Podem elas constituir uma chave para a apreensão de um aspecto do mal-estar de nossa civilização contemporânea? Exploraremos essas questões com apoio no texto Luto e melancolia, de Freud, e em variações possíveis que dele decorrem.

Palavras-chave: Melancolia, Freud, Lacan, Clínica diferencial, Mal-estar de nossa civilização contemporânea.


ABSTRACT

Sigmund Freud, based upon his discovery, sets new landmarks concerning melancholia. In this article, we draft a brief archeology of this Freudian elaboration and examine how Lacan unfolds it. Which are the incidences of these constructions upon our differential clinic? Can they constitute a key to the apprehension of an aspect of the uneasiness of our contemporary civilization? We explore such questions based upon Freud’s text Mourning and melancholia and upon possible variations that may derive from it.

Keywords: Melancholia, Freud, Lacan, Differential clinic, Uneasiness of our contemporary civilization.


 

[...] tal é a melancolia, uma queda na queda.
CLAUDE RABANT, 2010, p. 223.

 

No edifício da teoria freudiana, a questão da pulsão ocupa, incontestavelmente, um lugar crucial. A elaboração desse conceito é feita em etapas sucessivas.1 Os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, [1905] 1996) provavelmente constituem aqui um ponto de partida. A evolução da pulsão na construção teórica de Freud é importante, como atestam as modificações subsequentes que o autor fará nos Três ensaios ao longo das reedições desse texto, modificações que visam reatualizar suas proposições em vista dos avanços efetuados. Esse escrito será, quando de sua publicação, qualificado por muitos como escandaloso. Com efeito, nesse trabalho Freud confirma o entrelaçamento entre a vida psíquica e o sexual, evoca a dimensão universal da homossexualidade e renova sua hipótese concernente à sexualidade infantil. Em meio à riqueza e à relevância desse texto, notemos a questão do objeto. Essa questão será consubstancial à teorização da pulsão na obra de Freud. Também o objeto como noção evoluirá ao longo dos escritos freudianos. Nos Três ensaios, Freud proporá a hipótese de uma pulsão preexistente a seu objeto e dele independente. Por outro lado, apresenta o objeto como aquilo que será de uso para o sujeito quando ele atingir a idade de não estar exclusivamente em uma organização pulsional autoerótica. Parece-nos que o texto Luto e melancolia é uma continuação, uma consequência dessas elaborações mencionadas. Nesse texto Freud (1917) proporá marcos de referência para considerar a relação do sujeito com o objeto em função da estrutura psíquica. O autor distinguirá as modalidades de investimento da libido, bem como os lugares e as funções dos objetos no caso do luto normal, não patológico, e no da melancolia.

Esses elementos são pontos de apoio preciosos para a sequência da construção teórica de Freud, e Jacques Lacan se valerá deles para lhes imprimir uma leitura renovada. Esses marcos de referência estabelecidos no texto de 1917 têm uma incidência em nossa clínica diferencial e são instrumentos possíveis para a leitura dos traços do mal-estar de nossa civilização contemporânea.

É esse conjunto que aqui trataremos de desdobrar brevemente.

De partida, evoquemos rapidamente a depressão para distingui-la desde já da melancolia.

O termo “depressão” é bastante recente2 ao passo que “melancolia” deita raízes profundas e antigas na história, como o atesta o aforismo 23 do livro VI dos Aforismos, de Hipócrates (citado por PIGEAUD, 1984, p. 501-510): “Se tristeza e medo duram muito tempo, tal estado é melancólico”.3 Podemos dizer que, desde Freud, a depressão é considerada na literatura psicanalítica de maneira geral como uma manifestação sintomática transestrutural. Ela não é o apanágio de uma estrutura psíquica em particular. Como sintoma, na pluralidade de suas formas clínicas, a depressão guarda um valor de verdade do sujeito, apesar da dor e mesmo da aflição vividas pelo indivíduo deprimido.

São raras as ocasiões em que Lacan evoca a depressão. Entre elas, Televisão (LACAN, [1974] 2003, p. 524), em que a qualifica como covardia, em referência a uma das definições que dará à ética: a do bem-dizer.4 A covardia evocada nesse contexto não deve ser tomada de um ponto de vista moralista, e seria necessário correlacionar essa proposição de Lacan ao aporte decisivo que sua abordagem da ética recebe de Spinoza. Em breves linhas, recordemos que Spinoza dá à ética um valor de articulação entre a intelecção e os afetos.5 Aqui, a razão e a incidência do afeto se correlacionam naquilo que Spinoza denomina o conatus, esse esforço do ser para perseverar na via de seu próprio ser em essência e em devir. Esse conatus corresponde, acrescenta Gilles Deleuze (1968, p. 210), à “[...] função existencial da essência, isto é, à afirmação da essência na existência do mundo, [...]” que confere, então, uma potência e uma permanência. É nesse contexto que se deve tomar a covardia [lâcheté] em sua etimologia,6 um laxare subjetivo, um relaxado [relâché], um distender [détendre], um desapertado [desserré] que prejudica o conatus, poderíamos dizer com Spinoza, ou o bem-dizer, diríamos com Lacan.

A dimensão preciosa do texto Luto e melancolia (FREUD, [1917] 1996) se vincula ao fato de ele distinguir estruturalmente quadros clínicos que, à primeira vista, poderiam ser similares. E nos parece que as discussões que Freud tem com Karl Abraham antes e depois de Luto e melancolia atestam seu interesse em estabelecer princípios que permitam distinguir uma depressão neurótica de uma melancolia psicótica. Os afetos manifestados podem ser bastante próximos. Mas por intermédio da transferência e de seu manejo, a clínica nos ensina a distingui-los. Em seu texto Freud lançará as bases dessa linha demarcatória graças ao objeto.

Freud faz em sua obra uma proposição decisiva: o humano tem relação com a falta. É em torno da falta que se organiza a economia psíquica. O objeto faltante, além de impedir o sujeito de viver a homeostase e a tranquilidade que dela resultaria, instaura um desejo: o desejo de obter a satisfação por meio da aliança, da conquista desse objeto que lhe é, portanto, exterior.

Em Luto e melancolia, o período de luto é o tempo em que sujeito, em sofrimento pela perda, no plano da realidade, do objeto amado, está sob o golpe desse corte, dessa separação e do desprazer que lhe é decorrente. Trata-se do tempo durante o qual o sujeito reinveste sua libido em si mesmo. Esse tempo corresponde ao necessário para que o sujeito retome plenamente sua capacidade de dirigir seu investimento libidinal a outros objetos. Em contrapartida, no quadro da melancolia, a afecção não é necessariamente correlata da experiência de perda de um objeto na realidade. No luto, porque o objeto desapareceu, “[...] o mundo se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu” (FREUD, [1917] 1996, p. 251). Poderíamos considerar que a hipótese de Freud nesse texto é a seguinte: o objeto perdido da melancolia não é exterior ao sujeito, como no luto normal, não patológico, mas está do lado da instância egoica. Nessa colagem do eu ao objeto, o único destino da pulsão é o furo deixado pela queda desse eu melancólico. Lacan integrará a seu corpus o objeto inventando o objeto a. Esse objeto evoluirá ao longo do ensino de Lacan, e seria necessária uma abordagem prudente quanto ao seu uso em nossas proposições. Com efeito, o objeto a mereceria ser evocado em um espaço de pesquisa amplo (do qual não dispomos aqui) para seguirmos as nuances e as precisões que Lacan lhe dá no curso de sua obra e para desdobrarmos corretamente esse conceito. Precisemos, em todo caso, que Lacan dirá que é a partir do objeto transicional de Winnicott que ele formulará o objeto a. Podemos dizer brevemente que, para o pediatra inglês, esse objeto transicional é um elemento terceiro entre a criança e sua mãe. Winnicott insiste no fato de que o que lhe parece importante não é tanto o próprio objeto, mas sua utilização e o espaço onde ele é utilizado, espaço intermediário, potencial, entre a criança e sua mãe.

Inicialmente, Lacan propõe que se nomeie esse objeto pela letra a, inicial do pequeno outro. Estamos, nesse momento, no registro do imaginário. E, num grande passo, chegamos ao período de seu ensino no qual o objeto a assume para Lacan o valor de objeto de desejo. No texto Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: “Psicanálise e estrutura da personalidade” ele escreve:

Isso quer dizer que, como objeto parcial, ele não é apenas parte ou peça desvinculada do dispositivo que aqui imagina o corpo, mas elemento da estrutura desde a origem e, por assim dizer, da distribuição das cartas da partida que se joga. Na medida em que é selecionado nos apêndices do corpo como indício do desejo, ele já é o expoente de uma função [...]. É por isso mesmo que, refletido no espelho, ele não fornece apenas a’, o padrão da troca, a moeda pela qual o desejo do outro entra no circuito dos transitivismos do Eu Ideal. Ele é restituído ao campo do Outro na função de expositor do desejo no Outro. É isso que lhe permite assumir, no verdadeiro término da análise, seu valor eletivo, figurar na fantasia aquilo diante do qual o sujeito se vê abolir-se, realizando-se como desejo. [...] é como objeto a do desejo, como aquilo que ele foi para o Outro em sua ereção de vivente, como o wanted ou o unwanted de sua vinda ao mundo, que o sujeito é chamado a renascer para saber se quer aquilo que deseja... (LACAN, [1960] 1998, p. 689).

Assim, esse objeto não deve mais ser considerado como vinculado ao registro do imaginário. Ele se extrai desse registro, como causa do desejo e não mais como objeto de desejo. O objeto a causa do desejo não é mais, na construção lacaniana, o objeto visado pelo desejo, e sim a causa deste.

No ensino de Lacan vemos esse objeto assumir um lugar específico no matema da fantasia, bem como nas modalidades do discurso. Mais tarde, na elaboração de Lacan, o objeto a passa a ser situado como Real.

Quase no final de seu ensino, o objeto a é, nas elaborações borromeanas, aquilo que está no centro e enoda os três registros, os três anéis do nó.

Assim, à luz de nossa clínica, graças às proposições primeiras de Freud em seu texto Luto e melancolia, podemos, com o aporte de Lacan, apreender de maneira renovada a especificidade subjetiva da melancolia. O sujeito precisa se haver com o vazio, com o furo. Nenhuma ilusão na relação objetal permite fazer barragem ao absurdo da existência. Não podendo fazer consistir o desejo do Outro, o sujeito melancólico é presa da queda, sem dialética possível com o objeto a, dando curso à elaboração de uma fantasia fechada. Estando assim o desejo radicalmente em pane, a demanda não tem oportunidade de eclodir. O objeto cai e arrasta em sua queda o sujeito melancólico para um grande vazio e torna iminente a catástrofe permanente.

Freud já havia evocado essa impossibilidade de separar o eu do objeto na melancolia. E é com Freud, nesse texto, que podemos distinguir a melancolia do quadro depressivo presente em um processo de luto. Essa distinção não se faz necessariamente a partir de uma descrição dos afetos, mas do ponto de vista da relação do sujeito com o objeto. Encontramos assim na melancolia um deixado caído [laissé tombé], uma desvalorização radical, que não se inscreve em uma construção fantasmática. É esse o ponto de atenção nodal, sem dúvida, na clínica do sujeito melancólico: a passagem ao ato, fora de toda demanda ao Outro, fora do campo da transferência, é sempre possível e possivelmente radical.

Trata-se disto que vou chamar, na~o de luto, nem da depressa~o por conta da perda de um objeto, mas de um remorso de um certo tipo, desencadeado por um desenlace que e´ da ordem do suici´dio do objeto. Um remorso, portanto, a propo´sito de um objeto que entrou, de algum modo, no campo do desejo, e que, por sua ação, ou por qualquer risco que correu na aventura, desapareceu (LACAN, [1960-1961] 1997, p. 380).

Talvez aqui possamos apreender o suicídio do objeto que Lacan menciona a propósito do objeto do melancólico. O sujeito, nessas circunstâncias, é incapaz da mínima abertura, do menor investimento; o mundo e os objetos que o compõem são de uma perfeita inanidade, assim como ele mesmo. Marie-Claude Lambotte propõe que se fale em recusa de intenção no melancólico.7

Nada. Parece que é isso que se torna o significante-mestre para o sujeito melancólico. Um significante que não remeteria a nenhum outro, que não permitiria articulação alguma com um S2, e essa articulação é condição para que caia o objeto, ao mesmo tempo que advém o sujeito, desenhando, assim, o matema da fantasia, com a punção entre S barrado e a desenhada pela articulação de S1 com S2.8

Nesse processo, é posta em xeque “[...] essa enorme sutileza spinoziana do corpo-linguagem, da linguagem como corpo ou do corpo como linguagem”, nos diz Oury, e podemos compreendê-lo porque

[...] é aí que se aloja o desejo em sua inacessibilidade ontológica, conatus que luta a cada segundo contra a tagarelice inaudita de uma falsa contemporaneidade (OURY, 2010, p. 11).

“Eu bem quero que alguém simpático se sente aí, na porta.” Eis praticamente tudo o que Jacky podia dizer, em um tom dos mais amáveis, desde sua chegada. Eu o encontrei há alguns anos numa instituição na qual eu era funcionário da direção. Ele acabava de chegar, depois de meses de vida em vagão. De trem em trem, de Leste a Oeste e do Norte ao Sul, ele havia varrido, em todos os sentidos, numa deambulação ferroviária, o território da França. Desde sua chegada, ele se colocara no que lhe fora designado como seu leito e não se mexera mais. A todas as solicitações, invariavelmente, ele respondia: “Obrigado. Você é muito amável. Mas eu quero que alguém simpático se sente aí, na porta”. Certamente, após bem pouco tempo, os profissionais começaram a se inquietar. Que fazer? Uma outra paciente, Martine, leva a sério a única afirmação de Jacky, “[...] alguém simpático sentado aí, na porta”. Ela coloca uma cadeira junto à porta e se senta. Os residentes dessa instituição, de início, e depois Francis, o jardineiro, Nacera, uma cuidadora, e depois um educador, uma enfermeira, eu mesmo, sem nada dizer, pusemo-nos ali, exatamente, sentados nessa cadeira, no lugar indicado por Jacky. E depois aparece um quadro pendurado em um recanto do cômodo. Pessoas se inscrevem para que, de dia, à noite, alguém ‘simpático’ habite essa cadeira. Sem que isso seja premeditado, um novo arranjo se delineia: um caderno é posto no criado-mudo de Jacky. Nesse caderno estão reproduzidas as anotações feitas no quadro: o nome de alguém ao lado de um horário. Jacky segue atentamente as indicações do caderno, diz quem será o próximo ‘alguém simpático’; há uma lista de pessoas ‘simpáticas’, que se inscrevem no ritmo do tempo que passa e se colocam ali, no espaço da porta entreaberta, com uma presença discreta, silenciosa. Pessoas simpáticas, como uma tinta de caneta simpática: está ali, inscreve, não se impõe à vista. A única pessoa autorizada por Jacky a ir e vir nesse quarto, a discutir aos cochichos com ele, é seu vizinho de quarto: Jean-Pierre. Em seguida, Jean-Marc, um enfermeiro, pode deixar a medicação no criado-mudo, ao lado do caderno. Depois, dois ou três cuidadores são autorizados a ajudá-lo numa ligeira higiene pessoal. Adrien, o chefe de cozinha, pode, a partir de então, ir pessoalmente lhe entregar a refeição. Jean-Pierre, seu vizinho, fala pouco, investe pouco nas relações com os outros. E ele vem a fazer algo que jamais fizera: entra em meu gabinete e me lança: “Você não entendeu nada do Jacky. Ele não pode sair da cama porque ele não está fora da cama”. Jean-Pierre me coloca a par de suas discussões cochichadas. O que Jean-Pierre havia compreendido é que seu colega de quarto não podia imaginar seu próprio corpo onde este não estava no mesmo instante. Esse sentimento que Winnicott denomina “sentimento contínuo de existir” estava impedido em Jacky. Uma pane radical.

Acontece que, naquele momento, havíamos acabado de contratar uma nova funcionária. Logo no início de seu novo emprego, ela se colocará, conforme indicado no quadro e no caderno, sentada na cadeira. A indicação não formulada, não escrita, era estar ali, na cadeira, no espaço da porta entreaberta do quarto, em uma presença silenciosa. A nova profissional certamente não compreendera isso e se pôs a falar e a falar, e a falar com Jacky e seu colega Jean-Pierre. Ela agiu bem. Era o momento. O monólogo se transforma em discussão, e Jacky lhes fala de sua história. Ele lhes comunica seu desejo de saber onde fica a tumba de seu pai, saber quando se deu a sua morte, se ele tem sobrinhos ou sobrinhas. Para Jacky, ensimesmado por semanas em uma imobilidade quase completa, emparedado em um silêncio quase total, é ali, naquela raseira frágil da porta entreaberta, ponte levadiça por ele inventada, que um sendeiro se delineia. E isso opera. É nesse presente, nesse estar aí, estar em, que se delineia um projeto. A nova assalariada, o colega de quarto e Jacky se tornam historiadores da própria história de Jacky, na estrada, em movimento, nessa decisão comum de abrir um possível, um poder ser, em uma livre entronização.

Nessa ocasião, Jacky evocará para a profissional e para seu vizinho de quarto um evento que, segundo ele, terá sido um ponto de virada no final de sua adolescência: sua mãe morre, “deixa-o cair”, e seu pai deixa o lar e o “deixa cair”. São essas as suas palavras.

Ele se casa. Sua mulher o deixa. Ele dirá “ela me deixa caído”. Ele é trabalhador da manutenção, sem ter assinado contrato de trabalho. Em seguida a essa separação, os pacotes que ele está incumbido de carregar lhe escapam das mãos. “Sem querer, eu os deixava cair”. O patrão o manda embora: “ele me deixa cair”. Jacky vem a saber do falecimento de seu pai, a quem não reencontrara. “Ele me deixa cair”. É nessa ocasião que Jacky ‘cai’ em um trem, sem destino, sem intenção, depois em outro, depois em outro, até que chega a essa instituição, onde ‘cairá’ em sua cama.

Vemos aqui um ‘deixar cair’ que se repete, radical. Um furo, sem razão para o sujeito, sem explicação, sem construção interpretativa que viesse em socorro para consolar o sujeito. Um furo, apenas um furo, e o sujeito nele cai, como os objetos que o rodeiam. Nada o retém. O sujeito está perigosamente em um furo que não tem fundo porque não tem fundamento.

Jacky deixa cair os objetos, assim como ele mesmo é deixado cair, como um objeto. Não há nesse sujeito apenas o arraso, o abatimento. Há um nada radical que consiste em: nenhuma demanda, nenhuma queixa, nenhuma tentativa de explicação, de interpretação, nenhum arrependimento. Nada.

Falando de um paciente melancólico, Henri Maldiney evoca para esse sujeito um “pleno do Umwelt”.9 Ele se refere ao corpo em pane do sujeito e aos diferentes lugares do ambiente que,

[...] no espaço do melancólico, não comunicam, uns com os outros, seus horizontes. Esses lugares não têm horizontes. Claramente, é o corpo próprio do doente que está em causa. Desprovido de um espaço marginal onde ele esteja potencialmente no mundo, ele não mais habita (MALDINEY, 2007, p. 776).10

O que se produz no caso de Jacky se dá certamente a partir disso que advém, dessa presença discreta e benevolente, na soleira, no espaço da porta entreaberta. Isso certamente nos leva a pensar no ‘aberto’ de Maldiney.11

Projetar, fazer-se o operador do projeto, é dar lugar à possibilidade de alguma coisa como um mundo, ser nele o aí (MALDINEY, 2007, p. 784).

O que se passa para Jacky é o evento do encontro. Esse evento, esse campo novo dos possíveis tem uma estética inédita: ‘a estética do conluio’. Retomamos de bom grado essa bela expressão de Bernard Lafargue (2010, p. 249). O encontro em questão abriu uma perspectiva. Alguma coisa se solta da série dos objetos de uma total inanidade. Aqui, a noção de estética nos parece pertinente, pois não é uma questão de beleza, mas alguma coisa que permite que o olhar se vincule, se detenha, se focalize. Para Jacky, há o encontro e há os objetos: os cadernos, os recortes de imprensa, os números de telefone, elementos que ele, com a ajuda de seus ‘companheiros de pesquisa’, irá acumular, classificar, ordenar. Ele modela esses objetos e os dispõe em relação uns com os outros, procura uma harmonia em sua organização. Formulemos aqui a hipótese de que isso assume para o sujeito a função de uma solução que evita o pior.

Podemos afirmar com Lacan que, na neurose, o sujeito tem como recurso a fantasia, essa articulação entre o sujeito () e o objeto (a), para velar o vazio absoluto, radical, para poupar a si mesmo de uma relação com esse vazio. É também a fantasia o meio do neurótico para localizar o gozo. Na psicose, notadamente naquela declinada sob o modo da melancolia, o sujeito está desprovido da fantasia e, portanto, desprovido do recurso que esta constitui contra o vazio absoluto; desprovido, também, da aparelhagem do gozo que ela possibilita. Jacky, provavelmente, com sua invenção em torno dos objetos evocados acima, encontra uma solução ‘sinthomática’ para manter de pé alguma coisa em torno desse furo.12

Vejamos agora como Freud, com o texto Luto e melancolia, seria um recurso possível para a leitura de certos aspectos do mal-estar em nossa civilização contemporânea. Os sintomas desse mal-estar são numerosos. Citemos, entre eles, o aumento significativo do número de suicídios13 e os altos índices de toxicomania e de consumo de psicotrópicos.14

Jacques Lacan evoca o discurso capitalista no início dos anos 1970.15 Isso se segue, como sabemos, às elaborações que lhe permitirão formalizar quatro modalidades do discurso, a saber, o discurso universitário, o discurso da histérica, o discurso do mestre e o discurso psicanalítico.16 O ponto comum a esses quatro discursos é que neles figura a dimensão da perda. Cada um desses discursos é escrito com uma barreira, uma barreira ao gozo, entre o lugar da produção e o lugar da verdade. É sob essa condição que o discurso pode ser entendido como aquilo que faz laço social, como a matriz, em suma, que determina as modalidades do laço social. Ora, para escrever o quinto discurso, o discurso do capitalista, Lacan suprime essa barreira ao gozo. Encontramos nesse discurso um sujeito que está diretamente ‘ligado’, ‘conectado’ ao objeto. Por outro lado, nesse discurso, o lugar da verdade não é mais acessível.

Podemos questionar em que medida isso emerge do discurso do capitalista, uma vez que ele impede estruturalmente o laço social. Contudo, por outra parte, apreendemos também em que medida esse discurso se funda no imperativo de consumo do objeto, acarretando a anulação do sujeito, implicando, em suma, a consumação do sujeito por meio do consumo de objetos. A organização social que se funda sobre esse discurso institui, portanto, a produção e o consumo de objeto como necessidade acessível pelo sujeito. A palavra de ordem é feroz (mesmo se deixa, aparentemente, o sujeito como soberano de suas escolhas, de suas decisões): não perder nenhuma ocasião de ter acesso ao objeto supostamente faltante, a fim de prevenir a falta eventual, a provável insatisfação. Isso não se dá sem efeito para os sujeitos contemporâneos, pois “[...] do psiquismo, a insatisfação é o primeiro elemento constituinte” (LACAN, 1968, p. 55).

O capitalismo utiliza uma tecnologia, dispositivos para sustentar essa conexão permanente do sujeito ao objeto, em todos os campos possíveis do consumo, inclusive o da saúde, certamente.

Que se tenha chegado a industrializar o desejo, enfim... não se pode fazer nada de melhor para que as pessoas estejam um pouco tranquilas, hein? […] e além disso, obteve-se o resultado (LACAN, 1978, p. 78).

Esse impossível de desejar é o que Freud designa como a posição subjetiva do sujeito melancólico em seu texto Luto e melancolia, pela colagem do objeto ao eu.

Michel Foucault ([1978-1979] 2004) forja o conceito de biopolítica. Trata-se de uma estratégia política que visa à dominação e ao poder por meio do domínio do ser humano reduzido ao corpo.

Mobilizando esse conceito, Agamben sustenta que

[...] o desenvolvimento e o triunfo do capitalismo não teriam sido possíveis [...] sem o controle disciplinar realizado pelo novo biopoder que, por meio de uma série de tecnologias apropriadas, criou para si, por assim dizer, os corpos dóceis de que ele necessitava (AGAMBEN, 1997, p. 11).

Esse “triunfo do objeto”, que caracteriza a melancolia (LACAN, [1962-1963] 2004, p. 387), parece definir nossas sociedades ocidentais contemporâneas. Provavelmente, nós também podemos ver nisso um ponto de explicação de certas passagens ao ato de jihadistas suicidas e assassinos. O sociólogo Farhad Khosrokhavar (2015) nota traços comuns a boa parte deles.

[...] são quase todos jovens com passado de delinquência, tendo cometido atos de furto ou de tráfico; quase todos passaram por um período de encarceramento, quase todos eram desislamizados e se tornaram muçulmanos born again ou se converteram ao jihadismo sob a influência de um guru, de amigos ou a partir de suas leituras na internet; enfim, todos fizeram uma viagem iniciática a um país do Oriente Médio ou a zonas de guerra. [...] O quadrilátero delinquência, prisão, viagem guerreira e islamização radical os caracteriza a quase todos (KHOSROKHAVAR, 2015).

É importante levar em conta essas dimensões sociológicas. Além disso, contudo, não podemos ver também nesse fenômeno, no plano subjetivo, o “triunfo do objeto”? Com efeito, poderíamos formular a hipótese de que, tanto no caso do jihadismo quanto no do sujeito melancólico, o sujeito está aparelhado no objeto. Sujeito e objeto formam uma conexão. O sujeito se torna objeto e, mais do que isso, um objeto sagrado, oferecido em sacrifício,17 que, ao causar a própria morte, elimina todos esses outros objetos de total inanidade.

“Os excluídos não são mais explorados, mas são dejetos, são restos”.18

De maneira dramática, é isso, provavelmente, o que nos recordam as manifestações do mal-estar de nossa civilização contemporânea. E é talvez isso o que nos indica o texto Luto e melancolia, o qual, escrito há mais de cem anos, conserva sua atualidade ao estabelecer os marcos de referência das incidências subjetivas que decorrem da relação do sujeito com o objeto e das consequências sociais disso, pois

[...] tanto para o sujeito quanto para o Outro, no que tange a cada um dos parceiros da relação, não basta serem sujeitos da necessidade ou objetos do amor, mas têm que ocupar o lugar de causa do desejo (LACAN, [1958] 1998, p. 698).

 

Referências

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PIGEAUD, J. Prolégomènes à une histoire de la mélancolie. Histoire, économie et société. Santé, médecine et politiques de santé, Paris, Armand Colin, v. 3, n. 4, p. 501-510, 1984.         [ Links ]

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VON UEXKÜLL, J. Mondes animaux et monde humain, suivi de Théorie de la signification. Paris: Denoël, 1965.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: lebouteillerbenoit@gmail.com

Recebido em: 16/03/2017
Aprovado em: 09/05/2017

 

Sobre as autoras

Benoît le Bouteiller
Psicanalista.
Centre de Soin, d’Accompagnement et de Prévention en Addictologie (CSAPA).
Doutorando em psicanálise (Université Paul Valéry, Montpellier, França).

 

 

1Entre elas, mencionemos a de 1914 com os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) e a Introdução ao narcisismo (1914), seguida por As pulsões e seus destinos (1915) e Luto e melancolia (1917).
2Esse termo aparece em nossos léxicos ocidentais no século XIX.
3O filólogo Jackie Pigeaud mostra aqui a história exuberante dessa melancolia que intriga e preocupa as representações sociais e a medicina ocidental há milênios.
4“A tristeza [...] é qualificada de depressão, ao se lhe dar por suporte a alma ou, então, a tensão psicológica do filósofo Pierre Janet. Mas esse não é um estado de espírito [état d’âme], é simplesmente uma falha [faute] moral, como se exprimiriam Dante ou até Espinosa: um pecado, o que significa uma covardia moral, que só é situado, em última instância, a partir do pensamento, isto é, do dever de bem dizer, ou de se referenciar no inconsciente, na estrutura” (LACAN, [1974] 2003. p. 524).
5Notemos, ademais, que, em Televisão (LACAN, [1960] 2003, p. 508-543) e Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: “Psicanálise e estrutura da personalidade” (LACAN, [1960] 1998, p. 688-689), Lacan utiliza o termo “afeto” para designar a depressão.
6É o latim laxare, “distender, (re)laxar, desapertar; deter-se”, que parece ter dado a palavra francesa lâcher, lâche, lâcheté.
7Ver LAMBOTTE, 2007, especialmente o capítulo IV.
8Referimo-nos aqui ao matema da fantasia e ao modo como ele é construído por Lacan, notadamente no Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964).
9VON UEXKÜLL J. Mondes animaux et monde humain, suivi de Théorie de la signification. Paris: Denoël, 1965. Devemos ao barão Von Uexküll sua concepção do Umwelt, um ambiente sensível, sensorial, singular. Um mundo. Martin Heidegger lê Uexküll para forjar sua Stimmung. Gilles Deleuze faz uma leitura fecunda dessa proposição de Umwelt. Jacques Lacan se serve dela em 1938, para propor suas primeiras teorizações do Imaginário. Georges Canguilhem também é leitor atento de Uexküll. Nascido na Estônia, em 1864, e morto em 1944, Jacob von Uexküll cria o Institut für Umweltforschung de Hamburgo. Sua intuição: o espaço vivido é próprio de cada espécie animal. Sobre uma mesma geografia, há, sem dúvida, mundos tão diferentes que não chegam a se cruzar uns com os outros. Esses mundos, esses meios sensíveis, específicos, esses Umwelt, Gilles Deleuze os explica, no Abecedário, sob a rubrica Animal, a partir do exemplo, dado pelo próprio Uexküll, do carrapato. Ele se volta para os espaços vividos das espécies animais, em sua variedade. Ele se interessa pelo meio, pelo Umwelt que não é senão um pedaço, um fragmento do ambiente geográfico. Ele propõe isto: longe de se submeter a esse Umwelt, o ser vivo compõe com ele e até, para ser mais preciso, o compõe.
10Esse artigo foi publicado originalmente em L’évolution psychiatrique, n. 54, em 1989. Ele se baseia na transcrição de uma conferência dada por Maldiney nas segundas jornadas da ALEP sobre o tema da análise existencial na experiência depressiva, realizadas em 1987.
11Frequentemente em sua obra, e notadamente no artigo citado, Maldiney trata dessa noção de aberto.
12E digamos aqui que, partindo das primeiras indicações dadas por Freud em Luto e melancolia, será precioso observar como, na clínica, sujeitos melancólicos encontram, por meio do uso de objetos, a solução para fazer o quarto nó.
13Tomamos como referência a esse respeito o relatório da Organização Mundial de Saúde, de 2014, Prevenção do suicídio, disponível no site da organização <http://www.who.int/em>.
14Podemos nos reportar, quanto a isso, aos números mencionados pelo Observatório Francês das Drogas e Toxicomanias, disponíveis no site da instituição <http://www.oftd.fr>.
15Mencionemos as duas fontes que conhecemos: LACAN, J. Le savoir du psychanalyste. Paris: Seuil, 2011. Discurso de Jacques Lacan na Universidade de Milão em 12 de maio 1972, publicado no livro bilíngue Lacan in Italia/En Italie Lacan (1953-1978). Milan: La Salamandra, 1978. p. 32-55.
16Esses diferentes discursos utilizam os quatro termos da estrutura: S1, o significante mestre; S2, o saber; o objeto a; , o sujeito. A isso se articulam quatro lugares: a verdade, o agente, o outro e a produção. Os termos da estrutura ocuparão esses lugares em função do discurso em questão.
17A propósito dessa hipótese, podemos nos reportar ao artigo de Réginal Blanchet, Victime sacrificielle. Lacan quotidien, n. 528, 17 jui. 2015. Disponível em: <http://www.lacanquotidien.fr/blog/2016/06/lacan-quotidien-n-528>.
18Palavras do Papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (§ 53), feita em Roma em 24 nov. 2013. Disponível em: <https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html>.

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