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versión impresa ISSN 0102-7395
Reverso vol.39 no.73 Belo Horizonte jun. 2017
Arte, Cultura e Psicanálise
Sonhar significando, descobrir inventando
Dream meaning, discover invention
Consuele Cordeiro Antunes
I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Este se configura como um trabalho de especulação a respeito do conteúdo psíquico presente na produção artística e da possibilidade de sua interpretação aos moldes do que Freud propõe fazer com os sonhos. Teria também a produção artística uma mensagem a ser decifrada?
Palavras-chave: Sonho, Arte, Cultura, Pulsão, Sublimação.
ABSTRACT
This work was configured as a speculation about the psychic contect present in the artistic production and the possible interpretation according as Freud proposes to do with dreams. Have would also a artistic production a message to be deciphered?
Keywords: Dream, Art, Culture, Impulse, Sublimation.
Ao estudar a história da psicanálise e vários de seus conceitos centrais, algo não escapa à percepção; a busca em diversos momentos de exemplos nas artes na literatura, no teatro, na pintura e outras produções culturais. Esse padrão denuncia uma correlação entre psiquismo e produção cultural.
No pós-escrito de Um estudo autobiográfico adicionado ao texto de 1925 dez anos depois, em 1935, Freud ([1925-1924] 2006) endossa essa percepção com sua colocação de que os processos culturais nada mais são do que reflexos dos conflitos dinâmicos do psiquismo humano.
Percebi ainda mais claramente que os fatos da história, as interações entre a natureza humana, o desenvolvimento cultural e os principados das experiências primitivas [...] não passam de um reflexo dos conflitos dinâmicos entre o ego, o id e o superego que a psicanálise estuda no indivíduo – são os mesmíssimos processos repetidos numa fase mais ampla (FREUD, [1925-1924] 20061925, p. 76).
Nesse ponto uma questão é incitada: Se toda produção cultural é reflexo dos conflitos dinâmicos do psiquismo seria possível uma interpretação dessa produção aos moldes do que Freud postulou a respeito dos sonhos? Seria a produção artística, no âmbito do social, o denunciante de algo que clama por decifração?
Não é intuito deste texto traçar paralelo minucioso a respeito da formação dos sonhos com o fazer da produção artística, mas expor algumas observações curiosas.
O grande trabalho realizado por Freud no seu livro dos sonhos, em primeiro lugar foi tirar o sonho do campo do misticismo, atribuindo-lhe um quê e um porquê, e demonstrando em suas interpretações que os sonhos estão recheados de desejos infantis em busca de satisfação. Os sonhos são representações ganhando vida e permitindo, mesmo que com grandes disfarces, um quantum de realização dos desejos inconscientes todas as noites.
No entanto, muita energia permanece pressionando o aparelho psíquico, e toda pressão causa desprazer. Na impossibilidade de completa satisfação das pulsões, o que seria incompatível com a vida em sociedade, o que resta são satisfações parciais como as obtidas com os sonhos no intuito de amenizar o desprazer.
Porém, o desprazer é constante, e outras maneiras de lidar com ele são produzidas pelo sujeito. Cada produção é singular e diz daquele sujeito que a produziu. Contudo, é sabido de constantes que se apresentam a todos; todo mundo sonha, produz sintomas, atos falhos e chistes, salvo as psicoses, que apresentam suas próprias características.
Diante da necessidade de satisfação, mas ao se deparar com sua impossibilidade, a pulsão encontra maneiras de continuar, encontra outros destinos. Freud ([1915] 2004) em Pulsões e destinos das pulsões, diz de quatro destinos para a pulsão: a reversão em seu contrário; o retorno em direção à própria pessoa; o recalque; a sublimação.
A reversão em seu contrário está intimamente ligada ao retorno em direção à própria pessoa. Se no primeiro temos uma pulsão sendo transformada em seu contrário quanto a sua meta, no segundo temos o mecanismo semelhante, mas quanto ao objeto. Se tomamos como exemplo os pares de opostos sadismo/masoquismo, veremos que na reversão em seu contrário a meta ativa da pulsão presente no sadismo – submeter, atormentar é substituída no masoquismo por uma meta passiva – ser submetido, atormentado.
O retorno à própria pessoa segue a lógica de reposicionamento da pulsão, mas relacionado ao objeto. O sujeito deixa de fazer uso de um objeto externo para alcançar sua meta de satisfação e usa para si e para esse fim. Ainda no exemplo sadismo/masoquismo, o masoquismo é um sadismo que não foi direcionado a um outro, mas ao próprio sujeito.
Outro destino, talvez o mais popular deles, é o recalque, que constitui o processo de afastamento, dessa vez nem tanto a pulsão propriamente dita, mas seu representante da consciência. Ele realiza o desligamento da pulsão de um representante direto e liga a outro que não diz respeito ao original.
A sublimação, de forma simplificada, consiste em desassociar uma pulsão de um objeto sexual e associá-la a um objeto não sexual. Se o recalque é o destino mais popular, a sublimação é o mais misterioso: é ela que está em jogo aqui.
A simplicidade reside apenas nessa visão macro: uma energia antes de caráter sexual agora se satisfaz de maneira não sexual, mas o grande mistério se encontra entre os extremos. Como isso se dá permanece desconhecido. Freud traz o conceito de sublimação da química, que postula esse termo como a travessia do estado sólido para o gasoso saltando a passagem pelo líquido. O que fascina é a alquimia presente entre os dois pontos.
Ao longo de toda a sua obra Freud trabalha, assim como diversos autores, as nuances do conceito de sublimação. Mas o que permanece como estabelecido e inquestionável pela maioria é o trabalho realizado por ela no sentido de atenuar as forças pulsionais e dessa equação temos o produto cultura.
Segundo Freud ([1915] 2004), a sublimação é a responsável principal pela criação artística e cultural como um todo.
Também nesse sentido Mendes (2011, p. 61) diz que
[...] a sublimação aparece [...] como uma reorientação dos objetivos pulsionais de maneira tal que eludam a frustração do mundo exterior. Ela vem trazer a realização pelo trabalho psíquico e intelectual.
Nesse ponto talvez a especulação aqui proposta seja mais palatável. Como a sublimação é a grande responsável pela produção da cultura, na qual se inclui a produção artística, não é tão estapafúrdia a ideia de interpretar a produção cultural aos moldes do que é possível fazer com os sonhos. As bases se mostram as mesmas senão muito semelhantes. São pulsões impossibilitadas de satisfação que encontram um caminho viabilizado pela defesa através de disfarces, codificações, cifras, que apesar de todo esse trabalho asseguram certa satisfação. É o modelo de constituição da neurose que, segundo Pontalis (1987 apud CHAVES, 2015, p. 11), segue o mesmo processo de criação do artista.
Por muito tempo os textos sobre arte escritos por Freud foram criticados por serem entendidos como tentativas de analisar autores através de suas obras. A esse respeito Ernani Chaves (2015) faz uma desconstrução importante no prefácio do livro Arte, literatura e os artistas destacando que, ao contrário do que diziam os críticos, esses textos trazem contribuições singulares à teoria psicanalítica e fazem grandes revelações sobre a posição de Freud em relação às artes e à filosofia da estética da época.
No texto O motivo da escolha dos cofrinhos, Freud ([1913] 2015) percorre um caminho extremamente interessante. Partindo do Mercador de Veneza, de Shakespeare, ele percebe uma predominância, em vários mitos e contos diferentes, de três elementos que se colocam como centrais na história e que suscitam uma escolha entre eles. As obras citadas além da shakespeariana são o conto da Cinderela, o mito de Psique, Afrodite, das Moiras, entre outros.
Ao longo do texto Freud traça conexões entre os elementos constituintes dos mitos citados e as situações encaradas pelo homem no decorrer de sua existência. São elementos que se repetem e são incansavelmente ditos e vivenciados. O que possibilita pensar que ao longo do tempo o ser humano foi criando narrativas a respeito de suas vivências numa tentativa de nomear o inominável, fazendo borda no desconhecido. E não seria essa também uma lição a ser tirada de Totem e tabu (FREUD, [1913] 2006)?
Em vários de seus textos Freud aponta, quando não diretamente, para o raciocínio de que a sabedoria popular, as artes, a cultura e mesmo as teorias são sustentadas e produzidas a partir dos entraves da existência, como uma maneira de lidar com o desprazer, com os conflitos, com as pulsões.
E nesse paralelo sujeito/cultura, cultura/sujeito, Chaves (2015, p. 32) faz uma colocação interessante quando diz que
[...] tais como as sagas, os mitos e as lendas, as fantasias também são formas distorcidas e equivocadas, sob as quais se esconde uma ‘verdade’.
As fantasias dos sujeitos mudam juntamente com o mundo e sua construção histórica. Novos mitos, novas sagas, novas lendas são contadas, nova arte é realizada. E se houvesse um olhar diferente direcionado para esses fenômenos? Ver a arte para além da sua dimensão estética e de fruição como uma produção que denuncia uma mudança subjetiva da sociedade.
Muito é dito atualmente a respeito da polarização do País, dividido entre esquerda e direita, pró-governo e contra governo, como se esse fosse um fenômeno exclusivamente brasileiro e fruto de uma crise política interna. Mas essa é uma colocação bastante narcisista por acreditar em tal exclusividade. Vendo o cenário mundial, depara-se com dicotomias semelhantes entre mulçumanos radicais versus Ocidente, entre conservadores e liberais, entre ex-colonizadores e ex-colonizados.
Dentro desse caldeirão, o cinema segue dizendo disso também. Não há de ser à toa grandes bilheterias com filmes como Capitão América: guerra civil e Batman vs Superman: a origem da justiça, que trazem em sua trama central heróis que lutam uns contra os outros. O vilão não tem cara. Uma característica singular do nosso tempo.
O cinema segue percebendo o discurso que paira ao trazer em 2015 duas grandes franquias – Mad Max: estrada da fúria e Star Wars: o despertar da força, que tinham como protagonistas homens, mas que em sua nova história são mulheres, que fazem a diferença e sustentam a trama somando ao tema feminista tão discutido atualmente.
Nos quatro filmes citados, se a observação for direcionada seja para além dos efeitos visuais e todas as explosões, que também dizem da aceleração moderna, seja para outra cena, é possível distinguir ali tanto questões universais, aquelas que aparentemente não mudam conforme o tempo as que dizem respeito ao humano e seus impasses, quanto as singularizadas em seu tempo, que dizem exclusivamente de questões da época da produção.
O cinema de terror é um exemplo interessante de pensar a captura disso que paira no social. Conforme Marcelo Miranda (2016), a cada década que passa, a corporificação do que amedronta é outra. Entre as décadas de 1930 e 1950, quando algo da inocência ainda se fazia presente, eram os monstros clássicos, Drácula e Frankenstein, que causavam o medo. Nos anos 1960 e 1970 o terror está dentro de casa, o que era distante é percebido no seio da família. Como efeito do início mais marcado do movimento feminista, com o advento da pílula anticoncepcional, entre outros acontecimentos marcantes da época, o que amedronta são crianças possuídas e assassinos seriais.
O artista parece funcionar como um tradutor do Zeitgeist, um propiciador para que, em seu campo, a arte, esse fenômeno também marque presença. Talvez por ser a arte mais diretamente relacionada com o mundo subjetivo, sensível, seja possível essa relação tão estreita chegando Freud dizer que o artista antecipa a psicanálise.
A análise do sonho funciona como uma tradução do relato do sonhador. Tal análise parece ser passível de realização aos moldes do que fez Freud, no texto O motivo da escolha dos cofrinhos ([1913] 2015), elencando elementos que são significativos e que trazem consigo uma carga que é partilhada por muitos; isso tudo levando em conta os aspectos que dizem respeito à obra e não ao autor.
A escolha por exemplos cinematográficos e de um cinema, em sua maioria, diminuído por ser considerado de massa não é desprovida de sentido. Essa escolha tem o intuito de seguir o modelo freudiano, que ensinou que o popular e o corriqueiro têm muito a dizer, basta escutar. Não há de ser à toa que o cinema de terror, tido como menor, é o que, segundo os estudiosos de cinema, mais acompanha os acontecimentos sociais.
A lógica do título do texto endossa a defesa que ele pretende. É fascinante pensar que em latim, descobrir e inventar são sinônimos, pois traduzem o exercício realizado pela sublimação. Ao se descobrir uma maneira de lidar com a pulsão, inventa-se algo, assim como o sonhador que, ao sonhar, já o faz significando.
Referências
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Endereço para correspondência:
E-mail: consuelecordeiro@yahoo.com.br
Recebido em: 13/03/2017
Aprovado em: 10/04/2017
Sobre a autora
Consuele Cordeiro Antunes
Psicóloga Clínica.
Candidata em formação no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.