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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso vol.42 no.80 Belo Horizonte jul./dic. 2020

 

PSICANÁLISE EM TEMPOS DE PANDEMIA

 

Do caos ao caso

 

From chaos to case

 

Eliane Mussel da Silva

Psiquiatra. Psicanalista. Professora da PUC Minas Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. E-mail: e.mussel@globo.com

 

 


RESUMO

Na introdução do Seminário 3, Lacan aponta para a novidade trazida por Freud quanto à psicose. Ali estão em jogo as mesmas determinantes que participam da constituição do sujeito neurótico e, no delírio, há um trabalho subjetivo. Neste artigo queremos colocar em cena a clínica diferencial entre a psicose e a neurose trabalhando para aquilo que a clínica da psicose nos ensina, qual seja, o real é a causa da constituição do sujeito e a linguagem nos parasita de forma autônoma e automática deixando o sujeito na condição de objeto, que seria a condição inaugural na constituição de todos os sujeitos.

Palavras-chave: Clínica diferencial, Psicose, Sujeito, Fenômenos elementares.


ABSTRACT

In the introduction ti Seminar 3, Lacan points out to the novelty brought by Freud regarding psychosis. There, the same determinants at stake are involved in the constitution of the neurotic subject and, in delirium, there is subjective work. In this article we want to put on the scene the differential clinic between psychosis and neurosis working on what the clinic of psychosis teaches us, namely, the real is the cause of the constitution of the subject and the language parasites us autonomously and automatically leaving the subject in the condition of object, which would be the inaugural condition in the constitution of all subjects.

Keywords: Differential clinic, Psychosis, Subject, Elementary phenomena.


 

 

Primeiro ato:

O caos (1920-2020)

Em 1920 Freud publica seu artigo Além do princípio do prazer, texto que revoluciona sua teoria pulsional ao trazer à tona uma força destrutiva na constituição pulsional do ser humano. Mas com (a) pulsão de morte (há) sempre uma 'repetição', um novo pedido de trabalho, e aqui estou às voltas com aquilo que não cessa de não se escrever.

A produção teórico-clínica de Freud foi marcada pelos acontecimentos de sua época bem como de suas experiências pessoais, o que nos leva a contextualizar a produção do seu texto Além do princípio do prazer, de 1920, buscando pontos de convergência com o que estamos vivendo em 2020, cem anos após, com a pandemia da Covid-19.

Na Primeira Guerra Mundial (19141918), Freud conviveu com o medo de perder seus filhos no conflito. Três deles se alistaram no exército. Martin, com 25 anos, apresentou-se voluntariamente. Admitido na artilharia, participou de combates nos fronts do leste e do sul. Oliver, o segundo filho, recusado até 1916, atuou desenvolvendo projetos de engenharia para o exército. Já Ernst, o mais jovem, que também se apresentou como voluntário, serviu no front italiano.

A guerra e a morte são temas em que Freud se debruça produzindo vários artigos como Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915), Introdução à psicanálise e às neuroses de guerra (1919), Por que a Guerra? (1932).

Explicita em 1915 o seu lugar de familiar no cenário de guerra, aquele que guarda o posto e anseia pelo retorno de seus entes queridos:

Deve-se estabelecer aqui uma distinção entre dois grupos - os que arriscam suas vidas no campo de batalha e os que permanecem em casa, tendo apenas de esperar pela perda de seus entes queridos por ferimentos, moléstia ou infecção. Seria muito interessante, sem dúvida, estudar as modificações na psicologia dos combatentes, mas sei muito pouco a esse respeito. Devemos restringir-nos ao segundo grupo, ao qual nós próprios pertencemos (Freud, [1915] 1969, p.330).

Quanto à morte, no mesmo texto, Freud ([1915] 1969, p. 329) diz:

É evidente que a guerra está fadada a varrer esse tratamento convencional da morte. Esta não mais será negada; somos forçados a acreditar nela. As pessoas realmente morrem, e não mais uma a uma, porém muitas, frequentemente dezenas de milhares, num único dia. E a morte não é mais um acontecimento fortuito.

Em janeiro de 1920, perde sua filha Sophie por complicações da gripe espanhola. Nove anos mais tarde, escreve para seu amigo Ludwig Biswanger referindo que a dor frente à perda sempre estará presente, como a única forma de perpetuar um amor que não se quer abandonar.

Em um dia qualquer de 2020, acordamos acossados pela notícia da presença no mundo de um ser invisível, estrangeiro, de nome coronavírus, que, como o próprio nome indica pega carona, parasita uma célula viva, um ser vivo, para se replicar. Segue uma lei implacável. Não sabemos ainda como desativar seu modo de contágio, logo não temos remédios ou vacinas para nos defender. Frente ao sem sentido decorrente da irrupção do real, buscamos imediatamente um saber na ciência e um sentido na religião. Saber e sentido para aquilo que não tem sentido nem nunca terá!!!

Sem garantias na ciência e cheio de sentido dado pela religião, sentido que a qualquer momento se dissolve, por ser o sentido algo viral, o sujeito, frente a este pedaço do real enquanto impossível de suportar, se angustia, ama, odeia, enlouquece, nega, tem esperanças. Enfim, encontramos a manifestação de vários afetos e paixões no confronto com o estrangeiro, o infamiliar.

A pandemia nos confronta com o real da vida, com a presença de um vírus que entra sem permissão em nosso corpo, sugando as nossas reservas de glicose e desviando a energia produzida pelas mito-côndrias. Quando o gozo da vida se esgota, o vírus desaparece, vai seguir seu caminho, parasitando outro corpo.

E assim, a pandemia caminha pela via da tragédia: há uma morte que se anuncia como destino inevitável. A cada um o vírus mostrou sua alteridade em relação ao corpo que habita. Corpo que retorna para a casa, orientado pela ciência para o distanciamento e o isolamento social, para evitarmos o contágio.

Porém, agora temos um corpo, que, para "[...] suportar a vida, tem que preparar-se para a morte", dirá Freud ([1915] 1969, p. 339).

Como pode o sujeito se defender da irrupção do real, do confronto com o estranho que o angustia? A clínica psica-nalítica é necessariamente portadora do real, mas como o analista pode acolher o real na ausência de palavras e imagens para bordejá-lo?

Buscando algumas respostas para tal questão, proponho trabalhar com a psicose, entendendo que a estrutura psicótica é um campo privilegiado para se pensar a

[...] questão de sujeito, porque nos conduz aos confins de sua produção (Miller, [1987] 1996, p. 181).

O que a psicose nos ensina sobre sua estrutura, sua lógica, que pode nos ajudar na clínica a acolher o real?

 

Segundo ato: A psicose

1. Sujeito do gozo e sujeito do significante

Partimos da premissa de que há sujeito na psicose. Mas de que sujeito se trata? No texto Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, Lacan ([1960] 1998, p. 821) refere que o sujeito da psicose é aquele para o qual é suficiente esse Outro prévio, ou seja, é suficiente a batería de significantes completa instalada no A.

Em 1960, o sujeito da psicose é pensado como aquele que não se subtrai da bateria significante, não cava uma falta no Outro.

Em 1966, na Apresentação das memorias do presidente Schreber, já imerso em sua teoria do real, Lacan ([1966] 2003) vai contrapor o sujeito do significante na neurose ao sujeito do gozo na psicose.

O sujeito do gozo na psicose é o sujeito que advém como efeito da produção de uma significação substitutiva à significação fálica que lhe falta. É, dessa forma, uma resposta do real, diferente do sujeito do significante da neurose, que advém representado por um significante para outro significante.

Para que o sujeito do gozo possa advir sujeito do significante, é necessário que uma outra operação entre em cena - o recalque primário - através da qual o sujeito neurótico entra na linguagem e advém como sujeito da representação ou sujeito do significante.

Nessa operação, o significante Nome-do-Pai vem substituir o significante do desejo da mãe e funciona para o sujeito como um não ao gozo absoluto - doravante considerado como impossível - e um sim simultâneo de possibilidade de acesso ao gozo fálico, parcial, que é o gozo propriamente dito sexual. Um certo acesso ao gozo, mas um gozo parcial, recortado pelos significantes e emoldurado pela fantasia.

Já na psicose, a ausência do recalque primário, a ausência da metáfora paterna e a não extração do objeto a impedem que o sujeito advenha representado por um significante para outro significante.

2. A morte na nascença do sujeito

A psicose ilumina de forma clara a dimensão em que a existência do sujeito é tributária da morte e nos permite dizer, com Lacan ([1953] 1998, p. 320), em

Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, que

[...] a intermediação da morte se reconhece em qualquer relação em que o homem entra na vida de sua história.

Mesmo na psicose, acrescentamos.

A morte do sujeito na psicose se dá pela "extinção do efeito de significação". No desencadeamento, não podendo mais contar com seus pontos de sustentação (bengalas imaginárias, significação substitutiva à significação fálica), abre-se o quadro psicótico. Dá-se, então, a dissolução da estrutura do sujeito anterior ao surto.

A morte do sujeito na psicose é descrita por Schreber ([1905] 1984) em suas Memórias quando narra o crepúsculo do mundo e a destruição dos órgãos do corpo - advém daí aquilo que conhecemos na psiquiatria pelo estupor catatônico - o imaginário se solta.

Lacan ([1957-1958] 1998) afirma em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose que a morte do sujeito em Schreber foi uma passagem necessária para que ele pudesse aceitar a transformação em mulher como exigência da Ordem do mundo e mesmo assumi-la como a solução elegante - delírio - em contrapartida à primeira ideação delirante persecutória que teve, em que seria uma mulher para Fleschsig e seria usado para fins sexuais.

Da posição de indignação frente à ideia de ser uma mulher para Fleschsig ao consentimento de ser a Mulher de Deus - período descrito como da morte do sujeito -, vemos uma série de fenômenos que podemos resumir na frase: "Sou um cadáver leproso conduzindo outro cadáver leproso".

Como vimos com a morte do sujeito, Schreber mobilizou recursos para se restituir sujeito do gozo, se engatando num processo que o fará a Mulher de Deus - abertura à recomposição imaginária através de uma solução elegante.

Vale a indicação de que nem sempre observamos, na clínica da psicose, a positividade atribuída por Lacan para a morte do sujeito em Schreber.

Ela pode funcionar também para uma mortificação do sujeito, sua petrificação, permanecendo no quadro de estupor catatônico, mutismo, abulia, etc. levando em boa parte das vezes as passagens ao ato suicidas e homicidas.

É interessante notar que, após introduzir a morte do sujeito no texto A questão preliminar, Lacan ([1958] 1998, p. 578) apresenta o Esquema I, que mostra a estrutura do sujeito ao término do processo psicótico e a demonstração de que tal estrutura contém os mesmos pontos geométricos do Esquema R, da realidade do sujeito dito normal. O delírio reproduz as determinantes da estrutura para todo sujeito.

Quanto ao sujeito do significante, Lacan ([1960] 1998) nos diz no texto A subversão do sujeito e dialética do desejo, que o sujeito nasce mortificado pelo significante condenado a ser representado por um significante para outro significante, a saber, o significante "mata" a coisa ao fazê-la existir no significante. Com isso, chamamos atenção de que o sujeito só se constitui ao se subtrair da bateria do significante. Logo, o sujeito do significante se constitui como falta-a-ser. Inscrição de um sujeito marcado pela falta e pela morte, e, de outro, o objeto como perdido.

3. A alucinação e o delírio - fenômenos elementares

Com a morte do sujeito ocorre a invasão de um gozo anômalo e deslocalizado com a presença de fenômenos elementares. E aqui gostaria de rapidamente trabalhar a alucinação e o delírio.

Há a intrusão no campo da realidade dos objetos voz e olhar (objetos pulsionais não perdidos) sob a forma de alucinação. Presença de um objeto meio paradoxal, meio coisa, meio significante, ou aquilo que Lacan designa como o S1, fora da cadeia, sem sentido, que lhe causa perplexidade.

A alucinação nos ensina, assim, que os significantes não estão unidos em uma cadeia. Eles estão soltos - um enxame de S1. A alucinação é invasiva, intrusiva, ameaçadora, entretanto produz um sujeito; ela é sem sentido, mas organiza um sentido.

Em Questão preliminar, Lacan ([1957-1958] 1988) dirá que a alucinação designa o sujeito por alusão, implicando numa atribuição subjetiva.

Num segundo tempo, o S1 alucinado, sem sentido, pode ganhar sentido ao se articular com outro significante S2, articulando uma cadeia. Todo um sistema de significações vai se construir em torno desse objeto voz. O S2 é o delírio, que faz com que a violência inicial ganhe um sentido.

O delírio é, assim, uma interpretação que confere palavras à experiência inefável do psicótico e localiza esse gozo que atravessa e desarticula seu corpo, possibilitando uma ordenação a seu mundo. Ele é uma construção do sujeito, que vem conferir uma significação que pode fazer suplência à significação fálica.

 

Ato final: do caos ao caso

Numa apresentação de enfermo com um paciente que apresentava uma psicose à base do automatismo mental, que fazia com que ele fosse invadido por palavras e frases impostas, Lacan ([1975-1976] 2007, p. 92) se pergunta:

Como é que todos nós não sentimos que as falas das quais dependemos são, de algum modo, impostas?

Cada sujeito, seja neurótico, seja psicótico, é efeito do significante e responde a isso como pode e com o que tem. Somos parasitados pela linguagem. Temos a fala como a condição de nos enodarmos e de nos salvar da morte. O neurótico tem o recurso da instância fálica, que dá a ele o anteparo da fantasia, que vai mediar a relação do S com o objeto perdido (objeto a) funcionando como suporte do desejo.

Já o sujeito psicótico acossado pelo S1 - UM e pelo objeto não extraído do campo da realidade, vai restaurar o imaginário com o trabalho delirante de invenção da "mulher de Deus" levando a um apaziguamento do gozo do Outro, mediante remanejamento simbólico.

A alucinação (S1) pode funcionar como uma âncora para organizar a estadia do psicótico no Outro, alojá-lo no Outro. Dessa voz alucinada depende o destino do sujeito. Ela pode mudar sua identidade, pois sustentará uma nova atribuição subjetiva.

O psicótico parte, assim, do sem sentido, do real, do UM sem contar com o Outro, para se constituir sujeito em sua existência, enquanto o neurótico se agarra ao sentido, se defendendo do real como pode, tamponando sua falta-a-ser. De um lado, a existência (psicose) e, de outro, o ser enquanto falta-a-ser (neurose), ou as duas dimensões do inconsciente trabalhada por Lacan: Ics estruturado como uma linguagem e o Ics real como furo, vazio.

Estamos vivendo uma pandemia, a irrupção do real impossível de ser vivido, impossível de ser suportado. Sem dúvida, o coronavirus produziu um corte em nossa vida, rompendo com a maneira rotineira da qual vivíamos, abalando nossas supostas respostas às perguntas fundamentais do ser, como: O que sou? O que é o outro? Como estabelecer laço com os outros? Isolados e submersos no sem sentido, no vazio, temos que nos 're-enodar', refazer as bordas do vazio, tecer novas palavras, estabelecer novas cadeias, enlaçando o inconsciente com o real rompendo com as repetições das atuações fantasmáticas.

Para tanto, precisamos acolher incluindo o sujeito num trabalho a partir de suas modalidades expressivas, do brilho e sombra do olhar, da sua modulação de voz para fazer ressoar e persistir pequenos movimentos de subjetivação, fornecendo consistência ao desejar.

Temos que apostar que a construção em análise pode ser algo novo, criado a partir da relação transferencial e que decorra daquilo que não foi representado, do não simbolizado.

Sabemos que o que podemos compartilhar com o outro é exatamente o vazio desvelado abruptamente por esse ser invisível. Só nos resta agora estabelecer novo laço pautado pela solidariedade, pelo amor - a filia - a amizade, enfim, um amor de um ou mais sujeitos em relação a uma ideia, inventando uma nova maneira de estar na vida.

Se nos defendermos do parasitismo deste vírus deixando que ele cumpra a sua própria sorte, poderemos gozar as pequenas alegrias da vida, amar e trabalhar, sustentados em um novo significante.

Como diz Chico Buarque, "amanhã vai ser outro dia".φ

 

Referências

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Recebido em: 14/08/2020
Aprovado em: 18/09/2020

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