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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso vol.42 no.80 Belo Horizonte jul./dic. 2020

 

PSICANÁLISE EM TEMPOS DE PANDEMIA

 

Psicanálise online com crianças - uma prática em construção

 

Online psychoanalysis with children - a practice under construction

 

 

Maria Carolina Bellico Fonseca

Psicanalista. Sócia efetiva do CPMG. Mestre em Psicologia - Estudos Psicanalíticos pela UFMG. E-mail: carolinabellico@gmail.com

 

 


RESUMO

Em tempos de isolamento social, o recurso ao atendimento online com adultos tem sido uma prática constante entre os analistas. É consenso, porém, que não substitui o atendimento presencial, mas pode ser efetiva. A autora, a partir de sua experiência da psicanálise online com crianças, defende a ideia de que o mesmo atendimento pode ser feito uma vez que os objetos voz e olhar, e a escuta do analista podem se manter. Este texto é uma reflexão sobre esse trabalho que, movido pela impossibilidade da presença dos corpos de analista e analisando, sustentou uma prática analítica neste momento de privação da presença imposto pelo distanciamento social.

Palavras-chave: Psicanálise online, Voz, Olhar, Escuta analítica, Desejo de analista.


ABSTRACT

In times of social isolation, the use of online service with adults has been a constant practice among analysts. It is a consensus, however, that it does not replace face-to-face assistance, but it can be effective. The author, based on her experience of online psychoanalysis with children, defends the idea that the same service can be done since both voice object and look object, as well as the analyst listening can be maintained. This text is a reflection on this work that, due to by the impossibility of the presence of the both the analyst's and the analyzing bodies, supported an analytical practice in this moment of deprivation of presence imposed by social distance.

Keywords: Psychoanalysis online, Voice, Look, Listening analytic, Desire of analyst.


 

 

A psicanálise com crianças, inaugurada com o atendimento de Hanns, é um trabalho que já causou e, acredito, ainda causa discussões. Seria um trabalho pedagógico? Seria uma adaptação da análise com adultos? O falar é equivalente ao brincar? Essas são algumas das muitas questões que essa prática suscita, e aqui estamos nos referindo ao atendimento psicanalítico presencial com crianças.

Com a pandemia e o subsequente isolamento social essa discussão se complica - seria possível a análise de crianças online?

Muito tem sido falado sobre a psicanálise online de adultos, única possibilidade de escuta do sofrimento humano no momento em que vivemos. É uma forma de lidar com o impossível imposto pelo real desta pandemia. Ela não substitui o presencial, porém, com a manutenção dos objetos olhar e voz, a psicanálise pode acontecer mesmo na ausência dos corpos. É o que vem concluindo um bom número de analistas pelo mundo afora.

Mas o mesmo poderia ser dito da psicanálise com crianças? Alguns analistas vêm atendendo seus pequenos pacientes online. Mas, curiosamente, poucas lives sobre o assunto foram divulgadas em comparação com o número de vídeos sobre o atendimento de adultos. Eu só vi uma.

Mesmo nas lives dedicadas à psicanálise com adultos, a maior parte dos analistas concorda acerca da viabilidade desse tipo de trabalho com crianças. No entanto, poucos têm abordado o assunto publicamente. Seria prudência? Seria medo?

Quando falamos de atendimento online, estamos falando de um novo setting que, em comum com o presencial, tem a pessoa do analista e do analisando, mas na ausência dos corpos. Ficamos reduzidos à voz, ao olhar, à escuta e à fala.

A teoria não previu esse encontro dos seres falantes com o real, encarado por alguns como uma possibilidade de lidar com a angústia que nos assola a todos, adultos e crianças, e que vem produzindo o aumento da violência, dos sintomas e intensa inibição. E nos vimos frente à necessidade e ao desafio de uma invenção.

Movida por esse desafio e pela preocupação com meus pequenos pacientes, resolvi iniciar o atendimento online de crianças e trazer esta reflexão sobre minha clínica com elas nestes tempos de pandemia.

Comecemos com uma breve abordagem de psicanálise presencial com crianças.

No trabalho com crianças, a dimensão imaginária, que nos traz o corpo, o sentido e a agressividade, não pode ser ignorada. Aqui o psicanalista entra por inteiro -voz, olhar, cheiro, corpo. Corpo sem tato, sem tatear. Sua presença se confunde e se funde com seu corpo e, isto é evidente, quando ele brinca, dramatiza ou joga.

Seus personagens, normalmente parasitados pelos desejos que lhe são atribuídos pelas crianças, entram em cena e cumprem seus papéis, mas, de repente, se rasgam e surge um dito ou uma ação diferente da combinada, que pode vir a ser um ato que tira tudo do lugar, virando tudo de ponta-cabeça.

As crianças se defendem:

Lá vem você com esse papinho de psicóloga!...

Isto não tava no combinado. Assim não vale!

Mas as cenas se seguem, se encadeando e desencadeando, conforme o que é escutado pelo psicanalista nas entrelinhas das falas, nas frestas das brincadeiras, nos suspiros, nas risadas e nas caras feias. E é nesse desencadear que surge a esperança do novo, de um laço diferente com o Outro, com a Lei, com o mundo.

A fantasia em construção tem a possibilidade de novos desdobramentos. E o real desconhecido não precisa ser mais tão avassalador e promovedor de sintomas. Chapeuzinho Vermelho ou o porquinho aprendem a fazer diferente na presença dos lobos. Lobos que sempre virão porque fazem parte da vida, mas que não os tomarão mais de assalto, vítimas de um não saber do perigo, de um não saber fazer com a angústia suscitada pelo encontro com um Outro tão onipotente aos seus olhos.

Não! O Outro está furado e, durante a análise, a criança se dá conta disso:

Minha mãe acha que sabe tudo, quer mandar em tudo. Ela não sabe, mas não é tão certinha quanto acha que é.

A percepção do furo no Outro e de seus próprios limites é o que propicia a saída da alienação e a operação de separação. Com isso é possibilitada a saída do lugar pernicioso de objeto exclusivo do gozo parental - não ser mais um defensor cego, uma ponte ou um brinquedo dos pais. É um dos grandes ganhos para a criança em sua análise.

Em Nota sobre a criança, Lacan ([1969] 2003, p. 369) estabelece uma ligação entre o sintoma da criança e a família. Ele nos diz que

[...] o sintoma da criança acha- se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar.

Segundo Lacan, o sintoma pode representar a "verdade do casal familiar". O que é indicado aqui é que, em seu sintoma, a criança denuncia que algo vai mal - com ela ou com a família, ou com o par parental, ou com todos.

Nesse sentido, ela muitas vezes é encaminhada ao analista para restabelecimento de um status quo de gozo, ou seja, que a verdade semidita do sintoma seja tratada através do atendimento da criança.

Dessa forma poderá haver, sob a ótica parental, o restabelecimento da ordem familiar, do narcisismo dos pais e o alívio do sofrimento da criança. Mas a análise infantil não tem por objetivo a adaptação da criança e muito menos o bem-estar familiar. Isso pode ser a consequência.

Por outro lado, concordo com Silvia Zornig citada por Flechet (1989) quando ela estabelece duas categorias de sintoma: o sintoma descrito acima como resposta à neurose dos pais e o sintoma analítico propriamente dito, articulado ao recalcamento primário e correlato à constituição da neurose do sujeito.

Daí a necessidade de uma escuta criteriosa dos pais, como nos advertem Silva e Rudge (2017), a fim de que possamos, enquanto analistas da criança, "[...] perceber as amarrações entre pais e filhos nesse enlace patológico". Assim, será possível o redimensionamento das questões trazidas pelos pais ao procurar um analista.

Com a criança, o analista como corpo, voz, olhar e escuta, testemunha os deslocamentos do inconsciente transmutados em jogos e brincadeiras. Seu olhar, diferente da visão, visa o para-além da imagem apresentada e junto com a escuta localiza, pontua o não dito de um novo sujeito. Ele se deixa surpreender pelas manobras dos pequenos, mas denuncia e pontua o 'causa-dor' de tudo. Pontuações que provocam reações e colocam a criança frente a frente com seus impulsos e pulsões.

E o sintoma, assim questionado, vai entrando em convulsão e em lenta dissolução. A inibição é sacudida e vai caindo em lascas deixando livre o sujeito. A angústia entra em lenta dissipação à medida em que a aproximação do Outro já não se faz tão ameaçadora. É até possível brincar com o monstro e provocá-lo:

Vampirinho!... Ah! eu aqui, oh!!! Vem me pegar!

De seduzido, o sujeito passa a sedutor, repetindo o terceiro tempo do circuito pulsional, se fazendo objeto para o Outro, não mais apassivado, mas de maneira ativa, escolhida, balizada por seu desejo. Dessa forma, os medos, as inseguranças, as inibições podem dar lugar ao objeto de desejo, e a criança mais livre pode alçar novos voos.

Com base no que foi dito aqui, podemos afirmar que, aquele que se dedica ao tratamento psicanalítico de crianças não deve negligenciar os pais e a importância da transferência deles com o analista, caso contrário a análise pode não se sustentar.

Vorcaro (1998, p. 75) nos lembra:

O analista, portanto, está no lugar de suportar uma transferência de dois lados, já que não pode ser, para ele, espantoso, que os pais lhe demandem algo para o seu filho.

E continua:

Tal transferência de dois lados institui o analista num duplo lugar: sujeito suposto saber para os pais e sujeito suposto adivinhar para a criança, para quem a fala do analista ressoa no "como você adivinhou" (Vorcaro, 1998, p. 75).

Mas...

Tudo isso seria possível online?

Seria possível na ausência do corpo do analista?

Voz e olhar se sustentariam através de milhares de pixels?

E os brinquedos?

Como atuar com crianças na ausência de jogos e brinquedos, fora da segurança sigilosa das quatro paredes do consultório?

Todas essas questões me pegaram em cheio no início da quarentena e do isolamento social.

Analista de crianças há muitos anos, nunca tinha passado por nada semelhante ao que está acontecendo nem imaginei que um dia viveria algo assim. Eu já havia atendido alguns adultos online por ocasião de viagens, mudanças e doenças, mas criança?

Nunca imaginei que isso fosse possível. Mas quando o real se impõe a nós como impossível, nos resta, como sujeitos analisados, a saída de uma nova construção, uma reinvenção que nos possibilita seguir em frente enquanto sujeitos desejantes. Sim, me dei conta de que, se eu quisesse sustentar o laço construído com meus pequenos analisantes, teria que me valer de meu desejo de analista e construir uma nova prática.

Mas daria certo?

Enquanto me debatia durante a primeira semana de isolamento com a questão ética desse tipo de atendimento, comecei a ouvir as primeiras das muitas lives que surgiram como um novo fenômeno no campo da psicanálise. Contudo, todas se referiam ao atendimento online de adultos, da sua validade apesar de não substituir o presencial.

No entanto, com as crianças... Quem me autorizaria?

Eu!

Essa resposta coincidiu com a demanda de um cliente de 10 anos que, ao ver o irmão adolescente sendo atendido online pelo analista, insistiu com a mãe que também queria ser atendido por mim. A mãe me ligou. Demanda de análise feita, me restava aceitar ou declinar.

A opção mais fácil seria a segunda, mas eu já havia me autorizado e andava preocupada não apenas com o isolamento, com a angústia de morte suscitada por uma ameaça invisível, mas também com a aproximação forçada da família sem possibilidade de escapatória através da natação, do judô e do balé.

Pais e filhos confinados, na maioria dos casos em apartamentos, sem parques ou jardins, sem amigos ou inimigos. O percurso feito até então em análise por essas crianças seria o suficiente para sustentar tudo isso, toda a angústia suscitada por esta nova realidade?

Com tais questões em mente e um pouco tranquila pelo fato de essa criança ter um simbólico bem constituído e uma transferência bem estabelecida, aceitei fazer uma sessão, escutá-la e avaliar as possibilidades de tal tipo de atendimento.

Fui receosa, mas sem 'pré-conceito', mesmo porque, como disse anteriormente, nada do que vivemos e estudamos até então nos preparou para o trauma desse corte em nossa vida. Não havendo, pois, corpo teórico acerca desse desamparo radical, não havia um conceito contra o qual me opor.

Dessa forma, combinei com a mãe um novo setting para as sessões: um lugar na casa com privacidade, uma mesa com material de desenho, alguns brinquedos escolhidos pela criança. Frisei a importância de ela estar sozinha como se estivesse no consultório e sem nenhuma interrupção de qualquer tipo.

Fui para a sessão e... surpresa! Foi um dos atendimentos mais interessantes com crianças que já conduzi, no qual meu pequeno analisante, num movimento claro e inédito até então de separação, se colocava fora das disputas parentais acirradas no momento do isolamento social.

Seus pais, tomados por um ódio irrefreável, se agrediam e buscavam angariar a simpatia dos três filhos ao seu ponto de vista. Os filhos, jogados ora contra um, ora contra outro, ficavam angustiados, atordoados, com medo de apoiar um e perder o outro.

Meu paciente, sem querer tomar a defesa ou o partido de ninguém, colocou-se naquela sessão de análise fora da disputa.

Eles se provocam e brigam. Eles que se resolvam!

Foi um primeiro passo, nunca antes dado, mas um primeiro passo! Sei que a caminhada ainda seria longa, mas me animei e, a partir dessa experiência, propus às outras famílias e aos meus pequenos analisantes o atendimento online.

Alguns pais preocupados "com o vínculo" da criança com a analista, concordaram, mas com uma frequência quinzenal; outros com a semanal. E o trabalho tem acontecido com algumas intercorrências, mas tem sido possível.

Percebo que minha voz e meu olhar, objetos que sobraram do corte operado pelo online, têm sustentado o trabalho. Mímicas, brincadeiras de espelho, dancinhas, cambalhotas e pulos no sofá trazem o corpo de volta à cena através da imagem refletida na tela. Eles se movem para mim e para eles mesmos, num deleite gozoso com a própria imagem.

Brincadeiras sem sentido explodiram e, num primeiro momento, o duplo sentido do simbólico cedeu lugar ao nonsense do real. Contudo, com a persistência de analista e analisandos, o trabalho tem acontecido. O simbólico começa a dar as caras em brincadeiras de casinha, relatos de sonhos, comentários de livros, filmes e séries, desenhos, etc.

Dessa forma, tem sido possível ouvir a angústia de morte trazida por um vírus ameaçador, castrador e incompreensível, elaborar a tristeza de estar separado de amigos e parentes queridos, a chatura das aulas online, a pressão e a contrapressão vividas em casa pelo contato cotidiano sem intervalos com os familiares.

Como pano de fundo, paira o medo da morte trazido pela Covid-19, anunciada em todos os veículos de comunicação, além do temor da perda dos pais, com o consequente desamparo.

Fui levada à intimidade dos quartos e das salas, travei conhecimento com pets e brinquedos preferidos e participei de um giro virtual pela casa de meus pacientes.

Crianças que no consultório só jogavam numa repetição que funcionava às vezes como resistência, numa clara adesividade da libido num fechamento à análise, passaram a desenhar, contar casos, inventar histórias trazendo lacunas no discurso que viabilizaram o lampejo do inconsciente.

É interessante pensar nisto: esta nova modalidade de atendimento trouxe, em alguns casos, o deslizamento significante, como nesse caso de jogador a contador de histórias...

Minha experiência, no entanto, se deu com crianças que já estavam em análise antes do isolamento social, que já haviam estabelecido uma relação transferencial comigo, isto é, que descobriram a possibilidade de vir a ser sujeito de seu desejo nesta relação em que seu dito tem valor de verdade, é levado a sério e comporta consequências.

Alfredo Jerusalinsk (2011, p. 28) afirma:

A transferência na infância consiste em que o analista permita à criança: a expansão ficcional no Outro encarnado seguramente por seus pais ou em quem seja, que não foi permitida. Por isto que o analista se torna confiável para a criança. Não porque exerça uma autoridade como dizia Anna Freud, ou porque é um adulto, é confiável porque lhe permite a expansão ficcional que os outros não lhe permitiram. Permite-lhe buscar a margem desta ficção, a margem do imaginário à qual os outros não lhe permitiram aceder, seja porque não o demarcaram ou lhe negaram o exercício do saber imaginário que lhe é próprio da infância.

Entendo essa expansão ficcional como um saber não sabido pela criança sobre sua verdade, sobre o par parental, sobre a família. Saber sobre seu sintoma e sobre seu lugar de sintoma na família:

Lá em casa o errado sempre sou eu! Não vou ficar mais entre esses dois [pai e mãe] que, em suas brigas, ficam me puxando pra lá, pra cá, pra lá, pra cá.

Aqui sigo Jerusalinsk (2011) em sua excelente diferenciação entre sinthome e symptôme (grafia do francês antigo) na infância.

[...] sinthome é o sintoma da estrutura ou da formação inconsciente da estrutura, com que o sujeito responde à demanda do outro (Jerusalinsk, 2011, p. 68).

Tudo que é da ordem do ficcional, os contos infantis, jogar, as personificações, ou seja, travestir-se de Batman ou de cowboy [...] (Jerusalinsk, 2011, p. 48).

E aqui nesta categoria ele inclui tudo o que fazem as crianças: o desenhar, o dramatizar, o terror noturno, a fobia noturna, as fabulações, etc.

Mas é próprio da infância que ocorra tudo isso, se não ocorre, algo anda mal (Jerusalinsk, 2011, p. 65).

Já o symptôme, ou sintoma, ele coloca como sintoma clínico, algo na "ordem da enfermidade psíquica", "manifestação a ser curada" (Jerusalinsk, 2011, p. 68). Aqui

Não se trata de uma proposição como a da terapia breve, de tomar o sintoma e reeducá-lo, mas de interpretar, ou seja, de produzir o corte, a costura ou a torção necessária na cadeia significante no ponto em que o representante do fracasso de resposta à demanda do Outro obriga a produzir um symptôme. Dito de outro modo, se a produção do sinthome com th, o sintoma da estrutura fracassa como resposta à demanda do Outro, o sujeito tem que inventar uma coisa. Aí é que vem o sintoma clínico (Jerusalinsk, 2011, p. 68).

Se, por um lado, o sinthome pode ser visto como uma brincadeira de criança com a qual ela elabora angústias despertadas por um não saber-fazer frente ao que lhe é demandado, por outro lado, o sintoma é o que interroga o sujeito num Decifra-me ou devoro-te, o que nos desafia na clínica e o que pede a operação do analista.

Aqui um saber tem que ser criado a partir da interpretação, do corte, da costura ou da torção na cadeia significante

[...] no ponto em que o representante do fracasso de resposta à demanda do Outro obriga a produzir um symptôme! (Jerusalinsk, 2011, p. 68).

E eu acrescentaria que tais operações do analista podem ocorrer tanto nas análises presenciais quanto nas análises online, é o que esse trabalho tem me mostrado ser possível.

Com o isolamento social, as crianças ficam mais sujeitas à pressão das demandas constantes que vêm dos pais. A escola foi levada a lhes cortar o prazer do convívio com os pares lhes deixando apenas o despreparado e enfadonho ensino online. Clubes, parques, praças, esportes, tudo foi vedado.

Além disso, com o isolamento, elas se viram separadas de amigos, parentes e atividades que lhes davam prazer e, como todos nós, passaram por perdas e rupturas. Nesse caso, porém, por serem crianças, sua condição simbólica ainda está em construção.

Confusas, elas enfrentam esta pandemia com suas fantasias às vezes persecutórias e terroríficas, amparadas apenas no dito dos pais, enfraquecido, ele mesmo, pelas fantasias e pelos desejos insatisfeitos dos adultos. Podemos dizer que, nesse panorama, o sinthome de algumas crianças, vem se mostrando insuficiente no enfrentamento desse real.

A elas resta o incremento dos sintomas como expressão de suas angústias - mais mentiras, mais agressividade, mais comilança, mais improdutividade escolar, mais brigas, mais inibição, mais angústia.

Dessa forma, com toda a limitação defendo o trabalho online com crianças. É o que temos neste momento e, mesmo com dificuldade, tem tido sua eficácia na escuta desse sofrimento. Não vou dizer que tudo são flores, que tudo dá certo e tem final feliz. Essa não é a realidade da psicanálise nem em atendimentos presenciais e muito menos nos atendimentos online.

Contudo, tem sido possível continuar a escuta de suas angústias nas produções que trazem. Algumas crianças ficaram mais tímidas e dispersas com o novo estímulo entre nós, os iPad e os celulares, fortes aliados para a resistência, mas depois de algum tempo e muito trabalho, tem sido possível caminhar na construção desta nova modalidade de atendimento, ora contornando as pedras do caminho, ora construindo algo novo com elas.

No meio do caminho

Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.
φ

 

Referências

ANDRADE, C. D. No meio do caminho. Disponível em: http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond04.htm. Acesso em: dia mês ano.         [ Links ]

JERUSALINSK, A. Para entender a criança: chaves psicanalíticas. São Paulo: Instituto Langage, 2011.         [ Links ]

LACAN, J. Nota sobre a criança (1969). In: ______. Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 369-370. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

RUDGE, A. M.; SILVA, A. C. V. Os pais no tratamento psicanalítico de crianças. Trivium - Estudos Interdisciplinares, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 23-35, jan./jun. 2017.         [ Links ]

VORCARO, A. Crianças na psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.         [ Links ]

ZORNIG, S. A. J. Da criança-sintoma (dos pais) ao sintoma da criança. Disponível em: https://siteantigo.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/psicologia/da-crianca-sintoma-dos-pais-ao-sintoma-da-crianca/5476. Acesso em: dia mês ano.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 05/08/2020
Aprovado em: 18/09/2020

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