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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso vol.42 no.80 Belo Horizonte jul./dic. 2020

 

PSICANÁLISE EM TEMPOS DE PANDEMIA

 

Psicanálise, sonhos e luto na pandemia

 

Psychoanalysis, dreams and mourning in the pandemic

 

 

Marília Brandão Lemos de Morais Kallas

Psiquiatra. Psicanalista. Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Autora do livro Psicanálise e contemporaneidade (São Paulo: Biblioteca 24 horas, 2010), publicado também em espanhol (Buenos Aires: Croquis, 2011). Autora de artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras. E-mail: mariliabrandao@uol.com.br

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é falar sobre os impactos da pandemia na vida psíquica dos sujeitos, desde as primeiras semanas até hoje, sobre o papel relevante da psicanálise e da clínica psicanalítica no mundo atual e apresentar as características dos sonhos e do luto nesta época de Covid-19.

Palavras-chave: Pandemia, Psicanálise, Clínica Psicanalítica, Sonhos, Luto.


ABSTRACT

The objective of this work is to discuss about the impacts of the pandemic on the psychic life of the subjects, from the first weeks until today, about the relevant role of psychoanalysis and psychoanalytic clinic in the current world and to present the characteristics of dreams and mourning in this time of Covid -19.

Keywords: Pandemic, Psychoanalysis, Psychoanalytic Clinic, Dreams, Mourning.


 

 

Decifra-me ou te devoro, diz a esfinge a Édipo, na tragédia de Sófocles Édipo Rei, expressão usada aqui, para o que a pandemia, no lugar da esfinge, poderia dizer ao Homem estupefato.

Frente ao imponderável, é necessário tecer uma teia de ficções e significantes entre beiradas, na expectativa de sobreviver psiquicamente e não morrer para a vida em si. "Nem o sol nem a morte podem ser encarados frente a frente", diz o pensador francês François de La Rochefoucauld.

Vivemos tempos estranhos. Um vírus, bastante limitado do ponto de vista de sua estrutura biológica de RNA, uma ameaça invisível, surge do nada e ataca o planeta, provocando o pânico, a doença e a morte. O indizível nos rodeia. O medo nos atravessa. A morte ronda ao lado. O mundo já não é o que é. E não sabemos o que está por vir.

Vivemos o presente, e essa talvez seja a melhor forma de viver. Incertezas, desespero, perda de entes queridos, desassossego. Alcançar a subjetividade do sujeito no mundo contemporâneo em tempos de pandemia é um desafio. Vivemos um pantraumatismo. O advento do real desassombrado. Solidão. Isolamento. É um convite para a reflexão de nossa finitude. Despimo-nos de nossas certezas narcísicas e estamos à mercê da morte, que iguala todos.

As preocupações são várias, entre elas, as questões econômicas que afligem todos, em especial, os mais desfavorecidos socialmente. A violência doméstica e os abusos aumentam assim como o uso de drogas e bebidas alcoólicas. Casamentos se dissolvem. Crianças vivem o tédio da prisão domiciliar. E os idosos sofrem de reminiscências.

O presente é o desamparo e o desalento. O estresse agudo. A pulsão de morte cavalga com os quatro cavaleiros do Apocalipse: a peste, a fome, a guerra e a morte. Quem poderá detê-los?

Enquanto a ciência não consegue uma medicação eficaz ou uma vacina, podemos tentar conter essa guerra com a solidariedade, com Eros, formando conglomerados libidinais, laços comunitários.

Se a pandemia é um traumatismo generalizado e mundial, o trauma do sujeito é individual e singular: depende de suas fantasias e suas vivências anteriores. Os atendimentos de crise na clínica aumentaram, e a melhor forma de catalogá-los, segundo a teoria psicanalítica, seria através da neurose de angústia em Freud, (1894; 1895), que é o que fundamenta as crises do transtorno de pânico (Morais; Salles, 1997; Kallas, 2010).

Acrescente-se a isso os novos sintomas descritos por Birman (2001), com o extravasamento das intensidades e a angústia no corpo, como acontece no estresse, no pânico e nos transtornos psicossomáticos. Além disso, o extravasamento na ação, como na violência, na agressividade e ações fracassadas ou nas compulsões, como o álcool, as drogas, a comida. E por último, com a descarga do excesso no psiquismo, que extravasa como humor e pathos nos sentimentos, provocando depressão. O excesso é sempre a irrupção de algo que escapa ao controle e à regulação da vontade.

Percebemos, então, a presença da angústia do real e sua consequência - o efeito traumático (Birman, 2014). A subjetividade fica ante algo que a ultrapassa, do qual não pode dar conta. O pensamento e a linguagem do sujeito contemporâneo estão empobrecidos.

No início da pandemia, com a redução do contato físico e o isolamento social, o foco de apreensão é o medo de ser contaminado. Posteriormente, além dos quadros ansiosos, temos as crises de pânico, o desencadeamento de quadros depressivos, inclusive, ideias suicidas, a piora dos quadros obsessivo-compulsivos, com pessoas ferindo suas mãos e braços de tanto lavá-los e passar álcool, o desencadeamento de transtornos alimentares, como compulsões por comida, obesidade, bulimia e anorexia, aumento do consumo de álcool e drogas, de primeiros surtos psicóticos.

Constatamos também a reagudização de pacientes com transtornos mentais prévios estabilizados, o luto pela perda de entes queridos, a devastação daqueles sobreviventes que passaram pela Covid-19 com quadros graves e internações em UTI, além das consequências psíquicas das pessoas com dificuldades econômicas, financeiras e de desemprego. Aparecem os transtornos de estresse pós-traumático. O número de suicídios tem aumentado nesta pandemia.

O manejo clínico da angústia nesta época de pandemia implica a necessidade de olhar o sujeito no entorno da situação social em que vive. O choque traumático, se pudermos comparar essa situação excepcional que vivemos com um trauma generalizado e planetário, rompe com a percepção temporal e instaura um tempo único, tempo presente, que se repete (Birman, 2014).

O sujeito é invadido por uma quantidade insuportável de energia que rompe as barreiras de proteção psíquicas, intensidades essas que não serão transcritas para a ordem psíquica da representação. Cabe ao psicanalista proporcionar o espaço para esse escoamento e para a possibilidade de elaboração. Quando existe uma situação de urgência vital, existe uma suspensão das urgências subjetivas.

O adequado manejo da angústia na pandemia é fundamental. Ela pode ser de tal forma intensa e desembocar perigosamente na passagem ao ato e atuações, como uma descarga frente ao sofrimento insuportável vivido pelos pacientes. Daí a necessidade de diminuí-la e saber manejá -la. Estamos aqui falando de atendimento de crises.

Enquanto psicanalistas, temos um importante papel a ser desempenhado: acolher, estimular a fala do paciente, fala essa que contorna as bordas do traumático e ouvir o seu sofrimento. A vida, a partir de uma catástrofe, nos apresenta novas possibilidades de reinvenção.

 

Os sonhos na pandemia

Observando os sonhos dos sujeitos durante esta pandemia, é interessante observar algumas mudanças nas suas características.

Desde a Antiguidade os sonhos são usados como forma de leitura do presente e de previsões do futuro, relatos muito constantes no Antigo Testamento da Bíblia e nos escritos homéricos com as profetizas e os oráculos.

Em seu livro A interpretação dos sonhos, Freud ([1900-1901] 1996) diz que o sonho é a via régia do inconsciente. Nele o desejo inconsciente navega atemporal entre presente, passado e futuro trazendo um enigma a ser decifrado pelo sonhador.

Os sonhos se decifram na singularidade de cada um. Se aproveitam dos desejos atuais, dos restos diurnos, voltam-se para os desejos passados, revisitam memórias e traumas. Além disso, podem dizer do futuro, não porque têm o poder de adivinhar o que virá, mas porque realizam desejos que concorrem para a determinação de estados futuros.

Os sonhos, durante a pandemia, estão mais vívidos, mais reais. As pessoas estão se lembrando mais, e o roteiro é mais extenso e detalhado (Suzuki, 2020), já que o sonho é como um filme nonsense, com imagens a serem desmontadas pelo sonhador, remetendo-o a um trabalho de simbolização.

Um grupo de pesquisadores da UFMG, da USP e da UFRGS iniciou o projeto Oniropolítica em tempo de pandemia (Susuki, 2020) cujo objetivo é investigar a função social dos sonhos, como a pandemia, a quarentena e o isolamento social estão afetando os sonhos dos brasileiros, movido pelo interesse na função coletiva dos sonhos, nos medos e nas angústias durante a pandemia. Atualmente mais de 500 relatos já foram colhidos, de acordo com um dos pesquisadores, o psicanalista Cristian Dunker, da USP (Suzuki, 2020).

Segundo os pesquisadores, o tema da perda se destaca nesses relatos oníricos - perda de pessoas, de casa, perder-se e não saber voltar mais, perda de objetos, da memória, carregados de muita angústia, mal-estar, incertezas, sensação de perseguição, falta de confiança nos laços afetivos, violência.

Muitos sonhos remetem aos lugares de origem de quem relata - a cidade natal, a casa de infância -, diz Gilson lannini um dos pesquisadores da UFMG. E acrescenta que o termo "casa" é o mais onipresente nos sonhos, a partir de uma nuvem de palavras. Os temas pandemia e morte aparecem, na maioria das vezes, metaforizados (Silveira, 2020).

Mas esse novo que a pandemia traz, essa sensação de nunca termos vivido isso, carrega um sentimento de desamparo, de algo estranho, estranhamente familiar, o infamiliar dos medos, tão bem descrito por Freud ([1919] 1996) no seu ensaio O estranho, que diz sobre esse sentimento de Unheimlich, algo que deveria ficar oculto, mas veio à luz.

Esse projeto de pesquisa Oniropolítica em tempo de pandemia se inspirou no ensaio Sonhos do Terceiro Reich, da jornalista alemã de origem judaica Charlotte Beradt, que na década de 1930 recolheu testemunhos de sonhos vivenciados por centenas de pessoas (Susuki, 2020).

Diz Dunker que o sonho é uma alucinação que se afina com o campo da política, porque ela também é campo dos desejos humanos. E é a partir dessa afinidade, o fato de a política democrática se fazer com a fala, que a violência é suspensa e trocada pela palavra (Susuki, 2020).

O sonho, um dos produtos mais misteriosos do cérebro, voltou agora a interessar cientistas. Dunker cita o trabalho do neurocientista Sidarta Ribeiro (Susuki, 2020).

Sidarta Ribeiro, diretor da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e um dos fundadores do Instituto Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Machado; Fellet, 2019), cotejou as perspectivas do sonho do ponto de vista de diferentes disciplinas, tais como medicina, literatura e psicanálise, o que resultou no livro O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho, lançado pela Companhia das Letras em 2019.

O cientista afirma que o mundo moderno perdeu a intimidade com o sonho, enquanto no passado as visões oníricas apresentavam um papel social importante e guiavam os governantes da Grécia, do Egito, da Índia e da China, e que essa perda causa grande prejuízo à humanidade (Machado; Fellet, 2019).

Segundo Ribeiro, ao relegar os sonhos a um segundo plano, abrimos mão de um poderoso elemento para simular os efeitos de nossos atos e encontrar soluções para problemas. Sidarta Ribeiro está fazendo uma aproximação dos achados da neurociência contemporânea com as hipóteses de Freud do início do século XX (Machado; Fellet, 2019).

As questões sociais, os impasses históricos não se encerram apenas na esfera pública, mas se estendem ao nosso íntimo e ali se prolongam. O inconsciente não é individual. Ele abarca o social e a cultura. Inclusive nos nossos sonhos. A pandemia faz uma convocação ao traumático, que se manifesta nos sonhos.

No artigo Psicologia de grupo e a análise do ego, Freud ([1921] 1996) dizia que a experiência subjetiva implica a referência do sujeito ao outro e à linguagem, à sua determinação simbólica. Na esfera coletiva, a vida social apresenta unidades cada vez mais amplas, submissas às mesmas leis que marcam o indivíduo. Não existe separação entre psicologia individual e coletiva. Para a psicanálise, indivíduo e sociedade estão intimamente imbricados. O inconsciente está não no registro do indivíduo, mas para além dele, inclusive o campo histórico e social (Birman, 2014).

Em Função e campo da fala e da linguagem, Lacan ([1953] 1998) diz que o inconsciente é transindividual e designou a transindividualidade como uma propriedade primordial do inconsciente.

 

O luto na Covid-19

O luto é um processo de despedida, de encarar a solidão, a finitude, a transitoriedade, as incertezas. O período de luto na pandemia pode se agravar já que não é permitido à família do paciente visitar seu parente no hospital, e não há possibilidade de dizer adeus.

O enterro é feito com o caixão fechado, com um número restrito de pessoas, e os rituais necessários à elaboração do luto são quebrados. Os rituais de morte sempre existiram. O sepultamento é um ritual antigo. Quando não há esse tempo necessário de elaboração da perda, ela pode se transformar em um luto patológico.

Em seu trabalho Luto e melancolia, Freud ([1917] 1996) distingue o luto como uma reação a uma perda. É de duração limitada e superado espontaneamente. Seria uma reação à questão existencial da finitude e da morte humanas. A melancolia, diferentemente, é uma identificação com um objeto perdido inconsciente, com sintomas de autoflagelação, culpa, inibição psicomotora, ideias suicidas, ideias de ruína, tristeza, podendo chegar ao estupor melancólico.

O manejo clínico do paciente depressivo, principalmente aqueles com ideias suicidas, ou após uma tentativa frustrada de suicídio, requer uma especificidade e um cuidado redobrado, de alguém que se encontra em estado de desamparo, esvaziado de palavras e pleno de vazio e dor. Requer um espaço de acolhimento e segurança, no qual o paciente se restabeleça e comece a encontrar palavras para seu sofrimento.

O luto de pacientes suicidas é terrivelmente traumático para as famílias e se potencializado pela pandemia, torna-se ainda mais grave. Famílias que sofrem de culpa e de discriminação social, motivo de tratamento psicoterápico familiar. Hoje temos vários grupos de apoio a essas famílias enlutadas.

A necessidade de enterrar os mortos aparece muito bem retratada na tragédia grega Antígona, de Sófocles, em que a personagem prefere morrer a deixar de enterrar seus irmãos mortos, cujos corpos foram abandonados ao relento como castigo do rei. Existe uma necessidade de homenagear e ritualizar a morte, a necessidade simbólica do enterro e do luto.

Como lidar ao longo do tempo com as diferenças entre o luto normal e o luto patológico?

No caso do luto normal, a pessoa vai elaborar, ressignificar, vai tecer com palavras um conforto para si mesma e retornar ao seu estado de equilíbrio, transformando a dor em saudade, em boas lembranças, em amor.

O luto traumático é um luto que não se processa, que ultrapassa a capacidade de elaborar, de aceitar a morte, podendo se transformar numa depressão ou reagudizar quadros de transtornos mentais preexistentes.

Existem também os pequenos lutos, como o luto pelo isolamento, pela perda do contato físico, pela perda do futuro que ruiu, de um passado recente que tínhamos e não valorizávamos e de coisas que deixamos de realizar.

A vida é um conjunto de forças que lutam contra a morte. O papel do psicanalista é reforçar os laços com o desejo de viver.

A pandemia será um divisor de águas do século 21. Ela segue o seu curso natural, e suas consequências durarão por vários anos. Já estamos deixando vagarosamente a fase de pico da infecção e do isolamento social. Mas há muito a caminhar. Nós, que fazemos parte da área de saúde mental, temos ainda muito trabalho a realizar pois,a quarta onda (Wirthman, 2020), que é justamente essa dos transtornos mentais e que se iniciou nas primeiras semanas da pandemia, continua se elevando.

Para as pessoas que têm o privilégio de passar a quarentena em casa, qual seria a melhor saída para essa fase de isolamento?

A tecnologia hoje nos apresenta a possibilidade de comunicação através das webinars, dos facetimes, da imensidão de lives que invadiram nosso espaço íntimo, das aulas virtuais, do trabalho em home-office, do atendimento on-line aos nossos pacientes, de estar ao vivo e temporalmente conectados com o planeta.

Hoje o vazio de ontem já diminuiu. Vários já retomaram parcialmente suas atividades laborativas e mesmo aqueles não conectados no ciberespaço, podem desenvolver em casa atividades criativas e artísticas, tais como pintura, música, cinema, literatura, leitura, culinária. E há mais tempo para a convivência com a família.

Do medo e do vazio das primeiras semanas de pandemia, muitos hoje passaram a uma ocupação intensa e, para eles, "a falta está fazendo falta", como dizia o saudoso psicanalista Antônio Ribeiro (1994).

Sempre aprendemos algo nas situações-limite, no vazio do real. Acredito que sairemos mais fortalecidos psiquicamente. Valorizaremos mais o presente. Usufruiremos melhor de nosso tempo livre e ao ar livre. Curtiremos a família, os amigos, os laços afetivos. Até a chegada da "indesejada das gentes", como diz Manoel Bandeira no poema a seguir.

Consoada

Quando a indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, ineludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer,
(A noite com seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta.
Cada coisa em seu lugar.
φ

 

Referências

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Recebido em: 12/08/2020
Aprovado em: 18/09/2020

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