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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso vol.43 no.81 Belo Horizonte ene./jun. 2021

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICAS

 

A superdotação como suplência

 

Giftedness as a supplement

 

 

Cássio Eduardo Soares Miranda

Psicólogo. Psicanalista. Doutor em Psicologia (UFRJ). Doutor em Letras (UFMG). Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Saúde da Família da Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: cassioedu@ufpi.edu.br

 

 


RESUMO

Este ensaio discute a função da nomeação como importante recurso de estabilização da psicose, a partir de um fragmento de caso clínico no qual o sujeito elabora soluções subjetivas baseadas em uma autonomeação. Fundamentado nas proposições freudo-lacanianas sobre a psicose, parte-se de uma discussão acerca da categoria psicológica da superdotação para tentar demonstrar como a psicanálise pode se colocar como um importante instrumento de tratamento da angústia quando se coloca a escutar sujeitos nomeados como superdotados.

Palavras-chave: Superdotação, Suplência, Nomeação.


ABSTRACT

This essay discusses the function of naming as an important resource for stabilizing psychosis, based on a fragment of a clinical case in which the subject elaborates subjective solutions based on self-nomination. Based on Freudo-Lacanian propositions about psychosis, it starts from a discussion about the psychological category of giftedness to try to demonstrate how psychoanalysis can be seen as an important tool for the treatment of anxiety when listening to subjects named as gifted.

Keywords: Giftedness, Substitution, Appointment.


 

 

O preto cego Tom tem se apresentado
aqui com casa cheia.
É sem dúvida um milagre.
Parece com qualquer garoto preto de 13 anos
e é completamente idiota em tudo,
exceto no que diz respeito à música, linguagem,
imitação e talvez à memória.
Jamais estudou música
ou teve qualquer tipo de educação.
Aprendeu a tocar piano ouvindo os outros,
aprende letras e melodias de ouvido
é capaz de tocar qualquer coisa na primeira tentativa
tão bem quanto o melhor dos instrumentistas.

 

 

Introdução

A notícia acima, extraída do jornal estadunidense Fayetteville Observer, de 1862, traz a apreciação do jornalista Edward J. Hale, da Carolina do Norte, acerca de um garoto que provavelmente teria recebido a nomeação de idiot savant ou síndrome do savantismo. Essa síndrome é caracterizada pelo desenvolvimento de habilidades como a memória proeminente ou a capacidade de desenhar com perfeição de detalhes, ou ainda executar uma peça musical "de ouvido" sem nunca ter tido uma aula de piano antes, somente para se ter ideia de algumas de suas habilidades. Retratado pelo médico francês Edouard Séguin em 1866, Tom apresentava todos os elementos carateriais do que se encontra descrito em livros de psiquiatria e psicopatologia sobre o autismo ou, mais especificamente, a síndrome de Asperger. Com habilidades geniais, tais casos têm chamado a atenção da mídia, da produção cinematográfica e da ciência há alguns anos.

Entretanto, tal fato não se aplica diretamente a este ensaio, mas, de algum modo, o tangencia na medida em que coloca em questão as altas habilidades. No escopo dos problemas de educação, tradicionalmente, a clínica psicanalítica está habituada a receber casos de fracasso escolar, em suas mais variadas presentificações. No entanto, com diversos usos do significante fracasso, alguma demanda em torno do tratamento de sujeitos ditos superdotados nos colocou a trabalho. Esse desafio nos levou à investigação da presença do significante superdotação na contemporaneidade, seguindo a lógica defendida pelo psicanalista francês Jacques Lacan ([1953] 1998), de que o analista deve estar à altura da subjetividade de sua época.

Desse modo, este ensaio é uma tentativa de discutir o conceito de superdotação a partir do enfoque psicanalítico, tendo em vista que, tradicionalmente, é um tema muito presente nos estudos da psicologia, sustentados principalmente por uma concepção genética e determinista do homem.

A superdotação é compreendida pela psicologia como um fenômeno variado, composto por múltiplas dimensões e agrega diversos traços de desenvolvimento do indivíduo, incluindo aspectos cognitivos, neurológicos, psicomotores, emocionais, além de traços de personalidade. De maneira geral, são considerados superdotados determinados indivíduos que se encontram muito acima da média no quesito inteligência ou apresentam altas habilidades em diversos domínios, tais como nas dimensões intelectual, artística, esportiva, interpessoal, entre outras.

Nesse sentido, o significante superdotação encontra-se diretamente ligado ao conceito de inteligência, aspecto que leva em consideração as dimensões biológica, ambientalista e interacionista. Em função disso, as teorias psicológicas que tratam do tema, de modo geral, descrevem o superdotado com suas características e habilidades, isolando-o em uma posição que pode levá-lo à segregação, se o acesso ao discurso e à subjetividade dessas pessoas não for levado em conta.

Entretanto, o presente ensaio parte de uma perspectiva clínica cujo eixo norteador é a noção de nomeação. Em resumo, trata-se de verificar o modo como o sujeito se posiciona frente ao significante superdotado.

Dessa maneira, no que tange a esses sujeitos, pretende-se apreciar a superdotação a partir de uma perspectiva psicanalítica que leva em consideração a estreita relação entre a constituição psíquica e a constituição cognitiva.

Com Freud ([1908] 2015), a curiosidade intelectual está associada à curiosidade sexual. Assim, o conceito de inteligência proposto pela psicanálise sofre um deslocamento em relação àquele tratado pela psicologia clássica. Na psicanálise, a inteligência passa a ser vista sob o primado do sexual e do desejo. Para Freud, as interrogações que as crianças fazem a respeito das origens ("De onde vêm os bebês?"), não se propõem a resolver o enigma do nascimento. Antes, referem-se a um tempo em que a criança se vê confrontada com o desejo do Outro materno. No entanto, diante dessas e de outras interrogações, a criança vê nas respostas dos adultos sempre um ponto de insatisfação, o que demarca uma impossibilidade de saber sobre o sexo.

Todavia, diz Freud (1908, p. 222):

[...] essas hesitações e dúvidas tornam-se [...] o protótipo de todo trabalho intelectual posterior aplicado à solução de problemas, tendo esse primeiro fracasso um efeito cerceante sobre o futuro da criança.

Sendo assim, pode-se dizer que existe uma articulação entre o desejo de saber e a inteligência na qual tal premissa se sustenta.

Desse modo, sob a orientação da ética do desejo, relata-se a seguir um caso de psicose em que o significante superdotação subsumido pelo sujeito, através de uma autonomeação, aparece como um modo de suplência ao significante do Nome-do-Pai.

 

Um caso, sua condução e os efeitos de uma nomeação

Uma "crise esquizofrênica" faz com que Paula procure tratamento psicanalítico após passar por diversos psiquiatras. Após sua mudança de cidade para acompanhar o marido, começou a ter "visões horríveis", principalmente ligadas à morte: via facas dependuradas na parede e repetidas vozes de comando, saídas também da parede, que diziam para matar o marido: "Mata ele! Mata ele!". Começava aí uma "luta interna" muito grande: ela orava pedindo a Deus que a libertasse de tal situação, em função de não querer fazer isso por amar o marido. No entanto, tais orações tinham um efeito momentâneo e as paredes começavam a se contrair e as facas começavam a aparecer o tempo todo, seguidas das vozes "horríveis" que ordenavam o assassinato. Tomada por intensa angústia, chorava e gritava, pois não conseguia se ver livre de "tão horrível ideia".

Vendo-se obrigada pelo marido a trancar os cursos que ora fazia em função do quadro que apresentava, trazia em sua história de vida diversos relatos de sucesso escolar, como o fato de sempre ser a primeira da turma, o que a autoriza a se nomear superdotada. Dizia que desde a mais tenra idade apresentava-se muito talentosa, com amplo desenvolvimento motor e da linguagem; que gostava muito de dançar, se achava muito "engraçadinha". O que ela não conseguia entender é como poderia "trancar" seus cursos, pois seria um desperdício muito grande exatamente por ser superdotada.

O analista a interroga:

- O que a faz pensar que você é superdotada?

- O fato de eu ser muito inteligente, ter muitas habilidades no campo da linguagem, principalmente no campo da abstração - responde a jovem.

O analista a interroga novamente:

- Mas você passou por algum tipo de avaliação?

Ela diz:

- E precisa? Eu sei que sou superdotada. Eu sou superdotada!

É na possibilidade de elaboração de um significante fundamentado na ideia de uma superintelectualidade que Paula se esforça para se estabilizar, a partir de uma certeza delirante. O analista se torna uma testemunha de seu esforço em torno de sua certeza, que aparece como um ponto de ancoragem para Paula e desponta como uma verdade completa, podemos dizer, uma 'verdade toda', distante de qualquer tipo de relativização, principalmente por ser esse tipo de construção que permite que ela não enlouqueça. Trata-se, desse modo, de um hiperinvestimento que 'empresta' consistência ao sujeito.

Na continuidade de seus relatos, Paula destaca que gosta muito de falar, que fala o tempo todo, que é muito tagarela, e pensa que talvez isso seja em função de sua habilidade verbal.

- E isso te faz uma superdotada?

Com sua resposta afirmativa, esclarece que um dos elementos característicos da superdotação é um elevado desenvolvimento no campo da linguagem, não só em função da quantidade da fala, mas principalmente da qualidade, da capacidade em articular ideias e transmiti-las aos outros, no seu caso, através das pregações que realizava de tempos em tempos na igreja de seu marido e na apresentação de trabalhos nas duas faculdades que cursava.

Diferentemente de casos de neurose, em que a nomeação advinda do campo do Outro assume uma função de localização do sujeito em uma posição, o que é importante destacar aqui é a função da autonomeação realizada por Paula. Essa operação, ao construir uma identidade para ela, serve de um ponto de amarração, ainda que precário, na realidade.

No caso Paula, não se trata de um enunciado vindo do campo do Outro, mas de uma posição que o sujeito assume diante de um 'sem-sentido' que a acomete. Assumir tal construção não necessariamente garante "a cura" de Paula, mas, antes, lhe garante um lugar no discurso social, numa tentativa de fazer laço.

A partir dos elementos colhidos no discurso de Paula, verifica-se uma tentativa em construir uma nova realidade diante do insuportável que vem do campo do Outro, ou melhor, o sintoma delirante construído em torno do significante superdotada seria uma resposta inédita do sujeito diante dos impasses que retornam do real.

 

Breves considerações teóricas sobre o caso

Ora, Freud ([1924] 1969, p .123) sustenta que a criação de uma nova realidade na psicose é um importante passo para a restauração da realidade perdida e que

Com referência à gênese dos delírios, inúmeras análises nos ensinaram que o delírio se encontra aplicado como um remendo no lugar em que originalmente uma fenda apareceu na relação do ego com o mundo externo.

Todavia, esse autor destaca que um modo de defesa específico na psicose se instaura sobre a realidade exterior, mas na neurose a defesa incide sobre as ameaças internas, ou seja, sobre as ameaças do Isso. Enquanto o neurótico recalca as exigências pulsionais do Isso, o psicótico recusa a realidade. Isso posto, um trabalho inventivo do sujeito através do uso da linguagem funciona como um modo de barrar o que retorna do real.

Por outro lado, em uma das passagens de seu seminário sobre as psicoses, Jacques Lacan ([1955-1956] 1985) notou que no desencadeamento há algo da ordem de um componente emocional e uma tensão vital nas relações externas e que o delírio deve ser concebido como um fenômeno elementar, no sentido de que caracteriza a estrutura psicótica.

Ao estudar o caso Schreber, Lacan ([1955-1956] 1985) dá ênfase ao que Freud falava do delírio como um modo de reatar a relação com o mundo. Ele destaca o "trabalho do delírio" no qual este seria uma metáfora delirante capaz de restabelecer certa relação com o mundo e que representa, dessa forma, uma tentativa de cura. Assim, podemos dizer que o delírio é visto como uma metáfora que faz suplência à metáfora paterna, que não se instalou. A autonomeação de Paula, por esse viés, é uma construção delirante que garante a ela um mínimo de inscrição no campo do Outro.

Conforme esclarece Lacan ([1955-1956] 1985), o fenômeno psicótico relaciona-se ao ineditismo de uma operação de sentido ou significação, como algo novo que aparece e que pode ameaçar o sujeito, em função do desencadeamento da psicose propriamente dita, conforme esse autor apresenta:

O que é o fenômeno psicótico? É a emergência na realidade de uma significação enorme que não se parece com nada - e isso, na medida em que não se pode ligá-la a nada, já que ela jamais entrou no sistema de simbolização - mas que pode, em certas condições, ameaçar todo o edifício (Lacan, [1955-1956] 1985, p. 102).

Assim, um fenômeno relacionado à significação pode vir como uma ameaça, mas, ao mesmo tempo, uma operação de linguagem pode servir como uma solução, uma vez que é uma "estrutura" significante que serve de sustentação para o sujeito, funcionando como uma suplência ao que faltou.

Se a definição mais comum da palavra "suplência" se refere à substituição de uma falta, o termo é empregado, em psicanálise, fazendo certa junção com aquilo que é de mais corriqueiro na língua, entretanto apontando para uma falha na sustentação de uma estrutura.

Assim, em psicanálise, podemos pensar na suplência enquanto uma função significante que vem suprir o que faltou na estrutura. Ao que nos parece, Freud não se vale do termo "suplência". Talvez sua preocupação seja apontar os modos de defesa que o sujeito encontra para enfrentar a castração na neurose e na perversão e, na falta dessa operação, na psicose. É o que ele aponta, no texto As neuropsicoses de defesa:

Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. (Freud, [1894] 1996, p. 78)

Nesse texto encontramos em sua elaboração uma importante proposição teórica, que é a teoria da defesa. Ali Freud introduz o termo para se referir a uma operação que se dá contra uma "representação incompatível" por se opor [porque se opõe] ao eu do sujeito, e a "fuga para a psicose" é o resultado de tal operação "poderosa". Parece que existe aí um modo aproximado do que seria uma suplência, pelo menos no sentido de "soluções subjetivas", como normalmente se encontra em Lacan no seu ensino de 1974 a 1975.

Se Freud não utilizou a palavra "suplência", Lacan a introduz no seminário RSI (1974-1975). Mesmo que Freud não a tenha utilizado, podemos encontrar em sua obra elementos que nos autorizam a pensar sobre esse tema, conforme dissemos acima. Já em Lacan, a suplência pode ser pensada como qualquer coisa que assuma uma função de amarração dos três registros psíquicos, a saber: o real, o simbólico e o imaginário.

Laia (1998) nos adverte de que, ao introduzir a noção de suplência no seminário RSI, Lacan o faz para aproximar o conceito ao campo das soluções subjetivas. Trata-se do enlaçamento dos registros imaginário, simbólico e real, e seria preciso uma ação suplementar, de um toro a mais, "[...] aquele cuja consistência seria de referir-se à função dita do Pai" (Lacan, 1974-1975). A partir dessa ideia, constatamos que a função do Pai e a suplência estão intimamente associadas, na medida em que apontam para a invenção de um quarto termo que dá estabilidade e operacionaliza a relação com a realidade, a saber, o sinthoma.1

Voltando ao Lacan dos primeiros seminários, encontramos a noção de suplência. No Seminário 4: As relações de objeto, ele destaca que o sintoma fóbico de Hans possui essa função. Nesse seminário, encontramos o ideal de eficácia paterna que leva Lacan a propor a hipótese de "inoperância" ou "carência" do pai e a considerar a fobia como um elemento que faz o que ele chama a "suplência" do pai.

É nesse sentido que ele defende:

O objeto fóbico vem desempenhar o papel que, em razão de alguma carência, em razão de uma carência real, no caso do pequeno Hans não é preenchido pelo personagem do pai. (Lacan, [1956-1957] 1995, p. 411)

Desse modo, o objeto fóbico seria, segundo Lacan, o componente ao redor do qual contornarão

[...] todos os tipos de significações que formarão, afinal, 'um elemento de suplência que faltou no desenvolvimento do sujeito', isto é, aos desenvolvimentos que lhe foram fornecidos pela dialética do meio ambiente onde ele está imerso. (Lacan, [1956-1957] 1995, p. 411)

Dessa maneira, a suplência, de algum modo, encontra-se integrada ao pai, em uma forma de compensação à carência dessa função. Em sua primeira exposição sobre o termo, Lacan o associa à ideia de um pai incapaz de agenciar a castração e, para tal, existe uma operação que ocupa o lugar de alguma coisa que não se inscreveu como deveria ter se inscrito.

Assim, desse momento da elaboração lacaniana da noção de suplência, podemos extrair o seguinte: uma vez que há um significante necessário à estrutura, quando tal significante está ausente, ou encontra-se de maneira precária ou insuficiente, outro significante pode advir em seu lugar.

Quando nos referimos ao caso Hans, temos o cavalo, objeto fóbico em posição de significante. No caso Paula, a superdotação em posição de significante que exerce uma função de suplência, poderia ser melhor lida pelo último Lacan, que indica o quarto nó para segurar o que estava desamarrado, na estrutura RSI.

Se temos uma suplência na neurose, também a encontramos na psicose, porém a partir de outra lógica de funcionamento. Na neurose, por seu turno, a suplência vem suprir a falta encontrada na inexistência da relação sexual, enquanto na psicose sua função é recobrir a inexistência radical de um significante primordial, que é o significante do Nome-do-Pai.

Ora, se há uma suplência em todas as estruturas clínicas, podemos pensar que ela é da ordem da civilização, no sentido de que ela se encontra de modo generalizado na humanidade. Talvez possamos pensar também no semblante como uma forma de suplência e, no caso específico de nossa investigação, se a superdotação não seria um semblante que viria para velar o nada instaurado pela forclusão do Nome-do-Pai, em alguns casos de psicose, ou pelo desamparo encontrado diante da não existência da relação sexual, nos casos de neurose.

Desse modo, falar de suplência generalizada é, em nosso entender, sustentar que sempre existe uma suplência, uma vez que a falta e a falha nas estruturas podem sempre estar presentes. A nossa interrogação é se o significante "superdotação" aparece como uma suplência a esses sujeitos que são alienados em sua subjetividade e colocados como objeto de gozo do Outro encarnado na escola, na família e/ou na cultura capitalista.

Se assim o for, poderíamos pensar que o significante "superdotado" pode promover uma saída para alguns sujeitos ao enfrentar a inexistência da relação sexual. No fragmento do caso Paula, a superdotação faz com que ela se arrume na vida diante da forclusão do Nome-do-Pai, inventando um significante que possui ampla aceitação no campo do Outro social.

Sabemos que o grande ordenador da clínica estrutural em psicanálise é a metáfora paterna, cujo conceito se sustenta no significante Nome-do-Pai. No Seminário 5: As formações do inconsciente, por exemplo, Lacan diz que o Nome-do-Pai é o suporte da lei no nível significante, e o pai simbólico é aquele que a promulga.

Para ele

O essencial é que o sujeito, seja por que lado for, tenha adquirido a dimensão do Nome-do-Pai. (Lacan, [1957-1958] 1999, p. 162)

A primeira clínica de Lacan considera sua presença condição para os desenlaces neuróticos e perversos e sua forclusão para o desenlace psicótico. No segundo momento da clínica de Lacan, há uma pluralização dos Nomes-do-Pai; a metáfora paterna não é mais o único ordenador.

Nesse mesmo seminário, Lacan ([1957-1958] 1999, p. 162) sustenta que é preciso ter o Nome-do-Pai, mas que isso não basta:

[...] é também preciso que saibamos servir-nos dele. É disso que o destino e o resultado de toda a história podem depender muito.

Assim, a nosso ver, o "servir-se do pai" é o que podemos chamar também de suplência, ou seja, o saber-fazer com o sintoma e com aquilo que vem do pai e que dará ao sujeito condições de se apropriar de outros elementos que podem servir de amarração para sua estrutura, seja neurótica, seja psicótica. O que vai diferir é a lógica da amarração dos elos RSI.

Conforme adiantado acima, poderíamos pensar com Ricardo Ponte (1994) em uma suplência generalizada? O autor se refere a uma forma de suprir uma falta, presente em todas as estruturas porque a falta na estrutura é principal.

Desse modo, podemos pensar que para alguns sujeitos a amarração entre o real, o simbólico e o imaginário aconteceu mesmo sem a presença do Nome-do-Pai. Para outros, como na neurose, tal amarração se fez possível somente e tão somente pela presença do Nome-do-Pai. De um lado teríamos uma psicose em que uma "amarração" aconteceria sem o Nome-do-Pai, pela presença de um significante que faria a função de um significante ausente, e aí teríamos um psicótico sem psicose, ou seja, um psicótico no qual os fenômenos elementares não surgiram. É uma psicose não desencadeada. A nossa ideia passa sempre pela noção de que, no caso da psicose, o sujeito construiria uma saída inventiva.

A função do analista nesses casos, segundo Laurent (2006, p. 20), é estar ali

[...] para sustentar que é possível desenvolver, acompanhar, manter essa experiência de tradução. É o que Lacan resume em um ponto: trata-se de ajudar o sujeito, com essa nomeação, a 'fazer-se um nome'.

A nossa interrogação, assim, passa pela noção de que se a superdotação funcionaria como uma suplência para crianças e adolescentes diante da inexistência da relação sexual e do inapreensível do Real. Ou seja: "fazer-se um nome" superdotado aparece como uma assinatura e uma tentativa de "se dar" um nome que não foi garantido pelo pai, em alguns casos de psicose. Podemos também inferir que a superdotação pode servir como uma alienação neurótica ao discurso do Outro. Nos casos em que a holófrase do par de significantes é identificada, essa nomeação serviria como um estabilizador do significante que vem como "máquina infernal" a marcar o sujeito, no caso da psicose?

 

Considerações finais

O modo de funcionamento do sujeito é orientado pela associação entre o Real, o Simbólico e o Imaginário, enlaçados pelo quarto nó, que é aquele que nomeia; ao nomear, a suplência acontece. São várias as possibilidades de suplência para enlaçar os nós, sendo sempre um modo particular de enlaçamento.

Como se tentou demonstrar, a suplência responde à falta de significante, à falha do Outro. Portanto, ela é aquilo que repara ou reconstrói, permitindo ao sujeito um certo tipo de funcionamento amparado no sinthoma. Nesse dispositivo, o Nome-do-Pai é o que nomeia e promove a amarração.

No que diz respeito à psicose e ao caso aqui brevemente relatado, sinthoma e suplência podem ser vistos como equivalentes e o significante Nome-do-Pai passa a ser pluralizado, ou seja, sua função passa a ser nomeadora no que concerne à causa de cada sujeito, por isso, não remete apenas a um significante - O Nome-do-Pai - mas a vários, particulares, na experiência de cada sujeito.

É desse modo que Paula assume o significante superdotação como uma tentativa de restabelecer aquilo que foi rompido e ser superdotada constitui-se como um sinthoma e uma nomeação estabilizadora. É talvez orientado pela invenção que o psicótico faz com que o psicanalista possa, de fato, tornar-se um eficiente secretário do alienado.φ

 

Referências

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Recebido em: 05/08/2020
Aprovado em: 18/09/2020

 

 

1 Lacan estabelece uma diferença entre sintoma e sinthoma. O sintoma pode ser rapidamente definido com uma formação do inconsciente, é uma forma de satisfação substituta. Por outro lado, sinthoma é uma elaboração realizada por Lacan ao final de seu ensino referindo-se ao modo como o sujeito fará uma amarração entre os registros do Real, Simbólico e Imaginário, sob a forma de um nó. Trata-se daquilo que, ao final de uma análise, alcançou seu limite, portanto, é o "incurável de cada um". Assim, a grafia sinthoma é a recuperação de uma forma antiga de escrever sintoma em francês. De acordo com o tradutor do Seminário 23 (Laia, 2007), sinthome é a grafia antiga para a palavra moderna symptôme, datada de 1503.

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