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Revista Brasileira de Psicodrama

versión On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.18 no.2 São Paulo  2010

 

SEÇÃO TEMÁTICA: Adolescência, juventude: conserva e criação

Thematic Session: Adolescence, Youth: Conserve and Creation

 

Entre instituições e encontros: a juventude dissolvendo a violência

 

Between institutions and encounters: youth putting an end to violence

 

 

Oriana H. Hadler1

Universidade Católica de Pelotas, RS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende refletir sobre as diferentes facetas da violência e como estas se manifestam na sociedade contemporânea, especialmente no que tange às políticas públicas e práticas institucionais voltadas para jovens. Partindo da crença moreniana de que todo sujeito encontra-se em constante desenvolvimento e transformação, este trabalho traz dois encontros sociodramáticos com adolescentes de uma instituição de apoio socioeducacional, apresentando ambas experiências como um convite a novos olhares na compreensão de trabalhos em instituições, onde o adolescente faz parte de uma cultura na qual a interação é um vetor constante. A partir das reflexões apresentadas neste artigo, é possível observar o quanto o trabalho baseado na abordagem psicodramática em instituições para jovens pode promover a transformação nos modos de ser adolescente, bem como instigar o potencial criador do sujeito jovem contemporâneo.

Palavras chave: Violência, conserva cultural, práticas institucionais, adolescentes, potencial criador.


ABSTRACT

This article intends to reflect on the different facets of violence and the way violence manifests itself in our contemporary society, especially with regards to public policies and institutional practices directed at youth. Anchored in the Morenian belief that every individual is in constant development and transformation, this paper describes two sociodramatic encounters of youths from an institution offering socio-educational support, seeing both these experiences as a call to change our view and understanding of institutional work, adolescents being part of a culture where interaction is a constant vector. Based on these reflections it becomes notable how psychodramatic work in such institutions can promote changes in how to be an adolescent, and also instigate the creative potential of contemporary youths.

Keywords: Violence, cultural conserve, institutional practices, adolescents, creative potential.


 

 

A violência no caleidoscópio

Abrem-se as cortinas do palco social contemporâneo e imediatamente podemos nos perguntar: que atos ocorrerão, em que cenas mergulharemos, qual protagonista nos marcará? A partir de questionamentos sobre como ocorre a construção do sujeito hoje, vêm à tona pensamentos sobre um assunto que, posso arriscar dizer, é tema protagônico na sociedade atual: a problemática da violência. A fim de adotar uma abordagem que visa desnaturalizar conceitos reducionistas, busco transpor os tensionamentos aqui apresentados para um patamar mais complexo; ou seja, esclareço que o lugar no qual me coloco perante a noção de violência é aquele que a vê sob um ponto de vista social, cultural e político, para além de uma nosologia individualista, entrando no campo de intricadas redes formadas por diversos fatores, que se desdobram e são construídos por/ no/em todo o corpo social. Assim, a partir desse (des)caminho, tomo a violência como práticas instauradoras e "microssociais" que se reproduzem nos discursos diários, que violam e objetificam os indivíduos, atravessando os modos de ser sujeito hoje.

Ao visualizar esse fenômeno em nosso contexto social, concordo com Gauer (2005), quando revela a situação paradoxal na qual o cenário brasileiro se encontra: ao mesmo tempo que existe uma maior sensibilização da população, ocorre também um aumento da banalização da violência. Referente a isso, Echenique (2007, p.14) mostra o quanto "vivemos sob o mito da não-violência", assumindo a violência somente quando está relacionada às questões que rompem diretamente com os mecanismos de controle e com a estrutura social. Quando se perde o governo sobre os indivíduos e as configurações de valores privados (o respeito, a cidadania, a educação, os valores morais de cada indivíduo etc.) sofrem rupturas em seus eixos, uma sensibilização em relação aos limites que a sociedade suporta é posta em ação. Entretanto, a preservação da vida em seu sentido ético e moral é desfeita quando o cenário é ampliado para horizontes universais.

Tal fato, por exemplo, pode ser evidenciado no momento em que, ao fazermos uma retrospectiva do ano de 2008, a primeira cena que vem à mente em pesquisas públicas é a morte de Isabella Nardoni2, quando nesse mesmo ano o IBGE (2008) indicava que o país se encontrava em terceiro lugar no ranking de mortalidade infantil, que a cada mil crianças nascidas 23 morriam antes de completar 1 ano de idade, devido à fome ou em decorrência da falta de cuidados básicos. Vale ressaltar que trago essa informação não com o intuito de minimizar o sofrimento ocorrido com aquele trágico episódio, mas busco dar visibilidade ao quanto o quadro brasileiro (e isso também pode ser observado em várias outras nações mundo afora) pinta sua violência a partir dos vínculos estabelecidos com a política, com o prestígio social, com os ditames do poder e da cultura hegemônica. Assim, parece evidente que, a partir dos focos e posturas que se tomam, a violência adquire formas caleidoscópicas, revelando diferentes identidades, concepções, cores, jeitos e facetas.

Isso ilustra o quanto estamos em uma arena de mudanças no imaginário social do qual nos constituímos sujeitos, presenciando uma fragmentação da ordem social que nos abarca e, consequentemente, da própria noção de sujeito. Nota-se que, ao tomar esse cenário de mudanças sociais, não o faço como sinônimo de crise. Julgo importante salientar essa diferença, pois, atualmente, é comum uma fala sobre o viver sob crise, na qual se evoca um sentimento nostálgico que reverencia tempos passados, como se ‘antigamente’ (independente de dados cronológicos) fosse a época na qual a violência era inexistente e o ‘agora’ se torna um tempo em que existe um sentimento de busca por valores morais que se perderam; em outras palavras, como Chauí (2006, s/p.) explicita tão claramente:

"Fala-se em crise dos valores e na necessidade de um retorno à ética, como se esta estivesse sempre pronta e disponível em algum lugar e como se nós a perdêssemos periodicamente, devendo, periodicamente, reencontrá-la. É como se a ética fosse uma coisa que se ganha, se guarda, se perde e se acha e não a ação intersubjetiva consciente e livre que se faz à medida que agimos e que existe somente por nossas ações e nelas."

Dessa forma, sob o referencial de conflito iminente e ‘tragicabilidade’ global como espírito da sociedade contemporânea, para cada novo momento social, novas práticas e ações são criadas com o intuito de ‘dar conta’ desse processo de instauração de crise. No que diz respeito ao controle da violência, são instituídas novas políticas públicas sobre as diferentes faces que ela pode adquirir, sendo gerados novos dispositivos disciplinares bem como a formação de novas conservas dicotômicas do que se entende por certo e errado, normal e anormal, violento e pacífico. São ensaios de domínio social que acabam construindo diferentes graus e segmentos do que é crime e de quem é o criminoso, novas especificidades de violência que se configuram em um mapeamento cada vez mais fragmentado do sujeito, revelando novas morais e novos pressupostos éticos sobre determinada população.

 

A violência institucionalizada nas políticas para jovens

Em um processo integrado e contínuo, práticas vão sendo naturalizadas, normas institucionalizadas, e novas tecnologias de governo entram em ação, as quais, por sua vez, darão visibilidade a novas concepções de (as)sujeitos; em outras palavras, da discursividade de um problema à sua legitimação, novas políticas são criadas e um processo de autorregulamentação é iniciado:

"A violência manifestada como delinquência – ou seja, violência enquanto ato degradado – possibilita o controle, assim como a compartimentalização generalizada da esfera social, [...] ela funciona como um "observatório político", do qual se servem policiais, estatísticos, psiquiatras, psicólogos, sociólogos e outros especialistas. Esse aspecto possibilita perceber que a violência tem servido historicamente como laboratório para o conhecimento moderno". (Gauer: 2005, pp.18-19).

Com essa lógica, entramos no campo das políticas públicas dirigidas para a infância e a adolescência. Ao delinear a história da criação das primeiras políticas para jovens – sendo essa fase compreendida como o corte etário da infância até a adolescência, ou seja, o período até 17 anos –, verifica-se que os artifícios de intervenção que visam essa população ainda encontram seus referenciais somente a partir de programas isolados, não levando em consideração uma série de multiplicidades que envolvem o problema (Castro e Abramovay: 2002).

As políticas públicas voltadas a crianças e adolescentes no país tiveram como preocupação inicial a higienização social daqueles que desordenavam as áreas urbanas. Sob esse discurso, promoveu-se a criação do Juizado de Menores em 1923 e, logo imediatamente, em 1927, surgiu o primeiro Código de Menores. Referente a esses movimentos, Bulcão (2002) destaca que a implementação de órgãos específicos para tratar do jovem desamparado, como o Departamento Nacional da Criança – criado em 1940 com o intuito de ordenar atividades concernentes ao cuidado à maternidade, à infância e à adolescência – e o Serviço de Assistência a Menores – criado em 1941 para dirigir todo o serviço de auxílio e proteção aos jovens desvalidos e delinquentes – refletem a manutenção da norma e disciplina com o objetivo de tornar esses menores menos ameaçadores para a sociedade elitista, gerando, portanto, a noção de saúde social.

Contudo, a partir da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, novos paradigmas começam a incorporar as legislações, afirmando o valor das crianças e dos adolescentes como portadores da continuidade do seu povo, da sua família e da espécie humana, bem como o reconhecimento de sua vulnerabilidade, tornando-os merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas para o atendimento, promoção e a defesa de seus direitos. Uma implicação dessas articulações é a criação do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente -, que vai, então, delinear normas que dirigem a proteção da infância e adolescência visando ao desenvolvimento integral dos jovens, estipulando os direitos concernentes à convivência familiar e comunitária, bem como os processos de lazer e socialização que fazem parte dos cuidados adequados de toda criança (Brasil: 1990).

No entanto, embora o ECA promova uma mudança nos enfoques pragmáticos e avanços nas práticas das instituições que atendem crianças e adolescentes, Cruz, Hillesheim e Guareschi (2005) propõem que ele traça uma normatização da infância, a qual passa a predispor de uma essência fixa e imutável a ser seguida, caracterizando a população infantojuvenil em um patamar que promove políticas de atendimento e medidas de proteção que ainda acabam produzindo rotulações. Nesse sentido, as políticas públicas voltadas para a infância e a adolescência constituíram-se através de novas práticas dentro das quais a preocupação com o sujeito jovem passa a estabelecer-se sob as diligências de problema, incorporando o sentido do risco, do diferente que precisa ser normalizado por ações médicas, morais e educacionais.

Dados referentes à realidade institucional apresentados pelo Ipea (2004) mostram que os números de jovens que fazem uso de medidas assistencialistas e do apoio de instituições socioeducacionais cresceram de forma alarmante. Em 2003, por exemplo, existiam 20 mil jovens em abrigos, atualmente estima-se que quase 80 mil crianças e adolescentes passam por instituições, sendo importante ressaltar que o tempo de duração da institucionalização vem igualmente aumentando, variando atualmente por um período em torno de 10 anos. Quanto à vivência nas instituições, é possível afirmar que esse período interfere diretamente no crescimento, na sociabilidade e na manutenção de vínculos dos jovens (Carvalho: 2002 e Dell´Aglio: 2000).

Assim, podemos compreender que a escalada gigantesca dos últimos anos nos programas públicos demonstra, ao serem instituídos novos direitos pretensamente universais e novas crenças estatais (desde ações governamentais até iniciativas não-governamentais), uma naturalização sobre o discurso de uma juventude como problema social associada com a violência, em especial acionando uma lógica que tem sido chamada de criminalização de jovens de grupos menos favorecidos (o viés classe social entra em cena, por exemplo).

Considerando a importância de determinados projetos e políticas de inclusão em nossa sociedade, o que busco debater aqui, unindo-me a Gonçalves (2007, p.105), é se "estaríamos, de fato por meio delas [políticas de inclusão], combatendo a violência ou estaríamos produzindo uma nova forma de violência", novos estigmas? Em outras palavras, ao adotar práticas fragmentadas que não trabalham com a visão do ser humano como um sujeito ético3 e dotado de um potencial criador, estamos sendo mantenedores de antigos paradigmas cristalizados: sob o refrão da inclusão social, (re)criando uma contínua trama de subjetivação. Aponto esse viés exatamente para ilustrar a questão da violência como malhas em redes, que se desdobram na produção de sujeito jovem contemporâneo. Referente a isso, pode-se observar que nos espaços de instituições de apoio a jovens são utilizadas estratégias controladoras e técnicas de reabilitação que pregam a naturalização das diferenças, sob um discurso de tolerância ao próximo, de inclusão social, de preservação e promoção de vida. Entra-se, assim, no campo de uma racionalidade que intervém diretamente nos modos de ser e viver dos sujeitos.

 

A ação espontânea e criativa dissolven do o instituído

Compreendendo o sujeito como um ser que se produz em relação, atravessado por uma multiplicidade de contextos (social, histórico, político, cultural, psicológico, espiritual etc.), trago o psicodrama como forma de quebrar a visão patologizante imbricada em muitas práticas institucionais. A teoria da socionomia de Moreno (1959) articula-se com a proposta de uma revolução criadora, isto é, de recuperar a espontaneidade e criatividade fluídas no sujeito e que se mortificam em um contexto normatizador: ao submeter crianças e adolescentes a tecnologias que visam à adequação e à docilização, determinadas práticas produzem a objetificação dos jovens, além de atuarem para que estes se tornem sujeitos passíveis de governo e de autovigilância.

Apesar de não existirem respostas prontas, a concepção moreniana propõe construir um palco de rupturas e desmascaramento de conservas e de modelos enrijecidos, dando margem à possibilidade de problematizar o que se tem por verdade, além de questionar e possibilitar um lugar crítico perante a própria condição humana. Mais do que ação, a prática psicodramática é um resgate do homem cósmico, em conexão com seu estado espontâneo e com seu potencial criador. Em outras palavras, à luz dessa abordagem observa-se uma heterogeneidade de componentes que engendram modos de produção de subjetividade, rompendo com noções dicotômicas como fora/dentro, externo/interno, refletindo em um olhar sobre as práticas – compreendendo-as como um atravessamento de multiplicidades em um processo de cocriação.

A fim de guiar o leitor perante esses tensionamentos agenciados, apresento a seguir reflexões sobre percepções e vivências ocorridas em uma instituição de apoio socioeducacional no Rio Grande do Sul4, em cuja história perpassa todas as marcas discursivas agitadas neste texto. A instituição foi inaugurada em meados de 1940 com a finalidade de amparar e recuperar os menores abandonados e desajustados do sexo masculino que não tinham recursos e eram considerados desvalidos. Esses ‘menores’ – meninos entre 8 e 18 anos – ficavam na instituição em regime de internato, recebendo instrução moral e profissional. Tal regime foi mantido até início dos anos de 1980, quando o estabelecimento abriu suas portas para crianças e adolescentes de ambos os sexos, provindos de famílias carentes.

Aqui podemos abrir um parêntese para discutir brevemente a terminologia ‘menor’, apontando que essa envolve um entendimento para além da menoridade relacionada a questões penais, sendo vinculada à problemática de ameaça do pobre ao poder público, uma vez que crianças abandonadas transcorriam pelas ruas desde que mudanças políticas e econômicas ocorreram no país (Bulcão: 2002). Consequentemente, foram criadas instituições regulamentadoras dessa parcela da população, tecnologias e estruturas para tratar e normatizar o desviante, as casas de assistência e amparo (como a instituição acima mencionada), que aí surgem então ligadas a medidas higienistas, visando ‘proteger’ e tirar os menores da rua. Dessa maneira, vai tomando forma a noção de periculosidade em que, conforme Foucault (1996, p.85), "o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos".

Referente a isso, vale ressaltar que desde sua criação a administração do local manteve-se sob a responsabilidade da Mitra Diocesana da cidade e, apesar de nos últimos anos ter sido renomeada, a utilização do termo ‘menor’ se mantém em sua nomenclatura. Atualmente, atende cerca de 150 crianças e adolescentes, entre 7 e 17 anos, e oferece oficinas profissionalizantes. Ao chegar à instituição e observar as oficinas, descobri que o meu desejo não era perpetuar o continuum de um esquema disciplinar ou mesmo ditar que profissões e perspectivas de vida para o futuro deveriam ser colocadas para os jovens que lá estavam inseridos. Compreendendo que estamos todos imbricados em instituições – família, escola, amigos, tipo de música, comidas que comemos, filmes que escolhemos – todos os pequenos movimentos dentro de nosso cotidiano, entre escolhas preestabelecidas e caminhadas dispersas, vão construindo o ser-aí que somos. Assim sendo, se uma oficina fosse iniciada tendo como objetivo definir a priori, a partir daquilo que são meus princípios morais (e não os daqueles jovens), quais seriam as profissões certas designadas (ou as ‘mais indicadas’) para eles, eu estaria apenas sustentando a mesma lógica vigente instituída: a proliferação de atividades normalizadoras e sancionadoras.

Desse modo, submeti-me ao risco de não perpetuar a tessitura da violência institucional, buscando propor uma reflexão crítica das instituições, não como um sinônimo de estabelecimento, mas como qualquer lugar onde as relações de poder estão instituídas ou como um conjunto de regras que normatizam as atividades humanas, modos cristalizados que nos produzem sujeitos. Assim foi criada a oficina de "Teatro espontâneo e conhecimento de si". Explico também que, ao me referir a esse "conhecimento de si", não faço jus a uma visão que pressupõe uma essência do sujeito (algo pronto e estático a ser conhecido), pelo contrário, faço uso de tal expressão a fim de remeter a uma trilha nos percursos de como ocorre a construção de si, o processo de produção que atravessa nossos modos de ser, ou seja, seria propor adotar a filosofia moreniana de relacionar-se com o outro a partir do viés EU-TU, que se refere ao processo de olhar para o outro em sua frente procurando sempre respeitar e acreditar na sua potencialidade. Dito de outra forma, isto significa escolher olhar para a saúde do cliente e não a sua patologia. Nas célebres palavras de Moreno (1993, p.72), "a denominação de "patológico" não tem para nós um sentido absoluto. Do ponto de vista do universo não existe "patologia", mas apenas do ponto de vista da ciência humana".

Tal oficina, formada por adolescentes entre 15 e 17 anos de ambos os sexos, e ocorria semanalmente em encontros de uma hora e meia durante três meses, teve como objetivo inicial a constituição de um espaço relacional coletivo de expressão e reflexão, onde era possibilitado trabalhar conteúdos emergentes bem como problematizar a trajetória de vida dos jovens que ali frequentavam. Ressalto aqui a importância do grupo no que tange ao crescimento pessoal e social de cada adolescente, uma vez que a esfera grupal dá visibilidade ao nosso vir-a-ser, provocando mudanças e ampliando nossas possibilidades de experienciação (Echenique, 2008); é no grupo que cada membro pode atuar como agente terapêutico do outro, sendo esse o princípio da interação terapêutica (Moreno: 1959). Moreno (p.73) ainda revela que em um grupo é produzido o Encontro; não simplesmente a união ou o estar junto, mas seria o momento no qual "as pessoas encontram-se com todas as suas forças e fraquezas, cheias de espontaneidade e criatividade. (...). Encontro significa que duas pessoas não apenas se reúnem, mas que elas se vivenciam, se compreendem cada uma com todo o seu ser".

 

A "dobra do tempo " e o conhecimento posto à prova

Durante o desenrolar dos encontros, o grupo gradualmente entrou em um processo de desdobramento, questionando as práticas instauradoras de verdades naturalizadas das quais fazemos parte, rompendo com a violência cristalizada que existiam em sua rede e modos de ser. Referente a esses movimentos, dois encontros em particular me vêm à mente como exemplo marcante de tal processo. O primeiro ocorreu em um dia no qual os adolescentes participaram de um jogo dramático em que todos se colocaram lado a lado, voltados com o olhar para o horizonte, preparando-se para uma caminhada na qual cada indivíduo iniciaria sua marcha tendo consciência de que, a cada passo dado, anos seriam transcorridos e, a cada ano decorrido, novos acontecimentos atravessariam suas vidas. No total, passaram- se 8 anos, 8 passos que representaram, no como-se5, uma vida de desafios e rotinas, de muito arroz e feijão, de famílias e amigos, viagens e saudades. Ao chegar ao final do 8º ano, os adolescentes viraram-se para ficar frente a frente com o seu passado, com o início de sua jornada. Ali ocorreu a "dobra do tempo", pois lhes foi pedido que invertessem de papel6 com seu eu no passado e, assim, acompanhados dos sentidos já vivenciados na caminhada, olhassem para seu futuro, interatuassem consigo nessa dobra.

Mais do que um método de projeção no futuro, nesse encontro de si consigo mesmo, na fluidez do tempo e no espaço entre fantasia e realidade, proporcionou-se uma quebra e, ao mesmo tempo, uma abertura para outro patamar perceptivo sobre aquilo que os construía sujeitos naquele momento de integração existencial. Podemos perceber que tal vivência gerou uma ação espontânea na qual o movimento de dobrar-se sobre si provocou uma ruptura de paradigmas sobre as forças que nos agenciam, possibilitando interrogar e compreender o que é o nosso presente e as instituições que nos governam. Afinal, ao inverter papéis com seu próprio eu, entre passado e futuro, eles puderam observar o aqui e agora apontando para aqueles caminhos percorridos (escola, profissão, amizade, família, entre outras instituições das quais eram parte etc.), tensionando os estatutos de verdade que os vinham/vêm produzindo.

Essa cena intrinca-se diretamente com a noção de Momento cuja implicação sugere, conforme Reñones (2008, p. 75), "uma mudança, percepção de mudança e participação espontânea nesta mudança". Continuando, o autor ainda revela:

Se afirmamos que o conceito de Momento abre uma brecha no fluxo cronológico do tempo, é porque nele, mais que dizer que se concentram tempos, energias ou eventos, acontece uma entrada em outro estado, de consciência, temporal e relacional. (...) É uma manifestação da Catarse de Integração que é uma situação de reconhecimento de um passado e abertura para um futuro, num presente criado espontaneamente, aqui, agora. [É feita] uma abertura para uma nova ação, criativa que traga aberturas e diferenças aos participantes." (pp.74-75).

Assim, após serem desencadeadas novas possibilidades, rompendo com hierarquias e afirmações daquilo que se toma por verdade sobre o que é ser sujeito jovem (ou o que se acredita como sendo melhor para ele), os atores sociais naquele palco criaram um recorte de novos significados para o seu ‘ser-aí’: ser-jovem-presente que vive o agora, revelando um grupo que se tornou autônomo, no qual os participantes experienciaramse como agentes multiplicadores de outras formas de sentido. Sob esse viés, entro com o exemplo prático vivenciado no segundo encontro mencionado acima: o dia em que se questionou o saber.

No segundo encontro, o aquecimento do grupo começou de forma diferenciada, no qual os jovens puseram-se a discutir o espaço normativo da instituição no qual estavam inseridos, questionando determinadas regras adotadas por ela (por exemplo, os regulamentos no vestuário, como a proibição do uso de roupas justas para as meninas ou adereços estéticos – brincos, anéis – para os meninos). Além disso, questionavam também as novas políticas adotadas pelo local, abrangendo assuntos referentes aos critérios de adesão no estabelecimento (aqui, em particular, os jovens criticavam a recente parceria da instituição com programas de liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade, nos quais adolescentes que haviam cometido delito ou ato infracional passaram a frequentar as oficinas e demais aulas naquele local) até os códigos de conduta implícitos nos benefícios para estudantes tidos como ideais.

Tal discussão culminou em três pequenos grupos divididos entre aqueles que estavam satisfeitos com as medidas adotadas e desejavam ficar na instituição socioeducativa; aqueles que, apesar de não concordarem com os artifícios de governo, acreditavam que o estabelecimento apresentava- se como uma boa oportunidade naquele momento, demonstrando dúvida entre sair e ficar; e outro subgrupo, com um número maior de participantes, no qual estavam inseridos aqueles que demonstravam resistência sobre o controle e, consequentemente, queriam sair da instituição. Feita essa divisão, pediu-se a todos os jovens que experimentassem estar nos demais grupos – ficar, sair e estar em dúvida; para cada um dos momentos experimentados, solicitou-se que criassem uma cena na qual o grupo (pois a intenção aqui era que todos os jovens, independentemente de qual grupo haviam escolhido inicialmente, passassem por todos os momentos) demonstraria quais eram as significações e os movimentos vivenciados naquele lugar.

O mais interessante, e chocante, é que em todas as cenas criadas havia uma figura dotada de um saber que era questionado. Entre professora, diretora e psicóloga (achei o máximo!), os jovens colocaram à prova a trajetória epistemológica do conhecimento nessas ciências e, uma vez imbricado nos percursos institucionais, a imposição desses regimes de verdades e conservas que cada um vivenciava e, vez ou outra, perpetuavam em suas vidas. Na cena sobre a dúvida entre ficar e sair, por exemplo, uma jovem no papel de psicóloga era chamada para ver se não havia problemas com um menino que não sabia bem o que fazer na vida. Assim, a instituição solicitara um diagnóstico para comprovar (ou condenar) a saúde daquele que estava ali; como o menino fora ‘reprovado’ ao tentar evidenciar que era ‘normal’, foi efetivada a saída do jovem do programa; mas a cena continuava mostrando o mesmo jovem roubando um carro e sendo pego para, após, ironicamente retornar à instituição. Assim, entre os atos dramatizados, os adolescentes tensionaram como o discurso científico acaba tomando o sujeito e legitimando o lugar daquele que produz verdades.

No caso referido, os jovens conseguiram problematizar a psicologia não só como campo de conhecimento, no qual o profissional psi vem operar como salvador (que detém o poder através do diagnóstico/prognóstico) ou como agente massificante (aquele que confere operações de medida e perícia), mas, também, questionar esse saber por meio de sua produção atrelada a outras ciências: em meio à medicina, ao ser utilizada para ajudar a localizar os que se encontram fora dos padrões do dito normal; passando pelas ciências criminais, ao auxiliar na interdição do indivíduo a ser corrigido; e referindo também a seu uso hoje no campo educacional, na área da saúde social, na indústria de trabalho etc. Em todos esses setores, a psicologia entra afirmando uma lógica da "degenerescência", o que, conforme Foucault (1997):

"Vai servir, durante mais de meio século, de quadro teórico, ao mesmo tempo que de justificação social e moral a todas as técnicas de localização, de classificação e de intervenção sobre os anormais; a organização de uma rede institucional complexa, que serve (...) ao mesmo tempo de estrutura de "acolhimento" para os anormais e de instrumento de "defesa" da sociedade" (p.66).

Em um plano mais profundo ainda, o que os adolescentes exteriorizaram naquela cena foi a maneira como o mandato do instituído de menores e as tecnologias de governo vinculam eugenicamente a juventude pobre à criminalidade e à condição de periculosidade7.

 

Reflexões finais : do olhar sobre o olhar

A partir das considerações anteriores, é possível perceber o quanto a violência está inscrita nos discursos e saberes institucionais como um poder de normalização que ocorre sobre a vida, na regulamentação e criação de categorias que intervêm nos modos de produção de subjetividade. Por essa razão atenta-se para o fato de que, ao buscar descortinar um fenômeno como esse, é preciso questionar a utilização de uma perspectiva unidimensional, visibilizando a existência de fluxos e lógicas relacionais multifacetados, em que são postos em cena a diversidade e múltiplos olhares, e em cujo palco se fazem presentes várias verdades que são construídas entre uma multiplicidade de atores sociais.

Seria um abandono ao sentido de definitivo, àquilo que tomamos por verdadeiro e absoluto. Ao caminhar nessa trilha psicodramática, sob um viés crítico pós-estruturalista, o convite deste artigo seria a desinstitucionalização de todas as violências, inclusive o nosso papel na própria instituição. Tendo como base os encontros apresentados aqui, faço outra leitura desconfortável que envolve também instituições, mas aquelas que nos compõem como diretores naquele contexto grupal, revelando o quanto o grupo também me colocou em confronto com os próprios enunciados da minha trajetória, do que constitui o meu ser profissional psi, sujeito imbricado nas malhas que nos governam. Nesse sentido, são exemplares as palavras de Reñones (2008):

"O Homem pode conhecer conhecendo-se, e conhecer o Ser simultaneamente, pois tudo estará coligado nessa compreensão se o Nada estiver como plano de elaboração e o Homem ouvir do Ser o chamado para esse desvelamento. Isso pode ocorrer se o Homem aceitar sacrificar- se para o Ser, doando-se para que esse desvelar possa ocorrer. Um sacrifício doloroso para nossa noção moderna de identidade, o sacrifício da subjetividade. (...) Assim, contentar-nos com essa identidade é desde o princípio um aceitar a almofada no sofá metafísico da manutenção do que já sabemos, e é por isso o desperdício do que poderíamos viver, no desdobramento máximo que podemos existir como Seres no presente, aqui. Agora." (pp.151-152).

Portanto, ao percebermos o quanto somos parte daquilo que "analisamos", podemos adotar uma postura de questionamento sobre nós mesmos, a fim de não cristalizarmos lógicas dicotômicas, gerando efeitos diferenciados a cada encontro, adotando o ser em potência espontâneocriador, produzindo devires de novas singularidades de vida, como a corrente do rio que se liberta das presúrias que o impediam de fecundar a terra ou ir ao encontro do mar.

 

Referencias

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Endereço para correspondência
Av. Independência 986, 806, Independência
CEP 90035-072 - Porto Alegre - RS
e-mail: orianahhadler@terra.com.br

 

 

1 Psicóloga (UCPEL), mestre em Psicologia Social (PUCRS), psicodramatista em formação (IDH-RS)
2- - O caso da menina de 5 anos comoveu o país: Isabella Oliveira Nardoni morreu depois de cair do 6° andar de um edifício, na zona norte de São Paulo. Após inquérito, averiguação e exaustivas remontagens da tragédia, seu pai – Alexandre Nardoni – e sua madrasta – Anna Carolina Jatobá – foram indiciados por homicídio doloso e coautoria de homicídio. (Para maiores informações, cf. Linhares, 2008).
3 - Mantenho aqui a noção de ética apresentada por Chauí (2006), que diz respeito não a competências específicas determinadas por padrões preestabelecidos, como normas, regras e juízos de valores, mas a ética que se refere ao cuidado à vida, à liberdade e à autonomia de cada indivíduo como agente social, como questionador do governo de si e dos outros.
4- Esclareço que o nome da instituição será mantido em sigilo, pois meu intuito aqui não é o de apontar um estabelecimento em particular, mas fazer uma crítica sobre práticas institucionais, convidando o leitor a questionar o que se toma por violência hoje, problematizando como determinados discursos imbricados nas políticas públicas vêm produzindo modos de subjetivação.
5 - O como-se pode ser compreendido como o palco psicodramático onde "ser e parecer se tornam sinônimos e simultâneos" (Moreno, 1959, p. 115).
6 - A técnica de inversão de papéis é mais do que uma tomada do papel do outro, mas uma intensa vivência interna na qual se torna possível uma profunda intuição acerca de nós mesmos e do outro no "como-se". Para abranger de forma mais completa e visualizar as vivências aqui apresentadas, ver Moreno (1959): Psicoterapia de Grupo e Psicodrama.
7 - No artigo "Ser jovem, ser pobre é ser perigoso?" Coimbra e Nascimento (2005) abordam exemplarmente essa questão.