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Revista Brasileira de Psicodrama
versión On-line ISSN 2318-0498
Rev. bras. psicodrama vol.18 no.2 São Paulo 2010
SEÇÃO LIVRE
Free Section
1970: o Congresso que redefiniu o campo do Psicodrama brasileiro
1970: the Conference that re-defined the realm of Brazilian psychodrama
Julia Maria Casulari Motta1
RESUMO
O artigo apresenta uma leitura sócio-histórica do V Congresso Internacional de Psicodrama e do I Congresso Internacional de Comunidades Terapêuticas, realizados conjuntamente no Masp (1970) – Museu de Arte de São Paulo. Para isso parte da pergunta: "O que aconteceu com o campo do psicodrama a partir da organização do Congresso de 1970?". Para responder a questão desenvolve uma escavação arqueológica e genealógica em documentos oficiais, entrevista pessoas sobre as memórias e história do evento. Procura contextualizar os acontecimentos no cenário nacional e internacional, mostrando que os fatos não são isolados, mas plantados na história coletiva como produtor dessa mesma história. Conclui com algumas reflexões que apontam para a importância desse evento na formação do campo brasileiro do psicodrama.
Palavras chave: Psicodrama brasileiro, congresso de 1970, história, memórias.
ABSTRACT
This paper offers a socio-historical view of the 5th International Psychodrama Conference and 1st International Conference of Therapeutic Communities held jointly in 1970 at the São Paulo Museum of Arts (Masp). The starting point is the following question: "What has happened to the realm of psychodrama since this 1970 Conference?" In order to find the answers to this question, the author has embarked on an archaeological and genealogical excavation of official records and interviewed various people regarding their memories and recollections of this event. She attempts to put the Conference into the context of the national and international events of the time, demonstrating that these didn't happen in isolation, but were embedded in collective history and originating from this history. In conclusion reflections are made regarding the significance of this Conference for the development of Brazilian psychodrama.
Keywords: Brazilian psychodrama, 1970 conference, history, recollections.
Tomando o trem da história
Estamos vivendo num Brasil antecedido de muitos brasis e formador de outros tantos brasis; fundamentalmente somos histórias e fazemos histórias.
O psicodrama tem sido parte desses brasis, ao mesmo tempo em que também é expressão e instituinte do social. O psicodrama de hoje cria e é criado pelo psicodrama de ontem; o psicodrama de hoje faz mais sentido quando se compreende como ele chegou a ser o que é. A história determina, até certo ponto, os problemas estudados, a maneira de estudá-los e a linguagem usada ao escrever as respostas impressas.
Vejamos fragmentos da nossa história. Acredito que estou visitando o passado em busca do amanhã, "escovar a história a contrapelo" (tese VII), como disse Walter Benjamim (1996) em um esforço de reativar um compromisso social, portanto político, com o presente.
O movimento brasileiro de formação de "uma nação moderna" pode ser datado em 1808, com a vinda de d. João VI e a família real para o país; as mudanças planejadas que aconteceram, como criação da casa da moeda, abertura de faculdades de medicina, direito, engenharia, abertura dos portos, dentre outros, mostram um planejamento para os fatos. Pouco depois, a espetacular cena de declaração de Independência do Brasil (1822), que preparou terreno para a tardia, por isso vergonhosa, Lei Áurea (1888), que aboliu o estado oficial de escravidão dos africanos. Mesmo assim, a construção da nação ainda é precária, e as ciências humanas passam a ganhar espaço como um recurso necessário na formação da classe trabalhadora assalariada. (Motta: 2005, cap. II)
Enquanto isso, no mundo, a Revolução Industrial ganha terreno, modificando o perfil das nações, das relações entre Estado e povo. Inaugurase o século XX com a chamada II Revolução Industrial, que acentua as relações entre máquina e homem, também firma o século como o mais sangrento dos períodos da história da humanidade. Vivem-se as duas Grandes Guerras mundiais (1914-1918) e (1939-1945) que abalam o planeta com o genocídio hitleriano.
Mas, como tais fatos se articulam com o psicodrama e o Congresso estudado?
J. L. Moreno (1889-1974) nasceu como membro de uma família pobre, judia, sem berço de nação, imigrante na Viena efervescente da época, onde cérebros judeus revolucionavam as ciências humanas. Começa a criar sua teoria durante o fim do reinado de Francisco José e os desdobramentos desse governo.É um rei fraco e avesso às mudanças da modernidade. Para se ter uma ideia, seu palácio ainda adotava o hábito do urinol e não havia incorporado o uso de luz elétrica. Coisas caprichosas de um rei que reinou por 64 anos, entre 1848-1916.
O fim do século XIX é marcado pela lenta deteriorização do império austrohúngaro, quando acontece a "fuga de cérebros" de Viena (BARRIO: 1995). Foi nesse cenário que Moreno propôs a famosa cena da "cadeira do Rei" (1922) que inaugura oficialmente sua obra. Com esses poucos dados é possível visualizar melhor a ousadia moreniana.
Logo depois, muda-se para os Estados Unidos (1925), com o fraco argumento que precisava vender uma invenção; todavia, como todos os pensadores judeus da época, ele estava também fugindo da eminente perseguição nazista.
No novo país, desenvolve a psicoterapia de grupo (1932), tendo como marco o Congresso Americano de Psiquiatria, na Filadélfia. Cria a sociometria (1930-1940) como alternativa à psicometria, ciência que é criada como instrumento de seleção de soldados para a II Guerra Mundial e que ganha projeção aplicada ao mundo do trabalho. Luta pelo reconhecimento das suas ideias e, para isso, cede alguns aspectos da sua impetuosidade revolucionária e torna-se mais adequado ao momento histórico. E, por fim, desenvolve o psicodrama a partir de 1950 (Barrio: 1995).
Passa a olhar a América Latina como uma possibilidade de adesão as suas ideias e recebe o primeiro aluno da região. Tem como projeto dramático com esse profissional formá-lo para ser seu representante no América do Sul. Estamos falando do argentino Rojas Bermudez.
E o Brasil, como está nesse período?
O século XX marca a passagem de um país agrário, mais notadamente cafeeiro, para os arremedos de industrialização, grande meta nacional responsável pela vinda da família real, em 1808.
Para alguns historiadores essa passagem tem seu marco na abolição da escravidão, que produz milhares de seres humanos analfabetos e famintos perambulando nas periferias das cidades, notadamente na capital, Rio de Janeiro. Desse abandono, tem início a formação das favelas cariocas, com negros libertos com pobreza exposta, prostitutas, bêbados, ladrões e desempregados, pobres amontoados em cortiços. (Cunha: 1986).Essa é a população que, entre 1948-1950, conhecerá o psicodrama através do trabalho de Guerreiro Ramos.
Dos acordos entre dois polos de poder, o Estado e os coronéis nordestinos, é organizado o movimento de imigração como mão de obra especializada. Isto é facilmente realizado, pois a Europa encontra-se banhada por muitas guerras locais, além das duas Grandes Guerras. Pobreza, falta de emprego, desesperança fazem a ideia de uma nova terra ser um xangrilá. O Brasil recebe navios e navios de imigrantes de diversas nacionalidades, que passam a incorporar o contingente de trabalhadores.
Na bagagem dos imigrantes também chegam conhecimentos sobre direitos dos trabalhadores, notícias de outras possibilidades de relações entre patrões e empregados. O país vive as greves, inauguradas em 1917, já nas primeiras décadas do século, coordenadas pelo movimento organizado dos anarquistas.
A Primeira República (1889-1930) configura um período de transição iniciado no Império, com a abolição do trabalho escravo e a passagem para as relações capitalistas de produção. A chamada Revolução de 1930 tem como desdobramento principal a implantação de um país capitalista, de marcando o triângulo eleito para o processo de industrialização: Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, como a máquina do trem do progresso.
No cenário mundial, a Inglaterra deixa de ser a "oficina do mundo", perde a primazia para os Estados Unidos e a Alemanha. As indústrias pouco rendosas, que não lhes interessam mais, são enviadas para cá. Plantamos a industrialização com maquinários e técnicas obsoletas para os países do primeiro mundo.
O Brasil moderno e industrializado nasce numa realidade de desigualdade socioeconômica que perdura até os dias de hoje.
Década de 1950, vivemos uma ditadura getulista, com traços populistas, que implanta o Ministério do Trabalho, a carteira de trabalho, a siderúrgica de Volta Redonda, depois das primeiras greves dos trabalhadores.
Enquanto isso, na capital, Rio de Janeiro, cresce o número de favelas acompanhadas da instalação de um estado de violência urbana, liderado por contingentes de negros e mestiços.
Nesse clima de desordem e preconceito contra os negros e mulatos, chegam as primeiras notícias do psicodrama, entre 1948-1950, pelas mãos do sociólogo baiano, negro e preocupado com as condições do numeroso grupo de desempregados sem qualificação profissional. É Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), que trabalhou com Abdias do Nascimento, criador do TEN- Teatro Experimental do Negro (1944) e do Jornal Quilombo (1949-1950) (Malaquias: 2007).
Esse sociólogo apresentou as ideias morenianas, criou possibilidades novas, deu cursos sobre psicodrama e sociodrama, escreveu artigos, ensinou psicodrama. As divergências entre a sociologia proposta por Guerreiro Ramos e a sociologia do uspiano Florestan Fernandes atingem os intelectuais do TEN, resultando no seu posterior esvaziamento como movimento de ponta no trabalho com etnias. Com o golpe militar de 1964, Guerreiro Ramos se afastou do TEN, o jornal Quilombo deixou de ser editado e o pioneiro psicodramatista Guerreiro Ramos, já cassado no seu mandato de deputado pelo PTB, sob pressão mudou-se para os Estados Unidos em 1966, onde ficou até 1981, quando voltou ao Brasil. Faleceu em 1982, sem voltar a fazer psicodrama por aqui (Barbosa: 2004).
Apesar de polêmico, esse controvertido sociólogo é responsável pelas primeiras ações morenianas no Brasil. A proposta moreniana ficou esquecida até que, entre 1958-1960, em Minas Gerais, o psicólogo belgo-francês Pierre Weil (re)apresenta o psicodrama com nova roupagem ao cenário brasileiro. Agora, as ideias de Moreno estão a serviço dos trabalhadores do DOT (1958-1968)- Departamento de Orientação ao Trabalho do Banco da Lavoura de Minas Gerais (Banco Real). O psicodrama continua como proposta para o desenvolvimento dos trabalhadores, reeditando Guerreiro Ramos, sem estar centrado nos desempregados, como anteriormente.
Nasce oficialmente Brasília (1960), deixando um rastro de dívida externa que trouxe muitos problemas ao país. Também chegou, na ocasião, a indústria automobilística, a chamada indústria pesada. Concomitantemente, alguns movimentos que contribuíram na construção do cenário da ditadura imposta em 1964. Inflação, descontrole monetário, emissão sem planejamento da moeda, greves em função da inflação galopante, desemprego, insatisfação com a transferência da capital, medo do comunismo fizeram contrapontos ao "orgulho nacional" com a capital construída em tempo recorde. A expansão do movimento de modernidade para o Planalto Central, antes cerrado sem progresso, muda o movimento de imigração, já não é mais o rural que busca a cidade, agora é a cidade que persegue o campo (Motta: 2008).
Chega a ditadura militar em 1964, instalando um estado de exceção no país, que foi agravado com o AI-5- ato institucional n5, em 13 de dezembro de 1968. O Brasil, juntamente com outros países da América do Sul, vive um estado de exceção responsável por um rastro de sangue e vergonha.
O movimento de 1968 dos estudantes, no mundo, produz respostas, como a do Brasil, de endurecimento e autoritarismo. Os diversos sindicatos de trabalhadores já estão empobrecidos e desarticulados, alguns voltando ao movimento patronal de direita. Medo, insegurança, violência transvestida de projeto nacional varrem o país de norte a sul. A educação humanista, que crescia nas escolas públicas, é desarticulada pela lei 5692.
Em Minas Gerais, o psicodrama, que já estava sendo ensinado em cursos regulares de formação, tendo Pierre Weil e Ana Ancelin Schutzenberger como pioneiros na formação de psicodramatistas triádicos, sofre um baque com a mudança do Banco Real para São Paulo, consolidada em 1970. "O DOT (1958-1968) é fechado e todo arquivo de pesquisas e treinamento é queimado, as causas não foram políticas mas econômicas" (sic). A justificativa é que as informações eram confidenciais. (Weil: 2004).
Entretanto, a liberdade de reunião foi suspensa, o trabalho de treinamento em grupos, vigiado, o medo e a desconfiança fizeram os trabalhadores e os profissionais mudarem sua forma de atuação. Muitos passam a buscar uma formação clínica e abrem os primeiros consultórios baseados na metodologia psicodramática.
O psicodrama volta a ficar à margem da história oficial, como havia acontecido com o trabalho de Guerreiro Ramos no Rio de Janeiro, em 1964, fruto do golpe militar.
Em 1967, é publicado o primeiro livro sobre psicodrama de autoria de Pierre Weil, com o título Psicodrama e prefácio de J. L. Moreno.
Alguns trabalhos já estavam sendo desenvolvidos em São Paulo, notadamente por psiquiatras em hospitais e clínicas. Em maio de 1967 realiza- se, em São Paulo, o V Congresso Latino-Americano de Psicoterapia de Grupo, que tem como presidente o psicanalista Bernardo Blay Neto. "Nesse congresso, 70 brasileiros apresentam trabalhos científicos sobre psicoterapia de grupo. Dentre eles estão os futuros alunos que formarão os GEPSP" (Pamplona da Costa: 2001, 11-36).
Em São Paulo, na década de 1960, muitos profissionais da saúde, desejosos de aprofundar seus conhecimentos em psicodrama, veem no argentino, professor Rojas Bermudez, e sua equipe a possibilidade mais fácil de formação. Ele e seu grupo passam a vir a São Paulo para dar formação a 11 grupos de profissionais da saúde, médicos e psicólogos, que constituíram os chamados GEPSP (1968-1970)- Grupos de Estudos de Psicodrama de São Paulo (Motta, 2008). A psicologia havia conquistado o panteão das profissões e é regulamentada em 1962.
A psicanálise ganhava terreno rapidamente desde a década de 1950, como abordagem clínica de elite. Era considerado status social fazer parte do grupo psicanalítico tanto como aluno quanto como cliente dos "grandes mestres" da época.
Os médicos e psicólogos que se viam preteridos no ingresso aos cursos de formação psicanalítica buscavam outras possibilidades de especialização, como no psicodrama.
Outros viam no psicodrama uma possibilidade de atuação mais arejada, com cunho social, num país em ditadura militar.
Moreno, que naquele momento estava empenhado na expansão do psicodrama, vê no crescimento acelerado dos GEPSP uma oportunidade de penetração do movimento psicodramático na América Latina; encarrega os brasileiros e argentinos de organizarem conjuntamente o V Congresso Internacional de Psicodrama, em São Paulo.
Insatisfações entre professores e alunos no interior das onze turmas dos GEPSP fazem o cenário tenso, mas a proposta é importante o suficiente para ser levada adiante, mesmo assim. Essa é a primeira chance de reunir em um grande evento os psicodramatistas brasileiros e apresentar ao país, aprisionado pela ditadura, uma nova abordagem capaz de trazer esperanças e renovação. No contexto mundial, Moreno vive uma crise com Rojas Bermudez, paralelamente à crise interna dos GEPSP.
Nesse campo de divergências e acertos o chamado congresso do Masp - Museu de Arte de São Paulo é organizado.
Ano 1970: V Congresso Internacional de Psicodrama I Congresso Internacional da Comunidade Terapêutica Nas memórias de Antônio Cesarino (in: Motta: 2008, 38-40) coordenador da comissão científica do evento, estão assim registradas suas lembranças:
"Éramos um grupo de gente jovem e entusiasmada com novas idéias que o psicodrama nos trazia, de modificação profunda na tarefa psicoterápica, que escapava do pesado, autoritário, quase soturno trabalho dos praticantes da época para uma tarefa aberta, alegre, ativa e compartilhada com o cliente. Mas, além disso, a simultaneidade com o movimento então ainda recente de Comunidade Terapêutica significava que queríamos ir além da prática apenas dos consultórios, mas visávamos atingir a meta básica do psicodrama : a sociedade e suas instituições ( …). Isto tudo em plena ditadura militar, em um de seus períodos mais escuros.( …) Mais de 3000 pessoas se inscreveram.Ao contrário de outros congressos, permitíamos a participação de qualquer pessoa que desejasse, sem nenhuma exigência profissional. ( …)"
A coragem de reunir um grande número de pessoas, quase uma "multidão de brasileiros" sem que se pudesse argumentar ser um congresso de uma categoria profissional, dois anos depois de decretado o AI-5, que endureceu a ditadura, foi um ato de coragem que, por si só, vale como história de resistência. Eram anos escuros de liberdade, quando reunir pessoas estava proibido e qualquer evento grupal poderia ser usado como desacato às normas do regime.
Resistir aos militares e quebrar a hegemonia da psicanálise tradicional, trazendo o novo, a frescor da liberdade moreniana, foram enfrentamentos importantes que fazem do movimento psicodramático nesse congresso um emergente grupal brasileiro, um protagonista verdadeiro, representante da intersubjetividade nacional.
Ainda nas memórias de Cesarino:
"No nosso Congresso a menor surpresa era a quantidade de pessoas: nenhuma sala foi suficiente para a demanda crescente de quase tudo o que foi programado. (…) A falta de sisudez fez que parte da imprensa e alguns setores psis classificassem o que se passava de não sério, de happening. E happening era mesmo, no seu melhor sentido: surpreendente, inovador, criativo, vivaz, e alegre sem vergonha do público" (idem, 39) "Vieram quase todos os mais importantes psicodramatistas do mundo, além de líderes famosos do movimento de comunidades terapêuticas" (idem, 40-41).
Esse evento reproduz a ousadia moreniana em Viena, quando em pleno cenário em ebulição, com o reinado de Francisco José e suas esquisitices, a cadeira do rei foi oferecida ao público por Moreno, ficando esse ato registrado como o nascimento do psicodrama. Luta contra o velho, o estabelecido que não pode ser questionado porque consagrado como saber, como verdadeiro, e ungido com o poder ideológico hegemônico. Essa foi a luta moreniana em Viena e também aqui, nesse começo do campo do psicodrama brasileiro.
Os psicodramatistas mineiros, liderados por Pierre Weil, vieram ao Congresso trazendo suas conquistas e a proposta do Psicodrama da Esfinge, registrado no primeiro número da Revista da Febrap (1978, 19-23): é apresentado ao grande público o que se tornou a tese de doutorado de Weil na Universidade de Paris, logo depois. "O "grupo de Minas", nas memórias de Helio Koscky (in Flecha: 2007, 35-49) é assim contado que (no Congresso)" representações das principais escolas de Psicodrama do mundo estiveram presentes (Nigéria, Suécia, Escócia, Argentina, Estados Unidos , Colômbia, Espanha, França, Holanda e Japão)".
Mas, faltou o comandante do navio que Cesarino (2007) relembra assim:
"A grande ausência foi de Moreno (que seria o presidente honorário do congresso) e sua esposa Zerka. Isso aconteceu em virtude de questões da política de poder no movimento internacional do psicodrama na época: como Rojas – Bermudez surgiria como grande incentivador desse congresso, e líder de grande desenvolvimento do movimento na América Latina , havia a possibilidade de ele sair daqui como "herdeiro" de Moreno coisa que seus adversários não suportariam. Por isso conseguiram que Moreno desistisse de vir.(…) Eu diria que o grande público do congresso não percebeu ou não se importou com essa situação. Afinal o psicodrama estava ainda no começo , era atraente e oferecia muito o que ver e vivenciar".
Uma crise no recém-nascido movimento brasileiro não aconteceu desvinculada da crise do movimento argentino, do movimento internacional do psicodrama, da ditadura brasileira, da hegemonia da psicanálise no campo clínico nacional, da nova profissão da psicologia que foi reconhecida a partir da luta dos grupos já organizados, da educação, do social. Essa profissão, depois de referendada por lei, tornou-se dominantemente uma profissão idealizada como clínica psicanalítica.
Algo parecido nas lutas pelo "poder de dono" do campo de saberes é mais amplo que as disputas internas dos grupos liderados pelos GEPSP (1968-1970).
Estamos sempre mergulhados em círculos maiores de micro-políticas, a mesmo tempo em que um movimento é constituinte do social e constituído por ele. Nenhum átomo social é isolado de outros átomos, formando as redes sociais. A cada momento sócio-histórico um novo indivíduo social protagoniza as transformações que traduzem a morte do velho e a chegada do novo.
O Congresso de 1970 foi um personagem protagônico desde a sua constituição, ao reunir o movimento internacional do psicodrama ao das comunidades terapêuticas, mostrando as afinidades entre as duas propostas. O congresso com duplo tema tornou públicas novas possibilidades de trabalho na saúde e educação, acrescidas com novas propostas para psicoterapia e atendimentos psiquiátricos.
Nosso evento cumpriu a máxima moreniana de abrir as portas da psiquiatria para a alegria, com trabalhos em grupo, com uma nova posição do psicoterapeuta mais próximo do cliente, menos idealizado, portanto, mais humanizado.
"Não houve censura prévia ao congresso, mas muitos militares estiveram presentes ao evento, como "convidados especiais" observando fatos e pessoas. Isto era o "normal" de um estado de exceção em que vivíamos. Os congressistas militares exerceram poder de veto a algumas atividades, pressionando a comissão científica para deixar de fora atividades coordenadas por Lapassade, líder do movimento de análise institucional na França, como também vetaram a apresentação do Living Theatre, movimento de vanguarda no teatro" (Cesarino: 2007).
Depois do congresso, o movimento estava fortalecido e enfraquecido ao mesmo tempo. Explico melhor, os GEPSP estavam dissolvidos e dois grupos, formados a partir daí, buscavam suas formalizações como escolas, que são ABPS e SOPSP. Em Belo Horizonte, o grupo mineiro também se institucionalizou. Após um seminário, em agosto de 1971, dirigido por Ana Ancelin- Schutzenberger, foi oficializada a fundação da Sobrap - Sociedade Brasileira de Psicoterapia, Dinâmica de Grupo e Psicodrama. (Koscky, 2007).
A partir daí, em outros Estados, os grupos passaram a se institucionalizar, associando-se a uma das escolas precursoras, que passaram a disputar a liderança de conhecimento. O psicodrama pedagógico, iniciado por Maria Alicia Romaña e sua equipe argentina, que vieram como integrantes da escola bermudiana, continuou a formação de psicodramatistas "pedagógicos".
Interessante que vivemos por muitos anos, pelo menos, "quatro psicodramas" que não se misturavam: o psicodrama triádico, liderado pelo grupo mineiro; o bermudiano, liderado por Bermudez e o grupo da ABPS; o psicodrama baseado na proposta analítica de Dalmiro Bustos e da SOPSP; por fim, o psicodrama pedagógico liderado por Maria Alicia Romaña e Marisa Greeb. Este, considerado, inicialmente, mais "à parte do movimento", por não ser uma proposta clínica e ser ensinado em escola particular.
As críticas na imprensa escrita e falada, depois do Congresso, faziam do psicodrama um tema da atualidade, sendo que alguns mais corajosos advogavam na defesa, outros apontavam exageros, bagunça, superficialidade. Entretanto, também ficou consagrado como o movimento capaz de organizar um congresso com 3000 participantes em pleno regime militar.
Uma terceira vertente buscou conhecer a metodologia do psicodrama com grupos como alternativa à psicanálise, que já trabalhava com grupos numa adaptação do método individual.
Penso que a conjugação de vários fatores espaço-temporais fizeram do psicodrama uma proposta que tem dado certo.Somos a maior federação organizada de psicodramatistas do mundo, a Febrap, constituída, em 1976, por 14 grupos federalizados.Todos sem fins lucrativos, para diferenciar do estilo psicanalítico no qual "uma personalidade de proa capitaneava o navio". (Fonseca: 2005)
Como teria sido a nossa história se não tivesse acontecido o Congresso de 1970?
Possivelmente, não estaríamos organizados em uma federação desde 1976. A Febrap, como foi criada, é um desdobramento do Congresso de 1970.
Hoje, buscamos um retorno de participação ampliada no social. Estamos, como o Congresso de 1970, construindo a inclusão social, a democracia participativa, a luta por fazer um país com menos desigualdades sociais, onde o cidadão comum tenha espaço na história .
Neste artigo, revisitamos fragmentos da história num esforço de construção do futuro, porque estudar a história é se comprometer com o coletivo, é fazer ação política de protagonizar o futuro.
Nossa luta continua pela construção de um país democrático, onde o sonho moreniano da revolução criadora se concretizará.
Referencias
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Endereço para correspondência
Rua Rosa de Gusmão, 307 Jardim Guanabara
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e-mail: juliacmotta@gmail.com
1 Psicodramatista, professora-supervisora pela Febrap (IPPGC), doutora em Saúde Coletiva (UNICAMP), com pós-doutorado em Psicologia Social (PUCSP)