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Revista Brasileira de Psicodrama
versión On-line ISSN 2318-0498
Rev. bras. psicodrama vol.19 no.2 São Paulo 2011
SEÇÃO TEMÁTICA: Psicodrama público: Por quê? Para quê?
Thematic section: Public Psychodrama: What for? Who for?
Psicodramas públicos: por que e para quê?
Public psychodramas: what for and who for?
Federação Brasileira de Psicodrama
Associação Brasileira de Programas de Ajuda Humanitária Psicológica
Resumo
A autora descreve rapidamente suas experiências de trinta e três anos em psicodramas públicos para embasar essas propostas de intervenção psicoterápica e educacional. Ressalta a proposta moreniana como revolucionária, eficaz e contemporânea para o trato de temas cotidianos pouco explicitados na conserva cultural, de fundamental importância para a educação e saúde públicas como: violências, sexualidade, preconceitos, catástrofes, desastres, homo e bifobias, entre outros. Fundamenta a necessidade do psicodrama público na educação e saúde através de reflexões pós resultados clínicos e de pesquisas com diferentes grupos, em diferentes níveis socioculturais. Ressalta o por quê e o para quê dos psicodramas públicos, através da força para uma imunidade psíquica, resiliência e saúde que eles favorecem.
Palavras-chave: Psicodrama público; resiliência, saúde, educação, imunidade psíquica.
Abstract
The author briefly describes his experiences of thirty-three years in Public Psychodrama, to base such proposals of intervention in psychotherapy and educational. Emphasized the proposal of Moreno as a revolutionary, effective and contemporary to the dealings of everyday topics explained in cultural conserve, of fundamental importance to public health and education as: violence, sexuality, prejudice, catastrophes, disasters, homo and biphobia, among others. Based upon the need of Public Psychodrama in education and health through reflections after clinical results and research with different groups in different socio-cultural levels. It emphasizes the why and for what the Public Psychodrama, by force to a psychic immunity, resilience and health that they favor.
Keywords: Public Psychodrama, resilience, health, education, psychological immunity.
"... Os problemas da sociedade humana, tanto como os problemas do
indivíduo, a representação de relações humanas - o amor, matrimônio,
a doença e a morte, a guerra e a paz, que constituem a imagem do mundo,
podem agora ser representadas em miniatura, numa microrrealidade
dentro dos marcos do grupo..."
(Moreno, 1974, p.109).
Depois de trinta e um anos de estudos de prática de psicodrama e de sociodrama, ainda me surpreendem a genialidade e o sentido de vanguarda de Jacob Levy Moreno, o pai do novo paradigma da saúde e da educação do século XX: a visão complexa, sistêmica e positiva das potencialidades e capacidades do ser humano de viver, aprender e se refazer nas relações intra e interpsíquicas.
O primeiro psicodrama público a que assisti foi na Universidade de Córdoba, na Argentina, em 1977, com dr. Rojaz Bermudez, com um tema de luto não elaborado. Iniciante no psicodrama, e com uma formação psicanalítica praticamente exclusiva na Universidade, fiquei maravilhada e intrigada com o que percebia, sentia e pensava junto daquelas pessoas. Como sair dos ensinamentos da prática clínica fechada nos consultórios? Estudando os conceitos de comunidade terapêutica, cheguei de Córdoba cheia de energias e ideias e, com o Paulo Zampieri e Carlos Perez,meus colegas de formação de psicodrama no Instituto de Psicodrama de Ribeirão Preto, e de trabalho, construímos, com o parecer favorável do diretor do hospital onde trabalhávamos em Mococa, o dr. Irany Ferreira, uma sala ao lado do campo de futebol, para nossos psicodramas públicos, com pacientes psiquiátricos.
Na Revista Brasileira de Psicodrama de 1984, escrevi um artigo chamado o Psicodrama Público na Grande São Paulo. Ali descrevi cinco anos de experiência de psicodramas públicos nos teatros Brigadeiro e depois Ruth Escobar, às segundas segundas-feiras de cada mês, das 20 às 22 horas, onde uma equipe se revezava: eu, Paulo Zampieri, Luis Russo, Albina Rozochansky, Alfredo Correa Soeiro, Adoração Cliguet, Rosa Garcia e Ana Seixas, entre outros. Compúnhamos as chamadas unidades funcionais, em que cada diretor, com seus egos auxiliares, eram facilitadores de terapias públicas de temáticas do viver em casal, em família, no trabalho, nas igrejas, na política, nas questões de gênero, nas lutas homofóbicas, nos preconceitos, violências e abusos. Lembro-me de dois psicodramas públicos que dirigi com o Luis Russo e a Albina Rozochansky, cujos temas eram: a infidelidade conjugal e o aborto da amante e, no outro, a perseguição profissional de um homem por sua revelação de ter orientação homossexual. Temas atualíssimos!
A plateia pagava o ingresso com os preços dos cobrados nos cinemas, na época, e eram cem, duzentas, até trezentas pessoas naqueles teatros. Trabalhos maravilhosos do grupo do então chamado Instituto Brasileiro de Psicodrama. Naquele artigo, apresentei os resultados de análises das temáticas de cerca de sessenta psicodramas públicos. Havia pessoas que diziam: "Faço terapia com psicodrama no Ruth Escobar".
Concomitante e simultaneamente, muitos outros espaços desenvolviam psicodramas públicos; no Daimon, da equipe do prof. José Fonseca Filho, e no Teatro Vergueiro de São Paulo, um tempo depois; em universidades, escolas, empresas e congressos; enfim, num vasto campo onde a proposta moreniana favorece a interterapia e a interpedagogia.
Há vários psicodramas públicos inesquecíveis em que tive o prazer de estar nas equipes de trabalho, como o primeiro psicodrama público de Ribeirão Preto, em 1984, com o Regis Viana e o Iedo Borges; o de Niterói, em 1985, com a Lilian Tostes, a Maria do Carmo Rosa, a Nice Brandão e a Claudia Bulhões; sem esquecer o que promoveu Cely Wagner em Campinas, em 1986. E haja histórias de lugares onde o psicodrama público nos ofereceu a alegria do aprender compartilhando.
Na década de 80, tivemos dois grandes protagonistas em nossos psicodramas públicos: o HIV e a Aids. Com este, outros temas transversais das violências de gênero, das violências da homofobia e da bifobia; da infidelidade sexual mascarada por crenças, mitos e valores, da monogamia imposta sem conscientização; do conceito de grupos de risco: de usuários de drogas endovenosas; de prostitutos e prostitutas, de pessoas submetidas a várias transfusões de sangue, num sistema de saúde precário; de gays, (lembrando que a Aids foi chamada de peste gay), passou-se para os conceitos de atitudes de risco, onde, na América do Sul, uma prostituta bem treinada no uso de preservativo tem seis vezes menos chances de contrair o HIV e a Aids do que uma esposa, dona de casa, que se declara fiel sexualmente a seu marido. Nos psicodramas públicos em que a temática se relaciona com o HIV e a Aids, falamos, hoje, com os netos da Aids, já que filhos contaminados verticalmente por mães com HIV/Aids hoje têm seus filhos. Felizmente, vivemos uma era em que a Aids deixou de ser uma doença fatal, para ser crônica e tratada com os chamados coquetéis, porém, não menos grave.
O psicodrama público permite que se descortinem graves problemas de educação e de saúde, camuflados por poderes não explicitados e adquiridos transgeracionalmente, em uma conserva cultural que, ainda hoje, reprimem a possibilidade de crianças e adolescentes terem adequada educação sexual e, assim, apropriarem-se de seus próprios corpos e, mais conscientemente, evitarem e/ou impedirem o abuso sexual intra e extrafamiliar e os abortos provocados sem assistência médica e psicológica.
A espontaneidade e a criatividade são princípios básicos, definidos como a capacidade do ser humano de criar novas e adequadas perspectivas de sua realidade a partir do que lhe é oferecido, como já posto, ao que Moreno chamava de conserva cultural. São as assim chamadas respostas novas que vão além do conhecimento acumulado e guardado, transformando o saber individual e comum.
O homem seria por natureza espontâneo e criador e a não manifestação destes elementos causaria as doenças nas pessoas e nos agrupamentos sociais naturais. Segundo Moreno (1974), a espontaneidade desenvolveria no homem um estado de perpétua originalidade e adequação pessoal, vital à sua vida; seria a explicação da constante criatividade no mundo e definiria o homem como gênio em potencial, um gênio criador. O homem assim definido, como a sua sociedade, enfrentaria a vida e a história como se cada momento fosse inédito, lutaria contra a rigidez da conserva cultural, na defesa de sua liberdade de sentir, agir e pensar sem, todavia, anular a vinculação com a cultura.
Constituímos todos nós um psicodrama público, o observador-participante , esse indivíduo investido de atenção, memória e sentimentos correlatos à observação do tempo e do espaço e à observação de cada indivíduo em relação aos demais e ao grupo como um todo, na construção dos enredos socioindividuais apresentados. A realidade passa a ter sentido, dependendo da integração dos indivíduos com a imediatez dos estímulos vivenciados na dinâmica grupal e nas percepções individuais particulares.
Graças à espontaneidade e à criatividade surgidas no grupo por meio de técnicas psicodramáticas, podemos viver uma experiência ampliada da realidade, que aumenta as possibilidades da vida cotidiana do grupo que se constitui plateia nos psicodramas púlicos, que libera o mesmo grupo de opressões desse cotidiano, impedidoras de novas percepções, e que possibilita a experimentação de novos limites da realidade (Zampieri, 1996). Essa vivência da realidade ampliada, no cenário psicodramático, possibilita, também, que o grupo possa viver aquilo que sente com aquilo que pensa: aquilo que sonha com aquilo que vê, enfim, a extensão da própria vida individual e grupal, em que fantasia e realidade, não mais conflitantes, podem coexistir.
A dramatização dos protagonistas e seus egos auxiliares, nos psicodramas públicos, traz uma realidade suplementar ao grupo, levando seus membros a um novo estado relacional, em que as alternativas ficam à sua disposição, de uma forma tal, que diferem de seus modos conhecidos de interação. O surgimento da espontaneidade faz com que os integrantes do grupo vivenciem e experimentem suas necessidades com maior amplitude e clareza; traz visões diferentes sobre um tema particular ou um drama social, que já não necessita mais de um estado cognitivo, afetivo e comportamental, que constituía suas visões anteriores. O universo simbólico do grupo fica mais flexível por ele ter assumido, vivido e transformado papéis psicodramáticos e sociais, em consonância com seus protagonismos.
O biólogo e neurofisiólogo chileno Humberto Maturana (1995), fundador da pesquisa biológica de processos cognitivos, disse que, tradicionalmente, pensava-se que o conhecimento deveria refletir a realidade e que essa epistemologia enredou-se num dilema insolúvel, pois o conhecimento seria uma descrição ou uma imagem do mundo como tal, de forma absoluta. Ele discute e nega essa afirmação epistemológica e afirma que é nos espaços da interação humana, no emprego da linguagem e, enfim, na interação linguística que se estabelece entre os atores humanos que surgem as diversas realidades, dessa forma, a consciência é fundamentalmente social. Nos psicodramas públicos, as diversas possibilidades de conversações, de comunicações analógicas e digitais, favorecem o conhecer nas relações das diversas realidades construídas in status nascendi.
Paul Watzlawick (1967) afirmou haver inúmeras versões da realidade, que podem ser opostas entre si e que são resultado da comunicação e não reflexão de verdades eternas e objetivas. Apresentou-nos a pragmática da comunicação humana - que estuda o modo como os homens se influenciam mutualmente mediante a comunicação. O ser humano depende do meio não apenas para as necessidades de nutrição como também para intercâmbio de informações e, para que ele conheça a si mesmo, há que ser reconhecido pelo outro e vice-versa. Nesse conhecimento, o presente é o ponto temporal único em que tudo sucede e muda tudo enquanto muda. O autor cita George Orwell (1931) que falava do perigo e da responsabilidade de se elaborarem realidades, pelo risco da chamada "lavagem cerebral", em que a partir de ver-se o mundo "assim", logo ele seria "assim". Moreno (1974) traz os conceitos de momento e de "aqui e agora" que já anunciavam estas propostas , feitas durante sua vida e após sua morte.
O homem pensante é o único responsável por seus conhecimentos, pensamentos, e comportamentos. Os psicodramas públicos são o cenário para o empoderamento e da aproximação da vida através das relações.
A realidade do poder não existe, é algo construído na linguagem de tal forma que os que experimentam os efeitos do poder contribuem para produzi-lo.
"... A curiosidade é um vício que foi estigmatizado sucessivamente pelo cristianismo, pela filosofia e até por certa concepção da ciência. A curiosidade é fertilidade. Sem dúvida, gosto dessa palavra. Para mim, ela sugere algo completamente diferente: evoca interesse, evoca o cuidado que alguém tem pelo que existe e pelo que poderia existir, uma disposição a encontrar o estranho e o singular que nos rodeia, certo impulso implacável a romper as coisas, um fervor de captar o que ocorre e o que passa, uma contingencia frente às tradições hierárquicas do importante e do essencial..." (Michel Foucault, 1979, p.198).
Nos protagonismos diversos dos psicodramas públicos, vemos, in status nascendi, a desconstrução de verdades estáticas para a construção de humanidades menos polarizadas e impedidas de flexibilização, espontaneidade e criatividade.
Os protagonistas de um psicodrama público explicitam, representam e dão movimento e voz aos dilemas do viver a vida de cada um de nós. Por projeções, identificações, empatia, compaixão, insolências e outras possibilidades de relacionamentos implícitos, explícitos, coconscientes e coinconscientes, tratamo-nos tratando e educamo-nos educando. Atores, autores e codiretores da vida, nos psicodramas públicos, adquirimos consciência de nossas corresponsabilidades, descobertas de novas possibilidades e a força do empoderamento espontâneo criativo que o grupo, reunido nos trabalhos psicodramáticos, nos facilita. As catarses socráticas, morenianas e afetivas favorecem o reconhecimento da força do amar, na busca da saúde e do bem-estar comum. A fase do compartilhar dos psicodramas públicos nos emociona, reenergiza e sensibiliza.
Em psicodramas públicos em quartéis, igrejas, galpões e abrigos, por exemplo, com pessoas danificadas por catástrofes e desastres naturais ou provocados pelo homem, vemos como, algumas vezes ainda rodeadas por escombros, as pessoas unidas, da fase do aquecimento inespecífico à do compartilhar, podem revelar, chorar, pedir auxílio, oferecê-lo também e crescer, no entendimento da inevitabilidade do enfrentamento da morte, no fortalecimento interno para a reconstrução de suas identidades pessoais, geográficas, de cidadãos, espirituais e cósmicas.
Por que o psicodrama público? É a forma exercida e recriada desde Moreno, por nós, os psicodramatistas, que ainda revoluciona os métodos de abordagem de saúde e educação públicas.
Para quê o psicodrama público? Para o fortalecimento da imunidade psíquica (Benyakar, 2005), das pessoas através de vivências em experiências compartilhadas que promovem empatia e compaixão pela dor e força dos "eus" e dos "teus" e dos "nós" (Buber, 1977); para o empoderamento, para o viver a vida, pelos role playings que possibilitam capacitação para o presente, futuro, através da ressignificação do passado; para a resiliência que as pessoas adquirem, quando têm um entorno social que as acolhe, compreende e estimula; enfim, para que, de fato, os settings terapêuticos e educativos estejam no palco da vida, onde ela se revela.
Ainda e sempre Moreno! Recriado nas várias possibilidades de articulações e complementaridades técnicas. E neste seu grande presente à humanidade: a sociatria pelos psicodramas públicos!
Referências
BENYAKAR, M. Lo disruptivo. Buenos Aires: Universidad del Salvador, 2005. [ Links ]
BUBER, M. Eu e tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1977. [ Links ]
FOUCAULT, M. O nascimento da medicina social. Rio de Janeiro: Graal, 1979. [ Links ]
MATURANA, R. H.; VARELA, F. A. A árvore do conhecimento. Campinas: Psy, 1995. [ Links ]
MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1974. [ Links ]
ORWELL, G. apud ZAMPIERI A. M. F. Erotismo, sexualidade, casamento e infidelidade. São Paulo: Ágora, p. 34, 2004. [ Links ]
Watzlawick , P. (org.). A realidade inventada. Campinas: Psy, 1984. [ Links ]
ZAMPIERI, A. M. F. Sociodrama construtivista da Aids. Método de construção grupal na educação preventiva da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Campinas: Psy, 1996. [ Links ]
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
BROWN, E. Patterns of infidelity and their treatment. New York: Brunner Mazel Publishers, 1991.
Bustos, d. m. Nuevos rumbos en psicoterapia psicodramatica. Buenos Aires: Momento, 1985.
CAPRA, F. Sabedoria incomum. São Paulo: Cultrix, 1988.
HELMAN, C. G. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre. Artes Médicas, 1994.
MERHY, E. E. A saúde pública como política. Um estudo de formadores de políticas. São Paulo: Hucitec, 1992.
ZAMPIERI, A. M. F. O axiodrama. Rev. Bras. de Psicodrama, Febrap, vol 2, 1994.
______. Medotologia psicodramática na educação preventiva da Aids. Rev. Bras. de Pesquisa em Psicologia. FEC do ABC, vol 1, nº1, 1987.
______. Sociodrama, educação e Aids, in: Cadernos de Psicodrama, Educação e Desenvolvimento. São Paulo: Ágora, 1990.
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* Psicóloga (USP, 1975), psicodramatista, terapeuta didata e professora supervisora pela Febrap, pós graduada em terapia sistêmica, psicotrauma e terapia sexual, terapeuta de EMDR e Brainspotting. Mestre, doutora e pós-doutora em psicologia clínica (PUCSP). Doutoranda em psicologia e disruptivo (Universidad del Salvador, Buenos Aires, 2011). Coordenadora do departamento de ciência e ensino da F&Z Assessoria e Desenvolvimento em Educação e Saúde Ltda. Diretora de ciência e academia da Abrapahp: Associação Brasileira de Programas de Ajuda Humanitária Psicológica