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Imaginário

versión impresa ISSN 1413-666X

Imaginario v.13 n.14 São Paulo jun. 2007

 

 

 

Mauschwitz: deslocamentos imaginários*

 

Mauschwitz: imaginary displacements

 

Mauschwitz: desplazamientos imaginarios

 

 

Suely Aires Pontes**

GT de Filosofia e Psicanálise da ANPOF
Grupo de pesquisa SEMASOMa, (IEL/UNICAMP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Maus, graphic novel de autoria de Art Spiegelman, obteve grande sucesso de público e crítica, sendo agraciado com o Prêmio Pulitzer de literatura em 1992, apesar de ter como fio condutor a história de um judeu sobrevivente dos campos de concentração. Não bastasse essa temática tão surpreendente e mesmo inusitada, Spiegelman opta por representar seus personagens como animais e toma como representação dos judeus a figura do rato, mesma imagem que a propaganda nazista utilizou para associar os judeus à idéia de sujeira, dejeto ou praga a ser exterminada. Neste artigo pretendemos apresentar os diversos deslocamentos, tanto formais quanto de conteúdo, que permitiram a Spiegelman construir essa narrativa ímpar.

Palavras-chave: Literatura, Holocausto, Maus, Spiegelman, Deslocamento


ABSTRACT

Maus, a graphic novel by Art Spiegelman, was successful with both the public and the critique, winning the Pulitzer Literature Prize in 1992, although it has as its conductor line the story of a Jew that survived the concentration camps. In spite of this surprising and unusual theme, Spiegelman chooses to represent his characters as animals, depicting the Jews as mice, the same image used by the nazi propaganda to associate the Jews to filthiness, dejecta or plague to be exterminated. In this article, we intend to present the various displacements, not only formal but also in content, which allowed Spiegelman to construct this unique narrative.

Keywords: Literature, Holocaust, Maus, Spiegelman, Displacement.


RESUMEN

Maus, graphic novel de autoría de Art Spiegelman, obtuvo gran éxito de público e crítica, y fue agraciado con el Premio Pulitzer de literatura en 1992, a pesar de tratarse de la historia de un judío sobreviviente de los campos de concentración. Además de este tema tan sorprendente e inclusive inusitado, Spiegelman opta por representar sus personajes como animales y toma como representación de los judíos la figura del ratón, la misma imagen que la propaganda nazista utilizó para asociar los judíos a la idea de suciedad, residuo o plaga a ser exterminada. En este artículo pretendemos presentar los diversos desplazamientos, tanto formales como de contenido, que permitieron a Spiegelman construir esa narrativa impar.

Palabras clave: Literatura, Holocausto, Maus, Spiegelman, Desplazamiento.


 

 

(...) a literatura torna-se um lugar no qual a transgressão pode ser realizada ao infinito

(FOUCAULT, 2002, p. 246).

Em 1992, o prêmio Pulitzer de literatura foi dado a uma história em quadrinhos que trazia como tema os campos de concentração, mais precisamente o relato de um judeu sobrevivente de Auschwitz, o qual era representado – assim como todos os judeus – como um rato. Esse tema inusitado, bem como a originalidade artística da produção de Art Spiegelman, tornou Maus (2005 [1986-1991]) um sucesso de público e de crítica. Por meio dessa HQ, Spiegelman desfez definitivamente a associação entre histórias em quadrinhos e temas infantis trazendo à luz o movimento underground. A temática social dos underground comics girava em torno do movimento hippie e, portanto, trazia para a cena cultural os questionamentos sobre a guerra do Vietnam, direitos humanos, anarquismo, socialismo, liberação das mulheres e outros aspectos comuns à contra-cultura presente na segunda metade da década de 60. Apesar da inovação gráfica e temática, bem como o apelo ao público adulto, os underground comics não obtinham maior visibilidade tampouco conseguiam uma venda expressiva. A premiação de Maus possibilitou que o grande público tomasse conhecimento dessa nova vertente das HQs e que se iniciasse a discussão sobre a pertença dos quadrinhos ao universo da literatura ou das artes em geral.

Oriundo desse movimento – foi editor da revista Raw –, Spiegelman radicalizou a proposta underground e trouxe para o mundo dos quadrinhos “o trauma central do século XX” (SPIEGELMAN citado por LACAPRA, 1998, p. 140): os horrores de Auschwitz. O impulso para a escrita de Maus, no entanto, não se deveu a qualquer provocação política de um underground publisher. Muito pelo contrário: foi fruto da necessidade de Spiegelman de construir uma memória e uma narrativa pessoais, tanto mais subjetivas pelo fato desse autor ser filho de um casal sobrevivente dos campos de concentração. Por meio de um convite ao pai para contar o que viveu em Auschwitz, Spiegelman dá início à trajetória de Maus. Trata-se de uma graphic novel dividida em duas partes publicadas em períodos distintos: em 1986, Spiegelman lança Meu pai sangra história e, em 1991, E aqui meus problemas começaram. O episódio que abre o livro apresenta o legado paterno – a desconfiança em relação ao próximo – de um modo despretensiosamente impactante: após cair dos patins, Artie chega chorando em casa e diz ao pai que seus amigos o deixaram para trás. Nesse momento, seu pai o interrompe: “Amigos? Seus amigos? Se trancar eles em quarto sem comida por uma semana... aí ia ver o que é amigo!” (SPIEGELMAN, 2005, p. 6).

A herança paterna parece servir de alerta em relação à natureza humana, ameaçadoramente animal e predatória. O desenrolar de Maus, no entanto, não apresenta apenas o horror da perseguição aos judeus e dos campos de concentração; somam-se a isso momentos de calor humano e humor, mesmo que em sua vertente irônica. Essa dissonância presente na obra poderia ser considerada como uma ambivalência do autor em relação ao tema ou às memórias do pai, Vladek Spiegelman, mas pode – como pretendemos defender aqui – ser um dos vários deslocamentos que Spiegelman produz em Maus. Primeiros deslocamentos: o imaginário social.

Em qual gênero incluir Maus? Duas polêmicas, ao menos, foram geradas pela HQ escrita por Spiegelman: a premiação no Pulitzer de literatura, que ganhou o acréscimo ‘especial’, e a colocação de Maus na lista dos livros de ficção mais vendidos do The New York Times Book Review. Ora, percebe-se claramente que o que está em jogo em ambas as situações é justamente a definição da obra de Spiegelman. Vejamos alguns comentários.

Lawrence L. Langer em sua crítica para The New York Times afirma que Maus II “é uma forma séria de literatura pictórica, mantendo e mesmo intensificando a força do primeiro volume. Resiste a rótulos e definições”. Na opinião de Miles Orvell, “parte biografia, parte autobiografia, parte história, parte romance, Maus rompe gêneros; (...) Para Adam Gopnik, “Maus não é um ato de invenção, mas de restauração. E redescobrindo as possibilidades sérias e mesmo trágicas dos quadrinhos e do cartoon, Spiegelman encontrou outro modo de fazer o que todos os artistas que tomaram o holocausto como tema tentaram (...)

Essas referências deram somente uma idéia parcial de Spiegelman como artista, escritor, cartunista, romancista, historiador, biógrafo, autobiógrafo, etnógrafo, testemunha secundária, memory-worker, modernista, pós-modernista, entrevistador e entrevistado, e de Maus como arte documental, literatura pictórica, quadrinhos ou cartoon romanceado, graphic novel, história oral, biografia, autobiografia, etnografia, veículo de testemunho e modo de recordação (LACAPRA, 1998. P.143-5)1.

Essa indefinição quanto ao gênero de Maus – que persiste até os dias atuais – produziu um episódio quase cômico: após ver sua obra na lista dos livros de ficção mais vendidos, Spiegelman enviou uma carta ao The New York Times Book Review agradecendo o reconhecimento dado a Maus. Em seguida, diz ter ficado surpreso quando percebeu que este livro havia aparecido na categoria de ficção.

Se sua lista fosse dividida entre literatura e não-literatura, eu poderia delicadamente aceitar o elogio, mas considerar como ‘ficção’ indica que o trabalho não é factual (...) Estremeço em pensar como David Duke – se ele pôde ler – reagiria ao ver um cuidadoso trabalho de pesquisa, baseado minuciosamente nas memórias de meu pai [quando estava] na Europa de Hitler e nos campos de morte, ser classificado como ficção. Sei que ao desenhar pessoas com cabeças de animais eu criei problemas de taxonomia. Seria possível acrescentar uma categoria especial “não-ficção/ratos” em sua lista? (SPIEGELMAN citado por LACAPRA, 1998, p. 145).

A ironia presente nessa carta não esconde o incômodo causado pela classificação do The New York Times Book Review. Maus não é uma obra de ficção, e, se o autor reage a essa definição, nem por isso consegue precisar sua criação. “Penso em comics como comix, misturar (to mix together) palavras e desenhos” (SPIEGELMAN citado por LACAPRA, 1998, p.145). O caráter verídico e testemunhal de seu livro não pode ser negado; o que pode ser problematizado é justamente a distinção entre ficção e não-ficção, que, em sua estreita definição, não permite uma localização adequada para Maus. Essa obra não se trata obviamente de uma tentativa de representação fiel ou imparcial das vivências de seu pai, mas de uma narrativa híbrida que agrega dados históricos, recordações paternas, pesquisa etnográfica e os comentários do autor, o qual está implicado diretamente na narrativa, perfazendo uma multiplicidade de enredos.

A obra estrutura-se em dois planos, que têm por suporte duas linhas temporais: grande parte da obra é constituída pela narração em primeira pessoa, enunciada por Vladek e protagonizada por ele e sua mulher – Anja –, dos acontecimentos vividos durante o nazismo. Essa fala é intercalada pela inserção do tempo presente centralizador da relação pai/filho. Entretecendo continuamente as linhas do relato, as vinhetas de uma narração interrompem o fluxo do outro plano, como ocorre no registro que lida com a oralidade (WALDMAN, inédito).

A essa multiplicidade de enredos somam-se suspensões formais: simultaneamente Spiegelman rompe a representação usual de gênero literário – o que implica a desconstrução de uma categoria classificatória “ficção/não-ficção” – e coloca em questão as próprias fronteiras da literatura. É esse aspecto que o adjetivo “especial” adicionado ao prêmio Pulitzer vem revelar: o termo acrescido faz supor que a premiação não contemplará uma obra literária, pelo menos em seu sentido tradicional, mas algo diferente, que perigosamente se aproxima das produções populares de entretenimento. Essas rupturas formais, que por si só produziriam mudanças internas na concepção dos comic books, ganharam amplitude, levando ao questionamento do imaginário social sobre literatura e quadrinhos.

 

Novos deslocamentos: identidade e representação

A primeira epígrafe de Maus é provocativa: “Sem dúvida, os judeus são uma raça, mas não são humanos”, frase pronunciada por ninguém menos que Adolf Hitler e que associamos à propaganda nazista que sistematicamente vinculava a imagem dos judeus àquela dos ratos. Spiegelman toma essa associação – e a epígrafe parece anunciar isso – para melhor subvertê-la: os judeus são ratos no desenho feito pelo autor, assim como os nazistas são gatos, os poloneses, porcos, os americanos, cães e os franceses, sapos. Diante do espanto e do incômodo do leitor, a história de Maus se desenrola. Os ratos judeus não estão associados ao longo de Maus com sujeira, dejeto, epidemias ou erradicação, como na propaganda nazista. Os personagens de Spiegelman possuem qualidades múltiplas, rompendo com o maniqueísmo presente na ideologia nazista, mas tendo a sutileza de não apresentar apenas as múltiplas qualidades positivas dos ratos judeus. Assim como qualquer ser humano, os ratos são bons e maus, mesquinhos, sovinas, ranzinzas, afetivos, cuidadosos etc.

O deslocamento imaginário produzido por Spiegelman ao utilizar personagens animais em sua história não deixou de causar incômodo, tanto pela apropriação do ideário nazista – a representação do judeu como rato – quanto pela suposta desumanização dos personagens, que, por serem representados como animais, reduziriam o impacto das práticas de extermínio e das atrocidades cometidas contra os judeus. Essa argumentação, no entanto, desconsidera que a desconstrução imaginária promovida por Maus tem o valor de subverter uma representação por meio de deslocamentos sucessivos. Obviamente, isso não se faz de forma tranqüila, e o próprio Artie diz em um de seus quadros:

É muito esquisito tentar reconstruir uma realidade pior do que os meus sonhos mais pavorosos. E ainda por cima em quadrinhos! Acho que estou dando um passo maior do que as pernas. Talvez seja melhor deixar pra lá. Tanta coisa eu nunca vou conseguir entender nem visualizar. É que a realidade é complexa demais para ser contada em quadrinhos... Precisa deixar coisas de fora, simplificar (SPIEGELMAN , 2005, p. 176).

Essa simplificação não compreende, no entanto, uma redução dos fatos ou uma narrativa linear. O que vemos ao longo de Maus é, como já dissemos, uma narrativa em dois planos que inclui duas linhas temporais, dando consistência aos personagens por meio da apresentação de contradições e conflitos e – aspecto pouco citado – a inclusão de fotografias, desenhos explicativos, mapas e outras referências precisas, que visam sedimentar o caráter factual das memórias de Vladek. Soma-se a isso a apresentação de diálogos e situações exteriores à cena, como o quadrinho que retrata Artie desenhando Maus dentro de Maus ou as dúvidas quanto a que aparência animal atribuir à sua esposa, uma francesa convertida ao judaísmo, que fazem de Maus uma obra que se desdobra e cuja duplicação do narrador/personagem torna-se extremamente interessante ao possibilitar um questionamento das identidades. Antes de nos determos nesse novo deslocamento, cabe destacar os aspectos políticos que Spiegelman traz à tona em sua “fábula às avessas” (WALDMAN, inédito). Duas leituras críticas foram derivadas da opção de Spiegelman em desenhar animais em sua graphic novel.

Por um lado, é bastante injusto para os animais (propriamente ditos) apresentá-los sob a aparência de estereótipos humanos. Um porco, por exemplo, é um porco, com todas as conotações do que é ser um porco (...). Por outro lado, é também duvidoso representar nações ou povos inteiros nos termos de caricaturas animais unidimensionais e estereótipos “bestiais” (LACAPRA, 1998, p.160-1).

O que parece, no entanto, guiar a opção de Spiegelman é menos uma representação efetiva dos diversos povos do que “uma correspondência paradoxal entre caricatura e um referente irrepresentável ou irreal” (BUHLE citado por LACAPRA, 1998, p. 144). Diante da inacessibilidade do passado e de suas imagens, Spiegelman recorre a uma licença visual, assim como se poderia falar de uma licença poética, sem se afastar do caráter memorial de sua narrativa. Ora, é esse mesmo ponto que parece ter gerado o desconforto de Spiegelman diante da classificação do The New York Times Book Review de Maus como uma obra de ficção. As licenças visuais e narrativas que este autor criou não implicam afastamento da realidade factual. Ao se considerar Maus uma obra de ficção pode-se facilmente cair na crença de que o holocausto nunca existiu – tese dos revisionistas – ou se supor que se trata de “uma incrível estória sobre ratos, uma invenção na qual dificilmente se poderia acreditar” (LACAPRA, 1998, p.152). Ambas as versões são prenhes de efeitos políticos e partem de um equívoco comum: considerar que os quadrinhos necessariamente não representam uma realidade.

A indefinição quanto ao gênero literário e a opção pelo uso de imagens para abordar o tema do holocausto fez de Maus uma obra única. “De fato, ao antropomorfizar os eventos, o horror foi personalizado de um modo dificilmente realizável se os personagens tivessem sido representados na forma humana” (SABIN, 2005, p. 182). Se, politicamente, a opção de Spiegelman gerou desconforto, sendo o autor acusado de reduzir o impacto do horror da Shoah e de naturalizar a crueldade nazista por meio do jogo de gato e rato – em que o gato necessariamente caça o rato –, o alcance de sua obra, conseqüência do meio utilizado e do público leitor, fez com que o tema do holocausto fosse novamente discutido e mesmo introduzido nos Estados Unidos.

O uso de quadrinhos como meio de expressão e tematização do holocausto implicou também para Spiegelman o deslocamento da função da imagem, a qual usualmente é condutora dos enredos nos comics.

Eu não queria pessoas muito interessadas nos desenhos. Eu queria que eles [os desenhos] estivessem lá, mas a história opera em outro lugar. Opera em algum lugar entre as palavras e a idéia que está na figura e no movimento entre as figuras, que é a essência do que acontece em um comic (SPIEGELMAN citado por LACAPRA, 1998, p. 148).

Ao colocar as palavras como condutoras de Maus – “a comic book driven by the word” (SPIEGELMAN citado por WALDMAN, inédito) –, Spiegelman destaca a narrativa e, conseqüentemente, o caráter memorial da obra. Os elementos incluídos – fotos, mapas, representações precisas de lugares e objetos – parecem buscar uma sedimentação da narrativa, como se fosse possível dar maior credibilidade às palavras de Vladek por meio desses expedientes. O que se produz, mesmo a despeito da intenção do autor, é um deslocamento imaginário que torna o evento histórico inalcançável. Isso não implica, cabe destacar que Spiegelman tenha falhado em seu propósito, mas muito pelo contrário: que ele pôde apresentar o caráter traumático e indizível/irrepresentável do vivido por seu pai e por ele mesmo, na condição de filho de um casal de judeus sobreviventes de Auschwitz. Esse aspecto nos parece interessante de problematizar por meio de uma questão aparentemente simples: de quem é a memória que guia Maus?

Poderíamos apressadamente afirmar que se trata da memória de Vladek Spiegelman, que apresenta ao leitor o momento em que conheceu Anja, mãe de Artie, os percalços durante a ascensão nazista e o período nos campos de concentração. No entanto, olhando mais atentamente, vemos que simultaneamente se faz a construção da autobiografia de Art Spigelman, a qual aparece nos intervalos da história narrada por Vladek e se desenrola no tempo presente. Encontramos aí as duas linhas temporais que guiam Maus: o passado de Vladek e o presente de Art Spiegelman, o qual inclui sua relação com Vladek e com a produção de Maus.

Justamente no plano movediço das intercalações projeta-se a autobiografia de Artie. Ela busca o seu lugar na rede de relatos do passado de seus pais, da família dos pais e do irmão morto, mas faz-se principalmente na interação presente com o pai e com a mulher – Françoise – e com outras personagens esporádicas (WALDMAN, inédito).

A possibilidade de uma autobiografia para Spiegelman ou, mais precisamente, a busca por um sentido para a própria vida e sofrimento se faz por meio de Vladek, de suas memórias e palavras que, no entanto, são insuficientes. Maus produz um estranho e interessante efeito de identificação e distanciamento do leitor em relação ao texto, mas também do próprio personagem. Art Spiegelman é Artie, filho de Anja e Vladek, mas é também Art, esposo de Françoise e Spiegelman, o cartunista de sucesso. Esta indefinição de Spiegelman em relação a si mesmo se dá a ver de maneiras diversas: sua presença no livro como humano, como rato e com uma máscara de rato – três situações distintas que parecem apontar para diferentes posicionamentos subjetivos que não se superpõem ou resolvem ao longo do livro. A identidade de Art Spiegelman é efetivamente fragmentada.

Na maior parte de Maus, Spiegelman é desenhado como rato, assim como todos os judeus. Após a morte de seu pai, surge portando uma máscara de rato que não torna possível saber o que há por baixo – uma face humana ou outro animal, ainda que seja um rato. Spiegelman aparece como humano apenas em Prisioneiro do Planeta Inferno: história de um caso, livro dentro do livro que, tendo sido produzido anteriormente, cai nas mãos de Vladek, gerando mal-estar por se tratar de um underground comic que diz do sentimento de culpa de Spiegelman diante do suicídio da mãe. O labirinto de representações e relatos mais uma vez marca a dificuldade de uma narrativa linear. Diante do horror dos campos de concentração e da culpa, tristeza e vergonha dos sobreviventes, não há assunção narrativa possível. A fragmentação se faz nas identidades.

A representação visual de Vladek não oscila durante o desenrolar de Maus, mas a construção do personagem traz características interessantes de serem pensadas. Vladek não é o tradicional personagem que ganha a simpatia do leitor ou que produz identificação. Sua construção, como personagem, traz elementos discordantes que fazem, em um quadrinho, com que Spiegelman diga: “É uma coisa que me preocupa no livro que estou escrevendo sobre ele... De certo modo, ele parece a caricatura racista do judeu avarento” (SPIEGELMAN, 2005, p. 133). Vladek não é o herói-sobrevivente; de certa forma, ele não sobreviveu e passou os anos seguintes de sua vida repetindo o que havia aprendido em Auschwitz: economizar objetos aparentemente inúteis, não deixar restos de comida no prato, desconfiar de todos, enganar, mentir... Seu “aprendizado” se faz presente no convívio com o filho, Artie, em uma relação atormentada na qual as acusações e expectativas se sobrepõem.

Por sua vez, Spiegelman se distancia propositadamente de seu personagem, o qual tem diversas representações visuais e mantém as oscilações que também estavam presentes na caracterização de Vladek. De certa forma, poderíamos dizer que Spiegelman e o personagem Artie não confluem na mesma direção; há entre eles uma complexa relação de aproximação e distanciamento que produz no leitor uma dificuldade identificatória. Se tomarmos como exemplo a máscara portada por Spiegelman na entrevista na televisão, podemos considerar o desconforto de sua presença e identidade em tal situação.

— Diga aos telespectadores qual é a mensagem de seu livro!

— N-nunca quis resumir o livro a uma mensagem. Não queria convencer ninguém de coisa nenhuma... (...) Ufa! Foram embora. Às vezes não me sinto um adulto responsável (SPIEGELMAN, 2005, p. 202).

Na análise, tanto Spiegelman quanto o analista portam máscaras de rato, não sendo o desconforto o que parece estar em jogo, mas o papel sempre artificial da identidade de cada um dos presentes. Em entrevista, Spiegelman diz que seu analista não apenas porta uma máscara de rato, mas a máscara de seu pai, como um modo de indicar os deslocamentos presentes na relação transferencial. Apenas nestas situações – análise e entrevista na televisão – Spiegelman usa a máscara de rato. Nos outros momentos de Maus, ele é um rato. Essa representação animal destoa do aparecimento de animais reais que fazem parte da obra, sejam os cães e gatos do analista, os cães dos nazistas em suas atividades de caça aos judeus ou os ratos encontrados nos esconderijos. Os animais reais não são antropomorfizados, não são uma metáfora do humano.

Os deslocamentos sucessivos da imagem de Spiegelman parecem fazer parte de uma configuração mais ampla, na qual o acesso do leitor aos personagens e eventos é sempre mediado. Os deslocamentos de pontos de vista se fazem por meio de estratégias variadas, seja a dificuldade de acompanhar as memórias de Vladek – que aparecem de forma fragmentada –, seja o meio utilizado – em que imagens e palavras confluem e se distanciam, entre balões e paratextos –, seja, por fim, o desenrolar atual dessas memórias e relatos. Desse modo não se torna simples responder a quem pertencem as memórias de Maus. É Vladek quem conta o ocorrido e dá sua interpretação dos fatos políticos, sociais e familiares que vivencia, mas é Spiegelman quem coloca tal narrativa em quadrinhos e insere os momentos de tensão da vida atual, dando voz ao pai e corpo à sua memória. Após ser lançado como graphic novel e receber a proposta de tradução de Maus para quinze línguas diferentes, bem como quatro convites para transformar a obra em filme ou especial para televisão, Spiegelman lançou uma nova edição de Maus em CD-ROM na qual se podia ouvir diretamente a voz de Vladek. “Sua voz fornece algo de semelhante a uma fotografia. Isso não foi filtrado por seu filho; está bem aí” (SPIEGELMAN citado por LACAPRA, 1998, p.156).

A preocupação de Spiegelman em dar voz ao pai, em deixar que ele fale diretamente, está presente desde o momento primeiro, quando faz o pedido para que Vladek conte sua história, ao qual ele responde: “Precisar de muitos livros, minha vida. Ninguém quer ouvir esses histórias” (SPIEGELMAN, 2005, p. 14). É Spiegelman quem percebe a importância e insiste na publicação das memórias do pai, tanto mais porque sua mãe havia se suicidado e não podia contar o que viveu. Mais do que uma narrativa histórica, o que estava em jogo, mesmo que a contragosto, era o presente e o cotidiano daquela família, na qual todos – inclusive Spiegelman – eram sobreviventes. Se o autor não vivenciou o que se passou nos campos de concentração, nem por isso ficou imune às suas conseqüências. O “trauma central do século XX” foi também o trauma fundador, que – mesmo que imaginariamente – pareceu impedir a construção de uma identidade e um sentido para o sofrimento dos filhos de sobreviventes judeus, e Spiegelman era um deles. “Artie apresenta uma preocupação insistente em registrar a história de seu pai, a qual se encontra perigosamente próxima de se tornar a narrativa condutora de sua própria vida” (LACAPRA, 1998, p. 177). Em sua busca por um sentido para o que ocorreu, o que inclui o suicídio da mãe, Spiegelman talvez tenha podido situar seu próprio sofrimento e arcar com a herança paterna fazendo da voz do pai sua própria voz.

Estaríamos sendo apressados se concluíssemos dessa forma, pois se percebe em Maus um cuidado com a apresentação dos horrores do holocausto, que não cede à tentação fácil de construir um único ponto de vista, uma única voz narrativa. Como uma “fábula às avessas”, ou, dito de forma mais precisa, como uma não-fábula, Maus não tem uma moral que o sustente. A falta de unidade narrativa – no sentido de um único olhar condutor da trama – se mostra pelos diversos deslocamentos produzidos pelo autor, pelos personagens e pelas imagens; bem como deslocamentos nos personagens, nas imagens e nas narrativas. A ausência de um sentido último se dá a ver tanto na evitação de representação de um sofrimento edificante ou dignificante para os sobreviventes quanto na recusa em apresentar uma proposta política qualquer2. Não há mensagem em Maus, assim como Spiegelman não substitui a voz do pai por sua própria. Há, lado a lado, olhares e narrativas que não se somam e a convocação para que o leitor constitua sua própria versão da trama.

 

Ponto de parada

Após realizar deslocamentos em tantas categorias, caberia tentar finalizar o presente artigo retomando a combinação de horror e humor que Spiegelman produz em Maus. Este último deslocamento introduz um caráter disruptivo de difícil apreensão. O humor presente em Maus mostra-se saturado de amargor, aproximando-se mais dos comentários irônicos e que não buscam qualquer tipo de harmonia ou conciliação. O máximo que conseguem produzir no leitor é um leve sorriso que rapidamente se esvai diante do horror das cenas e situações narradas.

Por sua vez, o horror evita o apelo fácil das imagens chocantes. As cenas mais vívidas são narradas, mas não visualizadas. Vladek narra o assassinato de crianças judias, mas Spiegelman representa a cena parcialmente, dando ao leitor apenas a visão de um gato nazista segurando a perna de um criança contra a parede. Isso não reduz o horror, mas o desloca para a imaginação do leitor, que complementa a cena. Mais uma vez é o leitor que é incluído, sendo ele o elemento que pode deter – ao construir um sentido próprio – os vários deslocamentos produzidos. A narrativa de Spiegelman é permeada por silêncios, por não-ditos que são convidativos para a imaginação do leitor, mas que se mostram simultaneamente vãos e fecundos. Após cada quadrinho, o sentido se esvai e o leitor é lançado mais adiante.

Em sessão de análise, Spiegelman traz esse tema à tona: “Samuel Beckett disse: ‘Toda palavra é como uma mácula desnecessária no silêncio e no nada’. [Quadrinho sem palavras]. Por outro lado, ele falou isso” (SPIEGELMAN, 2005, p. 205). É o silêncio que parece mover o livro, convidando ou exigindo novas palavras, deslocandose para mais além. Ao representar o horror dos campos de concentração por meio de uma graphic novel que usa animais como personagens, Spiegelman produz algo grandioso: insere humanidade por meio de um deslocamento formal e de conteúdo, inclui traços individualizados em uma tragédia coletiva e captura o leitor, convidando-o a se posicionar. Eis que de Auschwitz surge Mauschwitz como um salto por cima do roteiro...

 

Bibliografia

FOUCAULT, M. Ditos e Escritos I - Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense, 2002.         [ Links ]

LA CAPRA, D. Twas the Night before Christmas: Art Spiegelman’s Muas in History and Memory after Auschwitz. Ithaca: Cornell University Press, 1998.

SABIN, R. Comics, Comix & Graphic Novels: a history of comic art. New York: Phaidon, 2005.         [ Links ]

SPIEGELMAN, A. Maus: a história de um sobrevivente. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.        [ Links ]

WALDMAN, B. Sobre gatos e ratos. Autobiografia e biografia - inédito.        [ Links ]

 

Endereço para correspondência
E-mail: suely.aires@uol.com.br

Recebido em 19/07/2006
Aceito em 05/09/2006

 

 

* Texto dedicado à Cláudia de Lemos
**
Doutoranda em filosofia (IFCH-UNICAMP), membro do GT de Filosofia e Psicanálise da ANPOF, membro do grupo de pesquisa SEMASOMa, vinculado ao curso de pósgraduação em Lingüística (IEL/UNICAMP)
1Todas as traduções de LaCapra, 1998, e Sabin, 2005, são de minha autoria
2 Nesse sentido é interessante acompanhar os quadrinhos que apresentam o sucesso comercial de Maus e as perguntas feitas em um programa de entrevistas. Fica claro que Spiegelman não se propunha uma mensagem unívoca, tampouco havia pensado a respeito do impacto de sua obra em outros países, mais notadamente a Alemanha. Por si só, o efeito da publicação de Maus nos EUA já colocava seu autor em situações delicadas e fazia apelo a um posicionamento claramente pessoal (SPIEGELMAN, 2005, p. 201-3).

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