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Imaginário

versión impresa ISSN 1413-666X

Imaginario v.13 n.14 São Paulo jun. 2007

 

 

 

Regiões culturais no Rio Grande do Sul: estudo comparativo

 

Cultural regions in Rio Grande do Sul: comparative studys

 

Regiones culturales en Rio Grande do Sul: estudio comparativo

 

Ilva Maria Boniatti*

Universidade de Caxias do Sul (UCS)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pensar a região como um “constructo” teórico, fundado em semelhanças e diferenças com outras áreas culturais, implica supor uma mescla, ou seja, a fusão de matérias puras que buscam a heterogeneidade com vistas à realidade cultural. Segundo Ricardo Kaliman, esta só se deixa conhecer entrelaçada à suposta homogeneidade paradigmática do conceito de “cultura imaginada” (Benedict Anderson) que reforça ainda mais a “cultura vivida” na América Latina. Assim, pretendo examinar as diferenças regionais formadas a partir de diferentes substratos culturais somados às aquisições posteriores, que alteram substancialmente a fisionomia cultural do Rio Grande do Sul. O estado passa a ser mapeado em novas sub-regiões a partir da produção literária local. O trabalho obriga a ampliar o eixo de abrangência comparatista para que a visada interdisciplinar se aproprie de áreas disciplinares limítrofes, como a História e a Sociologia, ultrapassando as fronteiras políticas e lingüísticas e formando espécies de “subconjuntos” no universo literário mundial, representando a emanação e a materialização da dominação política e lingüística, como afirma Pascale Casanova.

Palavras-chave: Região cultural, Literatura comparada, Literatura brasileira.


ABSTRACT

Thinking of the region as a theoretical “construct”, founded on similarities and differences with other cultural areas, implies in the assumption of a blend, that means, the fusion of pure matters seeking the heterogeneity for the sake of cultural reality. According to Ricardo Kaliman, this latter can only be known when interwoven with the presumed paradigmatic homogeneity of the concept of “imagined culture” (Benedict Anderson), which reinforces even more the “culture lived” in Latin America. Thus, I intend to examine regional differences formed from different cultural substrates added to later acquisitions, which substantially change the cultural physiognomy of Rio Grande do Sul. The state starts to be mapped into new sub-regions from their local literary production. The study forces to widen the range for comparison so that the aimed interdisciplinarity can take over adjacent disciplinary areas, such as History and Sociology, passing beyond political and linguistic frontiers, and forming kinds of “subgroups” in the worldwide literary universe, representing the emanation and materialization of political and linguistic dominance, as stated by Pascale Casanova.

Keywords: Cultural region, Compared literature, Brazilian literature.


RESUMEN

Pensar la región como un “constructo” teórico, fundado en semejanzas diferencias con otras áreas culturales, implica suponer una mezcla, o sea, la fusión de materias puras que buscan la heterogeneidad aspirando a la realidad cultural. Según Ricardo Kaliman, esta sólo se da a conocer entrelazada a la supuesta homogeneidad paradigmática del concepto de “cultura imaginada” (Benedict Anderson) que refuerza todavía más la “cultura vivida” en América Latina. Así, pretendo examinar las diferencias regionales formadas a partir de diferentes substratos culturales sumados a las adquisiciones posteriores, que alteran substancialmente la fisonomía cultural del estado Rio Grande do Sul. El estado pasa a ser identificado en nuevas sub-regiones a partir de la producción literaria local. El trabajo obliga a aumentar la amplitud comparatista para que el objetivo interdisciplinar se apropie de áreas disciplinares limítrofes, como Historia y Sociología, ultrapasando las fronteras políticas y lingüísticas y formando especies de “subconjuntos” en el universo literario mundial, representando el surgimiento y la materialización de la dominación política y lingüística, como afirma Pascale Casanova.

Palabras clave: Región cultural, Literatura comparada, Literatura brasileña.


 

 

O trabalho “Regiões Culturais na Literatura do Rio Grande do Sul: estudo comparativo”, encontra-se em desenvolvimento, como pesquisa que venho realizando na Universidade de Caxias do Sul. O projeto tem por objeto os textos narrativos de escritores do Rio Grande do Sul, lidos com a finalidade de definir e mapear as subregiões culturais que compõem a cultura literária do Estado. Pretende-se, para tanto, descrever “região cultural” a partir de um posicionamento transdisciplinar, que congregue disciplinas, tais como a história local, a sociologia, a lingüística, a antropologia, os estudos da cultura popular e os estudos da cultura e da literatura local, articuladas pela literatura comparada.

A importância de recuperar os conceitos de região, sub-região cultural, locais geoculturais, cultura, cultura híbrida resulta do interesse em mapear as sub-regiões culturais que se formaram no século XX, o que leva a ampliar as reflexões sobre o assunto.

Paulo César da Costa Gomes, ao estudar A condição urbana: ensaios de geopolítica da cidade, afirma que a denominação região remonta aos tempos do Império Romano, quando a palavra regione era utilizada para designar áreas, independentes ou não, que estavam subordinadas ao Império. Gomes afirma também que outros conceitos de natureza espacial passaram a ser utilizados na mesma época como os conceitos de espaço (spatium) e o de província (provincere) (GOMES, 2002, p. 49-76).

Num determinado espaço, visto como “contínuo” ou como “intervalo”, no qual estão dispostos os corpos seguindo certa ordem, existiam as províncias, como “áreas atribuídas aos controles daqueles que a haviam submetido à ordem hegemônica romana”. A partir desse entendimento, o império Romano passa a ser representado por mapas nos quais as diversas regiões “representam a extensão espacial do poder central hegemônico”, mas, no entanto, nelas “os governadores locais dispunham de alguma autonomia (...), mas deviam obediência e impostos à cidade de Roma” (GOMES, 2002, p. 49-76).

A centralização do poder, que resulta do surgimento do Estado moderno na Europa, provoca o resgate do problema político-regional da manutenção do poder que emana de um centro, muitas vezes distante de suas periferias, nas diversas regiões que formam o território de um determinado Estado. Ou seja, ainda segundo Gomes, a questão é a mesma que deu origem ao conceito de região na Antiguidade Clássica, e se refere à “relação entre centralização, uniformização administrativa e a diversidade espacial, diversidade física, cultural, econômica e política, sobre a qual esse poder centralizado deve ser exercido”.

Recentemente, o historiador Tau Golin publicou o livro intitulado A Fronteira, em que comenta o fato de que a região, “entendida como espaço social construído historicamente”, é local de polêmica. Ao ser parte de um todo, as regiões recortam seus próprios limites, o que as transformam em “subespaços nacionais (...) mais ou menos integrados, ou relativamente isolados, à dinâmica dos seus países” (GOLIN, 2002, p. 52). Não obstante, prevalece a idéia de que a região consiste numa particularização dos locais e sua individuação. Para desenvolver essa idéia, ele cita George Zarur quando afirma:

a apropriação socialmente majoritária entende que esta parte – a região – pertence, com maior ou menor autonomia, ao todo. De qualquer modo, região é vista como alguma coisa reconhecível em sua especificidade, em um território de contornos senão precisos ao menos suficiente claros e que abriga características culturais definidas. A região tende, pois, nesta corrente do imaginário, a ser visto como fixo, duradouro – ou até permanente –, que se distingue comparativamente de outras regiões, do conjunto de um país e, mesmo, de qualquer outra região de qualquer outro país (ZARUR, 2000, p. 53).

O pesquisador argentino Ricardo Kaliman, no ensaio La palavra que produce regiones. El concepto de Región desde La teoria Literaria, aponta para o conceito de região como instrumento de produção de conhecimento, e a definição que se tem encontrado amplia o sentido usual da palavra “região”. Parece, assim, conveniente dizer que não existe uma circunscrição só de espaço, mas também de tempo. Essa noção está implícita na palavra “circunscripción”, eis que “la región no es el conjunto de realidades materiales contenidas dentro de determinados límites espacio-temporales, sino el acto mismo de poner esos límites, o más precisamente, el constructo-mental – o social” (KALIMAN, 1994, p. 2). Desse modo, é preciso pôr em relevo que as regiões não existem como tais no mundo empírico, senão como resultado da apreciação e organização dessas experiências nas subjetividades humanas, originadas em determinadas circunstâncias históricas e logo reproduzidas como qualquer outro componente cultural, por meio da socialização.

Conforme Kaliman, a literatura regional seria aquela produzida por autores que escrevem em certa região e falam dessa mesma região. Nessa definição, a concepção das relações entre espaço e literatura é destacada: o espaço de produção entendido como determinante de certas propriedades do texto e o espaço referido entendido como uma opção preestabelecida. Em última análise, Kaliman define liricamente região como “aquel espacio que puedo recorrer sin sentirme todavia um estraño” (KALIMAN, 1994, p. 14).

Embora a região possa abranger uma série de elementos que demonstram determinada identidade pessoal, isso não é suficiente para definir o conceito, pois mesmo que a concepção espacial de região inclua de maneira significativa um componente informativo baseado na experiência direta do sujeito, sua concepção cultural depende da informação obtida através do discurso.

Neste sentido, o “constructo” de região é propício para dar visibilidade aos processos ideológicos. A formação subjetiva de região em qualquer indivíduo surge das negociações entre as imagens que os discursos dominantes emitem e a informação que o indivíduo recebe por sua experiência pessoal. No caso do Rio Grande do Sul, pode-se entender, desse modo, a predominância, por muito tempo, da região da Campanha, como representativa da cultura do Estado. E possibilita pensar também que essa hegemonia vem sendo substituída por diversas regiões, que se diferenciam pela absorção de influxos de outras culturas.

Para se elaborar um conceito de região homogênea é necessário saber em que aspectos ela é homogênea, é necessário deixar claros seus limites, suas propriedades e sua estrutura. Considerando esses caracteres, vê-se que região homogênea é somente uma referência a um critério dado, em função dos interesses e necessidades de uma investigação determinada.

A formação do conceito de região, todavia, não pode ser baseada somente nesses critérios, pois há uma multiplicidade de variáveis que podem mudar ou até mesmo contrariar esse conceito.

Kaliman alerta para o fato de que a região não é um postulado e sim uma hipótese, hipótese que se refere à concepção espaço-temporal na qual se propõe a validade do critério. Kaliman formula, também, outro conceito de região, segundo o qual a concepção regional apoia determinações espaço-temporais. Nesse caso, a exigência de homogeneidade defronta-se com uma multiplicidade de regiões simultaneamente propostas, não necessariamente coincidentes, cada uma em constante modificação e nunca definitivamente comprovadas. Essa movimentação afeta os interesses das investigações se não houver uma imagem de divisão concreta do espaço. São, portanto, as regiões que determinam hipóteses, enriquecidas quando colocadas em relação com outros fatores sociais.

Sendo, no entanto, o objetivo deste trabalho situar a região como elemento definidor dos textos narrativos de escritores do Rio Grande do Sul, lidos com a finalidade de definir e mapear as sub-regiões culturais que compõem a cultura literária do Estado, interessa considerar inúmeras questões, tais como a relação entre autor e texto, a responsabilidade do autor pelo sentido e pela significação do texto e sua contribuição para a fixação de diferenças culturais. Desse empenho resultarão as sub-regiões culturais, num estado geográfico marcado por processos imigratórios.

Nesse sentido, o fundamento teórico que melhor dá conta do processo de transformação pelo qual passaram as culturas européias no contato com as culturas locais dos países colonizados é, sem dúvida, o da “transculturação narrativa”, formulado por Angel Rama.

O conceito, inicialmente proposto por Fernando Ortiz, sociólogo cubano (Ortiz propôs esse neologismo para explicar o impacto das trocas culturais e econômicas durante o empreendimento colonial. Procurava, dessa forma, substituir várias outras expressões, que, por sua carga etnocêntrica, seus sentidos morais, normativos e valorativos, teriam viciado a compreensão do fenômeno da chegada dos colonizadores na América), servia para descrever um processo no qual duas culturas, em situação de encontro ou confronto, resultam modificadas, dando origem a algo novo, original e independente. Ángel Rama, crítico uruguaio, na década de 1970 incorporou o termo aos estudos literários para explicar de que maneira formas da modernidade européia conseguiam adaptar-se à realidade latino-americana. A Rama interessou perceber como as regiões internas recebiam os influxos das mais modernizadas. Para ele, cumpriam-se dois processos transculturadores sucessivos:

(...) o que realiza, aproveitando-se de seus melhores recursos, a capital ou, sobretudo, o porto, já que é aqui que a pulsão externa ganha suas melhores batalhas, e o segundo, que é o que realiza a cultura regional interna, respondendo ao impacto da transculturação que lhe translada a capital. Esses dois processos, esquematicamente perfilados e distribuídos no espaço e no tempo, em muitos casos, se resolveram graças à migração, em direção às cidades principais de cada país, de muitos dos jovens escritores provincianos, mesmo que nascidos na capital. As soluções estéticas que nasceram nos grupos desses escritores mesclaram em várias doses os impulsos modernizadores e as tradições localistas (CANDIDO, 2001).

Para Rama, é o romance o gênero que melhor possibilita, graças à sua liberdade formal e a seus recursos lingüísticos, a invenção de uma linguagem que recupera e incorpora formas populares ao discurso literário. Foram os narradores que encontraram as melhores soluções para trabalhar, no plano estético, a tensão entre universalismo e regionalismo própria dos países de extração colonial. O conceito de transculturação, dessa maneira, aplicado à análise literária, constituirá a base de tal reflexão sobre a literatura da América Latina.

Segundo Rama, nas obras literárias, o processo transculturador se realiza em três níveis diversos e complementares: o da língua, o da estruturação narrativa e o da cosmovisão. A utilização inventiva da linguagem, por intermédio do resgate de falas e modos de expressão regional ou local, a incorporação do imaginário popular, de formas narrativas e temas próprios, o abandono do discurso lógico-racional em favor da incorporação de uma nova visão mítica – todas essas são operações transculturadoras que, articuladas pelo romancista, resultariam numa síntese nova, superando os impasses da condição de países pós-coloniais.

Na pesquisa em desenvolvimento, o processo de transculturação narrativa e os estudos da recepção servem de fundamento teórico para a composição do “corpus”. Num primeiro momento, cabe registrar que se quer desconstruir o conceito homogeneizador de região, que identificava a cultura sul-rio-grandense com a cultura da campanha. Assim, estão sendo propostos outros conceitos, a partir das diferenciações ocorridas durante o século XX, configurando novas sub-regiões culturais no Estado, cada uma delas representada por grupos de escritores. Esse mapeamento provisório aponta, no momento, para a existência de regiões decorrentes do influxo de diferentes culturas, tais como a região de colonização alemã, italiana, judaica, missioneira, fronteiriça etc. Como se pretende examinar durante a pesquisa, a diversidade das regiões culturais não está apenas fortemente registrada, mas também criada na literatura.

 

Bibliografia

CANDIDO, A. Uma Visão Latino-Americana. São Paulo: EDUSP, 2001. In: CHIAPPINI, L.; AGUIAR, F. de A. (Orgs.). Literatura e História na América Latina. São Paulo: EDUSP, 2001.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail: imboniat@terra.com.br

Recebido em 28/08/2006
Aceito em 04/10/2006

 

 

* Professora no Departamento de Letras da Universidade de Caxias do Sul (UCS); Professora no Programa de Pós-Graduação da Universidade de Caxias do Sul (UCS); Mestre em Teoria Literária (PUC-RGS); Doutora em Literatura Comparada pela Universidade de Limoges (França)

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