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versión impresa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.12 n.22 São Paulo jun. 2008
ARTIGOS
As condições epistemológicas do discurso sobre o inconsciente
Epistemological conditions of unconscious discourse
Helena Veloso*
Universidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMO
Este artigo aborda as condições epistemológicas do discurso sobre o inconsciente utilizando autores da epistemologia e da psicanálise. Indicamos a emergência e a trajetória do discurso científico para discutirmos as relações entre a psicanálise e a ciência. Perguntamonos se a episteme que Descartes inaugura pode ser a mesma em que se insere a psicanálise, se esta estaria subordinada às coordenadas da ciência moderna. Concluímos sustentando que as condições epistemológicas do discurso sobre o inconsciente devem ser consideradas outras que a da ciência moderna, reconhecidas como pertencentes a um modo de produção de conhecimento que se distingue do da ciência moderna por incluir o real em seu campo operatório, e esse modo de produção é o que caracteriza a ciência contemporânea.
Palavras-chave: Psicanálise; Inconsciente; Ciência; Modernidade; Contemporaneidade.
ABSTRACT
In order to address the epistemological conditions of unconscious discourse, we consider authors of the referred fields. We begin using the history of the emergency and evolution of the scientific discourse and later move to discussing the relationship between psychoanalysis and science. If Descartes’s episteme could be said to be that of psychoanalysis it means that the later could be thought in the coordinates of modern science. We concluded the work maintaining the idea that the epistemological conditions of the discourse on the unconscious should be considered others than those of modern science; i.e. recognized as belonging to anew mode of production of knowledge, as it includes the Real in its field of operation. This mode of production is what characterizes contemporary science.
Keywords: Psychoanalysis; Unconscious; Science; Modernity; Contemporarity.
I. Introdução
Este artigo tem como tema as condições epistemológicas do discurso sobre o inconsciente. Para abordá-lo começaremos por remontar à história da emergência e da trajetória do discurso científico. Daremos prosseguimento a essa tarefa problematizando as diversas maneiras de conceber as relações entre a Psicanálise e a ciência, e relacionando-as às falas dos autores Sigmund Freud e Jacques Lacan sobre o tema. Pretendemos demonstrar que a soma das falas de ambos os autores situam a psicanálise em um campo, externo ao da ciência moderna, por nós delimitado como sendo o do modelo contemporâneo de ciência.
II. A emergência do discurso científico
O termo “episteme” deriva da obra de Michel Foucault. Em seu livro Arqueologia do saber, esse autor define uma “episteme” como “uma visão do mundo, uma fatia de história comum a todos os conhecimentos (...) que imporia a cada um as mesmas normas e os mesmos postulados, um estágio geral da razão, uma certa estrutura de pensamento a que não saberiam escapar os homens de uma época” (Foucault, 1987, p. 217). Alexandre Koyré (1979), historiador da ciência, mostra-nos que o discurso científico emerge em ruptura com todo os modos de conceber e produzir conhecimentos que o antecede. Esse autor distingue a episteme antiga da moderna (que o discurso científico, ao emergir, inaugura) atribuindo à última o mérito de ter transformado nosso mundo, até então fechado, em um universo infinito. Trata-se, segundo Koyré, da passagem de um estágio da razão em que se concebe o mundo como passível de ser totalmente recoberto pelo campo do conhecimento a um outro estágio em que o universo passa a ser pensado como irredutível a esse campo.
Johannes Kepler, Galileu Galilei e Isaac Newton são os autores costumeiramente situados, no campo fisico-matemático, como estando na origem da emergência do paradigma cientificista (Freire, 1997). Gottfried Leibniz e Immanuel Kant são os mais constantemente apresentados como os que, no campo da Filosofia, participaram do advento dessa forma saber (Hryniewcz, 1970). Todavia, é René Descartes, físico-matemático e também filósofo, o autor usualmente citado com maior destaque. A esse autor costuma ser atribuído o mérito de ter inventado o próprio método que deu origem à emergência da ciência como saber antes inexistente, isto é, diferenciado dos demais. Descartes, como nos mostra Manoel Morente (1970), quando parte do pressuposto de que a razão quando bem empregada é capaz de conduzir ao conhecimento verdadeiro, inventando o método da dúvida, faz emergir a ciência como ideal de matematização do universo. Pois, como nos mostra o autor, o método que Descartes inventa, aquele que consiste em colocar em dúvida tudo o que é confuso e obscuro para chegar a verdades claras e indubitáveis, é igualável à atividade de reduzir os fenômenos a fórmulas matemáticas. Os nomes citados são os listados pela maioria dos historiadores da ciência como sendo os que participaram da emergência do discurso científico no século XVII, os quais, com suas produções teóricas, contribuíram para a instituição de um universo doravante infinito.
Francisco Fernandes (1997) caracteriza a forma de conceber o conhecimento que precede o advento da ciência como a que se sustenta na crença de que a razão pode esgotar o real. Trata-se do entendimento do conhecimento como um sistema capaz de perfazer o real em sua totalidade. Nesse contexto, afirma Morente (1970), o conhecimento é entendido como um conjunto de conceitos que se ajustam perfeitamente ao real. Nele, entre o pensamento de quem pensa e o real, não se supõe discrepância, distanciamento; pelo contrário, supõe-se existir a mais completa adequação. A emergência do discurso científico representa um corte com esse modo de conceber o conhecimento que o entende como mero reprodutor, decalque, reflexo de objetos (supostos preexistentes ao ato de conhecer e comportando uma racionalidade intrínseca a ser apenas desvelada).
Jacques Alain Miller (1998) retrata bem esse corte mostrando que a episteme que o discurso científico inaugura difere da anterior pelo simples fato de reconhecer que seu objeto é construído. A constatação de que o real não pode ser apreendido a não ser a partir de nossas categorias do pensamento, e portanto a partir de tentativas de formulações, de representações (que não são mais o real mesmo), produziu a queda da crença no conhecimento como um sistema capaz de perfazer o real em sua totalidade. A partir desse reconhecimento, que corresponde à emergência da modernidade, passa-se a conceber o ato de conhecer menos como um decalque do real do que como uma atividade, que por meio do manuseio e da ordenação da experiência produz, cria e institui os objetos do conhecimento. Afirmaremos que é a partir do reconhecimento de que o real em si é impossível de se alcançar, que este está perdido desde sempre, que o ato de conhecer passa a ser pensado de maneira distinta de como era entendido na episteme antiga. O sistema de conhecimento passa a ser concebido como convivendo com um desconhecido fundamental, que nada mais é que esse real inalcançável em seu seio; esse real que o sistema do conhecimento é incapaz de recobrir. A razão não esgota o real e o universo antes finito, fechado, em uma suposta adequação entre o conhecido e o real, abre-se, passando a incluir o irredutível ao campo do conhecimento, tornando-se assim infinito.
III. A trajetória do discurso científico: do século XVII ao século XIX
Segundo Severo Hryniewicz (2001), o entrecruzamento entre as idéias dos autores que estão na origem da emergência do discurso científico com as de uma filosofia positivista e empirista (que tem em Auguste Comte seu maior representante) responde pela forma que a ciência toma no século XIX. Parafraseando Lacan (1966), é como se nesse século o discurso científico “tivesse [se] esquecido das peripécias das quais nasceu e se conformasse a um ideal de saber pleno, acabado”. Hryniewicz (2001) caracteriza a forma que a ciência toma, a partir desse momento, como racionalista (por supor que a razão é capaz de explicar tudo, que nada escapa ao domínio da razão), mecanicista (por conceber a natureza, seu objeto, como uma máquina regida por leis físico-químicas determinadas e previsíveis) e reducionista (por partir do pressuposto de que podemos chegar ao conhecimento do fenômeno como um todo, a partir da abordagem a suas partes). Por possuir essas características, tal modelo de cientificidade caracterizou-se por só poder admitir como objeto o fato positivo, material. Esse mesmo autor mostra-nos que o fato de esse modelo de cientificidade ter se tornado tão restrito, a ponto de absorver só a parte material da existência, ou ainda, os aspectos objetiváveis da experiência, fez que paulatinamente passasse a ser questionado.
IV. A crise do modelo de cientificidade a que se conformou o discurso científico do século XVII ao XIX ou a crise no seio do paradigma moderno
A crise paradigmática, no seio da episteme moderna, surge da constatação de que devido à rigidez de seu método, esse modelo de cientificidade passou a deixar de fora questões importantes para a humanidade. O que a ciência moderna deixa de fora? Os fenômenos complexos. Ylia Prygogine e Isabelle Stengers (1997), representantes do modelo contemporâneo de ciência, caracterizam-nos como aqueles que portam em sua estrutura um elemento imprevisível. Um testemunho do encontro com o imponderável imanente à constituição dos fenômenos complexos é o que viveu Edward Lorenz. Trata-se do meteorologista que construiu um programa supostamente capaz de prever o clima com total precisão. Ao jogar os dados nesse programa, Lorenz observou que este indicava um aspecto imponderável, constatando a impossibilidade de fazer-se essa previsão com total precisão. Os supercomputadores atuais continuam sem conseguir superar o obstáculo. Esse fenômeno ficou conhecido como atrator de Lorenz, e deu origem à teoria dos sistemas caóticos. Segundo essa teoria, a natureza seria composta de fatos imprevisíveis. Foi referindo-se à imprevisibilidade inerente à constituição dos fenômenos que Lorenz formulou a expressão “efeito borboleta”; também é dele, ainda se referindo a esse encontro com o imponderável, a famosa interrogação: “não poderá o bater de asas de uma borboleta em Tóquio provocar uma tempestade em Nova Iorque?” (Hyriniecwicz, 2001, p. 163).
Tendo se instalado a crise no seio da ciência, representantes do discurso científico, como Ylia Prygogine (físico belga, laureado com o Prêmio Nobel de Química em 1997 e um dos maiores críticos da forma que a ciência tomou no século XIX), além de outros saberes, como a Filosofia e a Psicanálise, tomaram como objeto de reflexão o próprio modo de produção de conhecimento relativo a esse modelo, fazendo emergir o que o autor denomina de um novo paradigma.
Em seu livro Para filosofar hoje, Hyriniecwicz (2001), após apresentar a história da emergência e da trajetória do discurso científico até o século XIX, termina o texto fazendo uma superposição a nosso ver infeliz entre paradigma cientificista e a configuração que a ciência toma no século XIX, passando a promover uma discussão sobre a morte do discurso científico e sobre os saberes que hoje ocupariam a posição de responder ao que a ciência deixa de fora, dentre eles, seu próprio, isto é, a Filosofia.
No desfecho de sua argumentação, esse autor iguala o paradigma cientificista à trajetória que o discurso científico faz dos séculos XVII ao XIX, e entende a crise paradigmática como o correlato da morte da ciência. Alguns autores, como Hryniewcz, igualam o discurso científico à forma que ele toma dos séculos XVII ao XIX, mas a maioria dos autores que se propõem a apresentar a história da emergência e trajetória desse discurso entendem-no como indo além da forma supracitada. É o caso de Jean Milner, em seu livro A obra clara (Milner, 1996), que situa a emergência do discurso científico no século XVII a partir do advento da física galileana, e mostra que a configuração que a ciência toma no século XIX é a que tem como objeto o fato positivo, uma porção do reino da natureza, e como método a quantificação do empírico. Esse método o autor descreve como uma atividade que visa a reduzir o sensível a números e medidas ou ao aparelho matemático em senso estrito. Milner diferencia o que chama de “ciência ideal” de “ideal de ciência”, entendendo pelo primeiro termo o modelo de cientificidade como vigorava no século XIX e início do século XX, e pelo segundo, o próprio ideal de reduzir o sensível a fórmulas matemáticas, isto é, o ideal de matematização do universo que caracteriza o empreendimento científico em sua emergência.
Milner dá seqüência a esse histórico mostrando que até o século XIX qualquer saber que se quisesse científico tinha que se tornar conforme à ciência ideal, isto é, tomar como objeto o fato positivo, um objeto material, e operar com esse método, que se caracteriza por reduzir o sensível a números e medidas, pois nesse contexto, isto é, no século XIX, matematizar torna-se sinônimo de quantificar e medir. Desde Galileu, as ciências tornaram-se conforme a essa definição, e os saberes que tomavam por objetos o humano ou o social tinham que proceder a adaptações. Esses saberes fizeram-no utilizando-se de diversas estratégias, como por exemplo, a de conservar o ideal de medida (utilizando-se principalmente de procedimentos estatísticos) ou abandonar seus objetos substituindo-os por um objeto ideal (passível de submissão ao método).
Como bem aponta Luís Figueiredo, no campo da Psicologia não faltam exemplos desse tipo de adaptação em que:
a especificidade do objeto (...) tende a ser desconhecida em favor de uma imitação mais ou menos bem-sucedida e convincente dos modelos de práticas vigentes nas ciências naturais (...) quando, seguindo esta linha evolutiva, a Psicologia ultrapassa o nível da imitação (...) caricata (...) para extinguir-se como ciência independente e afirmar-se solidamente como uma disciplina biológica (1997, p. 27).
Podemos citar o exemplo de John Watson, o fundador do Behaviorismo: no ensejo de tornar a Psicologia uma ciência ao estilo das ciências da natureza, abriu mão do seu objeto, o homem, e passou a tomar como objeto o organismo como estímulo-resposta, isto é, o material, o orgânico; um objeto passível de ser submetido às exigências do modelo de cientificidade ao qual o discurso científico se conforma a partir do século XIX.
No contexto da Psicanálise podemos citar como exemplo o próprio pai da Psicanálise, Sigmund Freud, e sua sedução por esse modelo de cientificidade. Em que consiste o Projeto para uma psicologia cientifica (Freud, 1950[1895]), a não ser um modo de encontrar uma base material, os neurônios, para as hipóteses que vinha desenvolvendo sobre o inconsciente, tornando-o um objeto passível de ser admitido pelo método científico vigente?
Certamente o trabalho de Freud inicia-se dessa forma, tomando depois uma rota completamente original, a que resulta na construção de um aparato mental que não se prende ao aparato anatômico.
Milner é um lingüista pertencente à tradição estruturalista em que se insere a lingüística moderna. Esse autor, em seu livro A obra clara (Milner, 1996), no ato de demonstrar que a obra de Jacques Lacan (pasmem) é muito clara (o que constitui o objetivo principal do livro), procede também à demonstração de que seu saber não trai as coordenadas do discurso científico; pelo contrário, cumpre-as, encontra-se subordinada a elas.
Milner mostra que a partir dos meados do século XX emerge no campo do discurso científico o que denomina de uma nova figura da ciência. Esta difere da anterior por uma dupla modificação que diz respeito tanto ao objeto quanto ao método. Essa nova figura da ciência passará a incluir objetos inéditos, como o humano e o social, e adotará um novo método: a literalização. A literalização caracteriza-se por operar não mais com a matemática stricto sensu, mas com um tipo de matemática denominada pelo autor de ampliada, que possibilita uma redução não mais quantitativa do sensível. O autor parte do pressuposto de que a matemática não se reduz ao aparelho matemático estritamente (números e medidas), mas corresponde à própria atividade de ordenar a experiência, instituindo os objetos do conhecimento.
Nesse contexto, o sensível não está reduzido a quantidades, “mas não deixa de estar dissipado (...) num quadro sobre o qual podemos determinar distâncias, proporções, simetrias; ela não está decerto expressa por uma notação de cálculo mas não deixa de ser captada por uma literalização” (Milner, 1996, p. 177). Após a exposição da história da emergência e trajetória do discurso científico até nossos dias, esse autor termina a apresentação fazendo a demonstração de que seu saber deve ser dito científico “o estruturalismo constitui, para além dos arroubos da moda, uma figura da ciência: um momento em que se pensou que a jurisdição moderna podia e deveria se estender bem além dos limites que durante muito tempo lhe haviam sido reconhecidos” (p. 75-77). Trata-se de um “galileísmo ampliado, portanto baseado numa matemática ampliada e extensivo a objetos inéditos” (p. 77).
V. Problematização da diversidade de modos de conceber as relações entre a Psicanálise e o discurso científico
É importante assinalar que Milner, ao fazer a demonstração de que o estruturalismo (a tradição a que pertence) cumpre as coordenadas do discurso científico, situa nesse mesmo ato a Psicanálise (na figura de Lacan, a quem apresenta como também pertencente à linhagem estruturalista) dentro dessas coordenadas.
Esse ponto de vista, no que diz respeito às relações entre a Psicanálise e o discurso científico, é muito próximo ao sustentado por Francisco Fernandes, que pensa a Psicanálise como incluída no campo da ciência moderna desde que situada em uma relação de exclusão com a forma que essa toma no século XIX. Para esse autor, a Psicanálise é “ciência (...) no sentido de que ela coloca no centro de sua formulação a noção de corte tal como aparece em Newton, mas não o é substantivamente (...), não existe quantificação em psicanálise (...) nem algoritmos e cálculo e a testagem estatística é um puro contra-senso” (2005, p. 225).
A tese de Milner é a de que a ciência moderna vai além dos limites a que se conforma o discurso científico no século XIX, mas que deve ser pensada como uma jurisdição que inclui tanto o formato que esse discurso toma no século XIX como a nova figura da ciência que emerge como desdobramento da anterior. Vale a pena demorarmos um pouco sobre o que diferencia as posições de Hryniewicz e de Milner.
Para Hryniewicz, o modo de conceber e produzir o conhecimento que emerge como desdobramento da forma que a ciência toma no século XIX difere tanto da anterior que justifica ser nomeado um campo outro que o científico, isto é, justifica ser dito um “novo paradigma”, um paradigma outro que o cientificista; por outro lado, para Milner esse novo modo de conceber e produzir conhecimento deve ser pensado como uma sub-região da ciência, ainda, dita moderna.
Ao abordarmos tão caloroso tema, não poderíamos deixar de evocar Bruno Latour devido à forma que pensa as relações entre a forma que a ciência assumiu até o século XIX e a que emergiu como desdobramento da anterior. Latour (1997) restringe o termo “moderno” ao formato que a ciência toma até o século XIX, diferenciando-o do da ciência de hoje. Ora, o modo de operar próprio à ciência, Fernandes (2005, p. 225) mostra-nos que não tem outro fundamento que o da “eficácia máxima da palavra”. Latour procede à demonstração de que essa maneira de operar da ciência hoje não pode ser dita outra que o da ciência tal como se configura no século XIX, apenas suposta outra. Seguindo essa linha de raciocínio, Latour (1997) despreza a forma que a ciência toma no século XIX (que se conforma ao ideal de saber absoluto), para em seguida passar a afirmar que “jamais fomos modernos”.
Ora, com essa afirmação não quer Latour sustentar que a ciência sempre se constituiu como um campo cujo modo de operar não reside em outro lugar que nessa eficácia da palavra? Palavra que jamais recobriu ou recobrirá o real, apesar das ilusões de completude de que se traveste o discurso científico no século XIX? Seguindo essa linha de raciocínio, a forma que a ciência toma no século XIX não poderia ser concebida, segundo esse autor, como outra que a de hoje, a contemporânea, desde que a consideremos livre das ilusões de acabamento e completude, as quais se manteve aprisionada até o início do século XIX. Como nos diz Koyré: “se assim é, se toda a perfeição e toda a fecundidade da matemática provêm do fato do espírito aí estabelecer e combinar relações e uma ordem entre os elementos (...), que seja nisso que consiste (...) a essência de qualquer ciência” (1986, p. 58).
Passemos agora a comparar as posições de Milner e Latour. Milner reconhece as mudanças existentes na trajetória do discurso científico. Tanto reconhece-as que chega a delimitar a emergência de uma nova figura da ciência que se diferenciaria (no que tange ao modo de produção do conhecimento) da que vigorava até o século XIX, mas entende-a como uma sub-região da ciência moderna. Isso significa que, para o autor, apesar das modificações que ocorrem na história do discurso científico, sempre fomos modernos, jamais deixamos de ser modernos. Já Latour, partindo do pressuposto de que os discursos operam a partir da palavra (a qual não recobre o real), despreza a conformação ao ideal de saber absoluto de que o discurso científico trasvestiu-se paulatinamente dos séculos XVII ao XIX, e passar a sustentar que jamais fomos modernos.
Vemos nas abordagens de Milner e de Latour uma leitura que despreza as especificidades entre os modos de conceber e de produzir conhecimento próprios aos séculos XIX e XX. Milner faz isso quando pensa o modelo de cientificidade que emerge no século XX como interno ao campo da ciência moderna, apesar de reconhecer que a nova figura, como a denomina, tal como emerge no século XX, apresenta um modo de pensar e produzir conhecimento que emerge em ruptura com a configuração que o discurso científico toma dos séculos XVII ao XIX, isto é, a que se caracteriza por ir se esquecendo paulatinamente das peripécias das quais nasceu, e conformar-se a um ideal de saber pleno, acabado. Quanto a Latour, esse autor praticamente foraclui (no sentido de tratá-la como se não tivesse existido) a ciência tal como se configura no século XIX, isto é, o destino que a ciência moderna toma.
Por mais sedutora que seja a posição de Latour para o psicanalista, preferimos levar em consideração a advertência de Thomas Kuhn (1982) de que a ciência não deve ser pensada como dotada de uma história regular, única, contínua, mas feita de cortes, rupturas, isto é, de revoluções que marcam a especificidade de cada época.
Levaremos a advertência de Kuhn em consideração, e concordaremos com Jurgen Habermas (1981) quando entende a forma de conceber e produzir o conhecimento que emerge no século XX como irredutível ao da ciência tal como se configura até o século XIX. Habermas iguala Freud a Descartes, mostrando que ambos não se submeteram aos modos de conceber e produzir o conhecimento vigentes em suas épocas, dando-se como trabalho o de revisar os fundamentos do próprio ato de conhecer, fazendo emergir novas formas de conceber e produzir conhecimento. Do ponto de vista de Habermas, é Freud quem inaugura o modo de conceber e produzir conhecimento que vemos emergir e ser paulatinamente formalizado na contemporaneidade.
Mas como elevar Freud à posição de Descartes, isto é, à condição de inaugurador de um novo modo de conceber e produzir conhecimento antes inexistente? Se o modo de conceber e produzir conhecimento próprios à ciência moderna não podem ser tributados à psicanálise, que modelo de cientificidade comporta a Psicanálise e o que a especifica?
VI. As relações entre a Psicanálise e o discurso científico segundo a soma das falas de Freud e de Lacan
A soma das falas de Freud e Lacan sobre o tema convergem para o lugar a que Habermas chega. Em um primeiro momento de sua obra, Freud tenta encaixar a Psicanálise no modelo de cientificidade das ciências da natureza, como uma psicologia cientifica: “a intenção é prover uma psicologia que seja ciência natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, tornando assim esses processos claros e livres de contradição” (1950[1895], p. 347). Em um segundo momento, vemo-lo abandonar essa trajetória e afirmar que o saber que inaugura não é subssumível a uma Weltanshangnuns, isto é, a um saber que se queira absoluto. Freud passa a subordinar seu saber a um modelo de cientificidade que formula como parcial, provisório, incompleto, e por isso sempre em revisão. Diz-nos Freud:
ouvimos com freqüência a afirmação de que as ciências devem ser estruturadas em conceitos básicos, claros e bem definidos. De fato nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata começa com tais definições (...) devem de início possuir certo grau de indefinição, não é possível evitar que se apliquem certas idéias abstratas ao material manipulado (...) são da natureza das convenções (1915, p. 137 grifos nossos).
O posicionamento de Lacan difere do de Freud, pois esse outro autor, já em um primeiro momento de sua teoria, situa a Psicanálise no campo da ciência mas em uma relação de exclusão com a ciência moderna. O modelo clássico de ciência que fundamenta as ciências da natureza, afirma desde a saída, não é o que comporta a Psicanálise. Sobre o campo da ciência em que se baseia a Psicanálise, afirma: “nós nos situamos em um campo distinto do das ciências naturais e do qual vocês sabem que não é de tudo chamá-lo o das ciências humanas (...) chamo de natural o campo da ciência em que não há ninguém que se sirva do significante para significar” (Lacan, 1955-56, p. 210).
Até esse momento vemos que o conjunto da falas de Freud e Lacan colocam a Psicanálise em uma relação de exclusão com a ciência, quando adjetivada de moderna. O ideal de saber pleno, acabado, a que se conformou a ciência moderna não comporta a forma de conceber e produzir conhecimento próprio à Psicanálise que Freud define como inacabado, em revisão, sempre acompanhado de um certo grau de indefinição.
Lacan, por sua vez, diferencia a Psicanálise da ciência moderna a partir da caracterização da segunda como um campo suposto não existir ninguém que se sirva do significante para significar, isto é, como um discurso que não se reconhece como tal, julgando-se por isso capaz de recobrir o real em sua totalidade. No entanto, é na inclusão ou exclusão do real (ou, nas palavras de Freud: desse certo grau de indefinição) presente no seio das representações que Lacan reconhece o divisor de águas entre as formas de operar da Psicanálise e da ciência moderna, respectivamente.
Ao longo de sua obra, vemos Lacan demonstrar que no campo da ciência o que distingue a Psicanálise é o seu objeto, a saber, “a instância da subjetividade” (Lacan, 1955-56, p. 213) e um certo amor ao que denomina, em sua teoria, de a “verdade” com relação à qual as demais ciências não se encontrariam compromissadas (Lacan, 1966, p. 884).
O conceito de verdade é usado por Lacan em duas acepções: em primeiro lugar, esse conceito é superposto ao sentido. Aí, a verdade é pensada como tendo estrutura de ficção. O autor faz uso da palavra “verdade” com o objetivo de desvincular sua garantia de qualquer referente empírico, inscrevendo-a no campo do sentido (Lacan, 1946). No outro uso do termo, ele o faz equivalente àquilo que o sentido não recobre, a saber, o real. A palavra “coisa” estenografa, na teoria do autor, essa mesma dimensão, a do real. Por isso, usaremos a partir de agora, ao longo do texto, as palavras verdade, coisa e real como equivalentes.
No que diz respeito à ciência moderna e a relação que estabelece com o real, Lacan reconhece, no que Descartes isola como a Res pensante, não o ser, mas o real presente no seio das representações, isto é, “no cogito (...), o que visa ao eu penso no que ele báscula para o eu sou (...) real” (Lacan, 1964, p. 39). O autor afirma que o que Descartes deixa de fora, ao equivaler o pensamento ao ser, é a própria dimensão da verdade, mostrando que a ciência moderna caracteriza-se não apenas pela abertura (pela transformação de nosso mundo, até então fechado, em um universo infinito), mas também pelo fechamento com relação ao real. Assim fazendo, o autor torna evidente que a relação que a episteme que Descartes inaugura estabelece com a dimensão do real é de exclusão. É essa mesma demonstração que faz tão bem Ana Freire (1997), em seu livro Por que os planetas não falam?, quando se refere ao modelo hegemônico de ciência, ao afirmar que a dimensão de verdade é o que se encontra fora de questão em seu campo de operações. Essa ciência é a que, uma vez constituída, esquece as peripécias em que nasceu diz-nos Lacan, a “dimensão da verdade (...) exercida em alto grau pela psicanálise” (Lacan, 1966, p. 884).
Ao longo da sua obra, vemos Lacan paulatinamente fazer a demonstração de que o que distingue a ciência moderna do campo de cientificidade que comporta a Psicanálise é que, ao contrário da ciência moderna (que se caracteriza por objetar o real em seu campo operatório), a Psicanálise especificase justamente por operar com o real, por incluí-lo em seu campo de operações.
Segundo Lacan, “o discurso da ciência rejeita a presença da coisa, uma vez que em sua perspectiva se delineia o ideal de saber absoluto, isto é, de algo que estabelece, no entanto, a Coisa, não a levando ao mesmo tempo em conta” (1959-60, p. 162). Essa dimensão, a da coisa, Lacan aponta como o que constitui o “o ponto (...) velado da ciência” (1966, p. 884) afirmando que sobre a “verdade como causa, ela não quer saber nada” (p. 889).
A episteme que Freud inaugura, demonstra-nos Lacan, difere da cartesiana por incluir o real em seu campo operatório. Esse operar com o real é o que distingue, como diz Lacan, “o campo da ciência em que se baseia a Psicanálise” (Lacan, 1955-56, p. 213), o modelo contemporâneo de ciência, o que tem Freud como precursor, segundo Habermas, do modo de conceber e produzir conhecimento próprios à ciência moderna. Concluímos sustentando, juntamente a Lacan, que é esse incluir o real em seu campo de operações que especifica o modelo de cientificidade que comporta a Psicanálise em contraposição ao da ciência moderna, e que nele reside a cientificidade da Psicanálise.
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Endereço para correspondência
Helena Veloso
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Recebido em: 06.11.2006
Versão revisada recebida em: 17.07.2007
Aprovado em: 13.08.2007
*Doutora em Teoria Psicanalítica (Universidade Federal do Rio de Janeiro); Psicanalista e Professora Universitária.