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Psychê

versión impresa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.12 n.23 São Paulo dic. 2008

 

ARTIGOS

 

Testemunho: metáforas do lembrar

 

Testimonial: metaphors of remembering

 

 

Márcia Barcellos Alves; Edson Luiz André de Sousa I,II

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul
II Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho propõe pensar sobre a temática da narratividade e do testemunho a partir da obra É isto um homem, de Primo Levi, em um diálogo com a construção do caso clínico na psicanálise. Para tanto, este estudo se reporta ao testemunho de Levi e a aspectos constituintes do processo narrativo por intermédio de autores como Sigmund Freud, Walter Benjamin, Jeanne Marie Gagnebin, Márcio Seligmann-Silva, entre outros. Questiona os impasses da memória na dialética das realidades factual e ficcional e interroga o conceito de irrepresentabilidade. Em seguida, sugere que se pense em uma clínica do testemunho e reflete sobre implicações desse narrar e contar histórias.

Palavras-chave: Testemunho; Psicanálise; História; Representação; Memória.


ABSTRACT

The present work reflects about the thematic of the narrative dialogue and the testimonial situation evidenced in the book This is a man" of Primo Levi, relating it with the construction of the clinic case in psychoanalysis. For this aim, the study refers to Levi"s testimonial and to constituent aspects of the narrative process through authors as Sigmund Freud, Walter Benjamin, Jeanne Marie Gagnebin, Márcio Seligmann-Silva, among others. It questions the impasses of memory on the dialectics of the factual and fictional realities and interrogates the concept of no-representation. Then, it suggests for clinical issues the testimonial and reflects about the implications of the narrative and telling stories.

Keywords: Testimonial; Psychoanalysis; Story; Representation; Memory.


 

 

Um sentimento exclusivamente pessoal, uma infelicidade só sua" (Kenzaburo Oe, 2003).

Simon Srebnik é uma das primeiras vozes no impressionante filme Shoah1, de Claude Lanzmann, de 1987. Ele, junto com Mordechai Podchlebinik, foram os únicos dois judeus sobreviventes dos campos de Chelmno, na Polônia. Calcula-se que cerca de 400.000 judeus morreram nessa região. Foi em Chelmno onde aconteceram os primeiros extermínios de judeus pelo gás. Lanzmann foi buscá-lo em Israel, com 47 anos, para percorrerem juntos a paisagem do massacre. O filme inicia com sua voz deslizando no pequeno riacho, cantarolando clássicas canções do folclore polonês:

Uma casinha branca
permanece na minha memória.
Com essa casinha branca
todas as noites sonho (Lanzmann, 1987, p. 19).

A voz do menino Simon, de 13 anos – idade que tinha na época dos campos nazistas –, mistura-se a sua voz atual, e somos lançados no turbilhão da cena que se apresenta em um silêncio inquietante. Tudo parece dentro da ordem: a suavidade do rio, a beleza da paisagem, o equilíbrio da vida. Contudo, suas primeiras palavras devolvem à cena seu fundo de rumor, e a história vai se fazendo presente mostrando os mata-borrões da paisagem. Palavras que vão abrindo furos no cenário e revelando outras imagens por trás da aparente serenidade.

Difícil reconhecer, mas era aqui.
Aqui, queimavam-se pessoas.
Muitas pessoas foram queimadas aqui.
Sim, este é o lugar.
Ninguém jamais tornava a partir.
Os caminhões de gás chegavam ali...
Havia dois imensos fornos...
e em seguida, jogavam-se os corpos nesses fornos,
e as chamas subiam até o céu (Lanzmann, 1987, p. 20).

Era a primeira vez que Srebnik voltava a Chelmno. O espectador assiste perplexo seu espanto, sua dor e sua incompreensão com o que vai vendo e lembrando. Estamos todos na cena, como se ali pudéssemos também testemunhar a história com o repertório de imagens que temos. Srebnik viu, nessa paisagem, seu pai ser abatido diante de seus olhos, e sua mãe asfixiada nos caminhões dos SS. O que vemos subitamente adquire uma densidade de verdade e responsabilidade. Somos todos responsáveis por essa história: os que contam, os que mostram e os que escutam. Assim, podemos, como testemunhas, continuar a narrar o que vemos no desafio de capturar este excesso de real. Diz ainda Srebnik:

Não se pode contar isso.
Ninguém pode
imaginar o que se passou aqui.
Impossível. E ninguém pode compreender isso (Lanzmann, 1987, p. 21).

As reflexões presentes no corpo deste artigo vêm interrogar, discutir e elucidar questões concernentes ao tema da função da narrativa como valor de testemunho. Narrando histórias e amarrando" idéias, criam-se versões, dão-se depoimentos, contam-se experiências: testemunha-se.

O testemunho de quem conta uma história, de quem relata uma experiência, de quem fala ou (des)escreve uma realidade dá lugar, abre espaço para metáforas do próprio lembrar. Por outro lado, o testemunho de quem escuta a história, esse público" que dá ouvidos à trama, que também se faz testemunho de uma experiência, e que através dela também potencializa a re-significação, a metaforização de suas próprias histórias.

A possibilidade de se entender e criticar a questão do testemunho como uma metáfora do lembrar produziu um espaço de interrogações e de fecundas interlocuções com a clínica psicanalítica: a psicanálise é toda baseada na situação dialógica da clínica, que tem o testemunho no seu centro", escreve Seligmann-Silva (2005, p. 72).

Na clínica psicanalítica, um sujeito vem contar uma história... E que história é essa que um sujeito vem contar ao analista? A psicanálise, ao longo de toda sua construção, não cansa de tentar encontrar formulações que possam contribuir na montagem desse quebra-cabeça envolvido na escolha de como contar uma história. Pois trata-se de uma escolha em meio a infinitas possibilidades. Trata-se de uma escolha orientada", uma escolha possível", e que se vai revelar nos ditames do discurso. Podemos entender o testemunho que o sujeito produz, na cena analítica, também como uma espécie de metáfora do lembrar?

Entendendo a narrativa como um aspecto constituinte da vida e da condição humana (bem como algo completamente intrínseco ao processo analítico), e atentando aos percalços constituintes da tarefa de quem conta uma história, lancemo-nos nas produções de alguns dos principais autores preocupados com a questão da narrativa e do testemunho, em um diálogo com a obra de Primo Levi.

A escolha justifica-se: em É isto um homem?, Primo Levi2 (1988) dá seu depoimento, testemunha sua experiência no campo de concentração de Auschwitz, no sul da Polônia. A obra de Levi mantém-se como um clássico da literatura de testemunho – além do fato de que, como diz Seligmann-Silva, à ‘era das catástrofes" corresponde a ‘era dos testemunhos"" (2005, p. 82).

Deportado em 1944, juntamente com mais seiscentos e cinqüenta judeus, Levi foi um dos três sobreviventes. Já no Prefácio do livro Se questo è un uomo, o autor esclarece que não pretende tecer novas denúncias sobre os horrores dos campos de extermínio, até porque teve a sorte" de ser deportado em um momento em que o governo alemão já havia concedido melhoras" no nível de vida dos prisioneiros (e suspendido matanças arbitrárias) em função da escassez" de mão-de-obra.

No entanto, diz que o livro poderá, antes, fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana" (Levi, 1988, p. 7). Logo depois, o autor ressalta que:

A necessidade de contar aos outros", de tornar os outros" participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de libertação interior (p. 8 – grifos nossos).

O que leva um homem a querer contar, a querer re-lembrar uma história tão traumática quanto a experiência no campo de extermínio? Que necessidade é essa de contar sua história? Que impulso violento é esse que faz Levi inclusive amaldiçoar"3 quem desconsidera suas palavras e história?

De outro lado, como pensar na dimensão clínica da narrativa e no testemunho, já que a psicanálise se propõe, com Freud e Lacan (de diferentes formas), a tomar o discurso do sujeito como a própria realidade em cena?

O testemunho nos joga diante do limite da linguagem, limite este que precisamos sempre continuar experimentando. Aliás, é esta a função sempre renovadora da literatura, como a margem do rio Ner, em Chelmo, que percorremos com Srebenik, referidos no início de nosso artigo. O que conhecemos sobre essas margens, essas imargens. Aqui deparamo-nos com a tensão constitutiva desses estilos de testemunhar o traumático: a necessidade e a impossibilidade de narrar. Seligmann-Silva nos esclarece este ponto:

O testemunho coloca-se desde o início sob o signo de sua simultânea necessidade e impossibilidade. Testemunha-se um excesso de realidade e o próprio testemunho enquanto narração testemunha uma falta: a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de recobrir o vivido (o real") com o verbal. O dado inimaginável da experiência concentracionária desconstrói o maquinário da linguagem (2003, p. 47).

Estas são algumas das reflexões propostas pelo presente estudo, que pretende, antes de respondê-las, fazer pensar.

 

Entre as farpas de um arame, a tecedura de uma história...

Poderíamos, então, perguntar-nos se vale mesmo a pena, se
convém que de tal situação humana reste alguma memória.
A esta pergunta, tenho a convicção de poder responder que sim.
Estamos convencidos de que nenhuma experiência humana é
vazia de conteúdo, de que todas merecem ser analisadas; de que
se podem extrair valores fundamentais desse mundo particular
que estamos descrevendo. Desejaríamos chamar a atenção para
o fato de que o Campo foi também (e marcadamente) uma
notável experiência biológica e social.
Fechem-se entre cercas de arame farpado milhares de
indivíduos, diferentes quanto à idade, condição, origem, língua,
cultura e hábitos, e ali submetam-nos a uma rotina constante,
controlada, idêntica para todos e aquém de todas as
necessidades; nenhum pesquisador poderia estabelecer um
sistema mais rígido para verificar o que é congênito e o que é
adquirido no comportamento do homem-animal frente à luta
pela vida" (Levi, 1988, p. 88).

Levi, no livro É isto um homem?, evoca de sua memória as situações enfrentadas no campo de extermínio.

Um Häftling, aprendi que sou um Häftling. Meu nome é 174.517" (p. 25) – é esta experiência que Levi nos conta. Era uma peça", no meio de seiscentas e cinqüenta peças", assim era chamado e tratado.

Em Auschwitz não existem espelhos e eles nem são necessários, conclui Levi, já que a imagem de cada um está a sua frente, refletida em rostos/bonecos pálidos, sórdidos e miseráveis. O autor (narrador/personagem), pela primeira vez também se dá conta de que, em sua língua, não existem palavras para expressar a ofensa que um homem sente ao ser aniquilado de forma tão vil.

O fundo do poço", a condição mais miserável: tiraram-lhes as roupas, os sapatos, os cabelos, os nomes; quando falam, não são escutados, e se escutados, não são compreendidos. Vêem-se na luta para manter dentro de si alguma coisa que possam sentir como suas, em um esforço para não se esquecerem, eles próprios, do que eram, do que são. Nem ao mais humilde mendigo é negado o direito de manter consigo um lenço, uma carta, coisas-lembranças que seguram o sujeito na própria vida, que o situam e fazem parte dele mesmo como o próprio rim.

Aqui estou, então: no fundo do poço. Quando a necessidade aperta, aprende-se em breve a apagar da nossa mente o passado e o futuro. Quinze dias depois da chegada já tenho fome regulamentar, essa fome crônica que os homens livres desconhecem; que faz sonhar, à noite; que fica dentro de cada fragmento de nossos corpos. Aprendi a não deixar que me roubem; aliás, se vejo por aí uma colher, um barbante, um botão dos quais consiga tomar posse sem risco de punição, embolso-os, considero-os meus, de pleno direito. Já apareceram, no peito de meus pés, as torpes chagas que nunca irão sarar. Empurro vagões, trabalho com a pá, desfaleço na chuva, tremo no vento; mesmo meu corpo já não é meu; meu ventre está inchado, meus membros ressequidos, meu rosto túmido de manhã e chupado à noite; alguns de nós têm a pele amarelada, outros cinzenta; quando não nos vemos durante três ou quatro dias, custamos a reconhecer-nos (p. 35).

Levi nos conduz pela mão a pensar na condição humana, na miséria que nos concerne, na crueldade das relações, nas necessidades impostas por nossa condição, evidenciando a certeza de que somos, muito antes de animais vestidos em corpos frágeis, seres subjetivados. E lá (nos trens) recebemos as primeiras pancadas, o que foi tão novo e absurdo que não chegamos a sentir dor, nem no corpo nem na alma. Apenas um profundo assombro: como é que, sem raiva, pode-se bater numa criatura humana?" (p. 15). Desse lado, podemos pensar se a própria narrativa da cena não é por si só capaz de retificar o valor dado a cada pancada.

Se por um lado Levi nos mostra a capacidade do homem de suportar a dor e ainda pensar na condição estabelecida e em possíveis razões que justifiquem o sofrimento, agarrando-se em esperanças ínfimas, advindas pelo próprio processo de pensar, por outro, o autor questiona a importância da própria dor para a sobrevivência psíquica:

Cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que também é irrealizável a infelicidade completa. Os motivos que se opõe à realização de ambos os estados-limites são da mesma natureza; eles vêm de nossa condição humana, que é contra qualquer infinito". (...) Assim, opõe-se a ela (realização) a certeza da morte, que fixa um limite a cada alegria, mas também a cada tristeza. Assim, põem-se as inevitáveis lides materiais que da mesma forma como desgastam com o tempo toda a felicidade, desviam a cada instante a nossa atenção da desgraça que pesa sobre nós tornando a sua percepção fragmentária, e, portanto, suportável (p. 15).

Tal afirmação corrobora-se mais tarde quando o autor relata sua experiência no Ka-Be (sigla de Krankenbau, a enfermaria), único lugar do Campo livre do sofrimento físico, e portanto, germinador de consciência, onde se pode pensar no que está vivendo, nas transformações que sofreram, no que lhes foi tirado, na vida mesma. Nesse parêntese de relativa paz" (p. 54), o autor se dá conta que a personalidade desses soldados corre mais perigo que a própria vida, e diz que os sábios já deviam ter precavido os homens contra esse imperioso perigo.

Sim, somos escravos, despojados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, destinados a uma morte quase certa, mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar por defendê-la a todo custo, justamente porque é a última: a opção de recusar nosso consentimento. Portanto, devemos nos lavar, sim; ainda que sem sabão, com essa água suja e usando o casaco como toalha. Devemos engraxar os sapatos, não porque assim reza o regulamento, e sim por dignidade e alinho. Devemos marchar eretos, sem arrastar os pés, não em homenagem à disciplina prussiana, e sim para continuarmos vivos, para não começarmos a morrer (p. 39).

Os momentos de relativo entusiasmo e consciência ganham força em determinados momentos do relato de Levi. Em contrapartida, há outros em que o desespero, o conformismo e a dor tomam conta. Ai de quem sonha! – diz ele – O instante no qual, ao despertar, retomamos a consciência da realidade, é como uma pontada dolorosa. (...) Somos apenas animais cansados" (p. 43).

É com relativa minúcia que Levi relata os detalhes das experiências no Campo. Apesar de serem elementos importantes na constituição das imagens e cenas, de denunciarem detalhes que fazem diferença, este artigo não tem a pretensão de utilizar estes fragmentos para maiores detalhamentos, e sim propô-los para pensar os temas a que se destina: a narratividade e o testemunho, a questão da representatividade possível de um trauma, e a relação desses elementos com a experiência psicanalítica.

 

Os impasses da memória

Acho necessário acrescentar que nenhum dos episódios foi
fruto de imaginação" (Levi, 1988, p. 8).
Hoje – neste hoje verdadeiro, enquanto estou sentado frente a
uma mesa escrevendo –, hoje eu mesmo não estou certo de que
esses fatos tenham realmente acontecido" (p. 105).

Gagnebin (2006), no livro Lembrar, escrever, esquecer, intitula um dos capítulos como Verdade e memória do passado", que diz ser fruto do questionamento de dois pontos: por que atualmente o tema da memória está sendo tão falado e pesquisado; e por que se diz que aos historiadores cabe a tarefa de estabelecer uma verdade única sobre o passado. Desta forma, a interrogação que impulsiona o autor é a das relações que o presente mantém com o passado, tendo como ponto de partida a proposição que se trata ali de uma relação histórica.

Nos dois parágrafos de Primo Levi, citados acima, encontra-se justamente esta ambigüidade entre presente e passado, em um desafio à capacidade rememorativa do lembrar, às sinuosidades da memória. No início do livro, o autor está convicto da fidedignidade de seu testemunho (p. 8), mas no decorrer da narrativa, esmorecem-se as certezas (p. 105).

O interesse em responder o que leva as pessoas a se preocuparem tanto com a verdade do passado", ou por que fazem questão de conhecer a história verdadeira" também se define como vértices do estudo de Gagnebin (2006), uma vez que entende que, antes de definir o que é ou não verdadeiro, vale a pena debruçarmo-nos no entendimento dessa necessidade, ou nessa vontade de verdade", como diz, citando Nietzsche. Entendo com isso que a verdade do passado remete mais a uma ética da ação presente que a uma problemática da adequação (pretensamente científica) entre ‘palavras" e ‘fatos"" (Gagnebin, 2006, p. 39).

Seligmann-Silva (2005) afirma que o trabalho de luto", exigido pelas catástrofes do século XX, promoveu uma nova dimensão no trabalho da história, despertando interesse ao tema da memória, em oposição ao modelo historicista da historiografia". O autor destaca o trabalho de Walter Benjamin como um dos primeiros a dar conta da nova situação, depois da Primeira Grande Guerra.

Benjamin, que escreveu suas famosas teses justamente no período do acordo de Stalin e Hitler, em agosto de 1939, traz nelas importantes contribuições. As teses são referidas no texto Sobre o conceito da História" – na Tese 6, Benjamin diz que articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele foi". Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo" (1994, p. 224).

Desta forma, na visão de Benjamin, a articulação histórica do passado é intrinsecamente imbuída de aspectos subjetivos dos sujeitos que contam (no caso, historiadores). A criação, invenção ou fantasia acabam, por esta via, fazendo parte da história, uma vez que esta é escrita a partir de interpretações de signos, rastros, memórias...

Levi, desta vez em seu último livro, Os afogados e os sobreviventes, diz que apesar dos relatos sobre o Campo serem fruto de memórias às vezes vãs dos que lá estiveram, são os melhores (e únicos) documentos da barbárie: é natural e óbvio que o material mais consistente para a reconstrução da verdade sobre os campos seja constituído pela memória dos sobreviventes" (Levi, 1989, p. 13).

Segundo Gagnebin (2006), há uma impossibilidade de ordem epistemológica na correspondência entre discurso científico e fatos" históricos, uma vez que é justamente apenas por meio de um discurso (que nomeia, distingue, caracteriza) que os fatos" adquirem tal status.

O autor diz que também na história a experiência de horror da Segunda Guerra Mundial provocou um abalo sem precedentes da confiança na ciência e na razão" (p. 41), uma vez que colocou em questão principalmente o caráter literário/ ficcional da escrita da história e os imperativos que a construção da memória histórica entretém com o esquecimento e com a denegação. Neste sentido, diz que a luta contra o esquecimento, necessária ao historiador, é uma luta contra a morte e ausência, pela palavra rememorativa.

De qualquer forma, será que a consciência por parte do narrador sobre o caráter literário de sua retórica não pode esfumaçar as fronteiras que separam o discurso científico da ficção, a verdade" da mentira"? Que conseqüências isto traria na transmissão das histórias? Corre-se o risco de se chegar a um relativismo sem fim caso todas as verdades se equivalessem e não encontrassem ancoragem em uma certeza objetiva?

Para refletir sobre tais questões, Gagnebin (2006) refere o pensamento do historiador francês Pierre Vidal-Naquet, dizendo que se, por definição, o historiador não pode dizer tudo, vive-se no relativo, o estabelecimento de uma verdade absoluta não pode ser o objetivo de seu trabalho.

O nome de Auschwitz", símbolo emblemático da Shoah, continua trazendo até hoje o estigma de um dever de memória", daquilo que não se pode, nem se deve, esquecer. Aqueles que não se afogaram" definitivamente em Auschwitz, os sobreviventes, nem se assim desejassem, conseguiriam esquecer. Gagnebin insiste que a impossibilidade do esquecimento é própria da situação traumática, em uma insistência à repetição. O autor afirma que esta situação, meio século depois, encontra-se diferente: dito brutalmente: conseguimos muito bem, se quisermos, esquecermo-nos de Auschwitz" (p. 99).

 

História e testemunho

Seligmann-Silva (2005) propõe que se pense sobre o tema do testemunho a partir de sua protocena", que pode ser encontrada na Grécia, principalmente na tragédia Eumênides, de Ésquilo, onde se tem relatado o primeiro tribunal humano. A figura do testemunho mantém desde suas origens uma relação intrínseca com a cena jurídica.

Levi também lembra as relações do tema do testemunho e da memória com a cena jurídica:

Os advogados de defesa bem sabem que o vazio de memória ou a verdade putativa que sugerem a seus clientes tendem a se tornar esquecimento e verdade efetiva. Não é preciso penetrar na patologia mental para encontrar exemplares humanos cujas afirmações nos deixariam perplexos: são certamente falsas, mas não conseguimos distinguir se o sujeito sabe ou não que mente (Levi, 1989, p. 25).

Para discussão, voltemos à tragédia grega: No desenrolar de seus comentários, o autor destaca que ela evidencia e comprova que o sistema jurídico depende diretamente do medo e da potencial punição, entendendo que a violência e a lógica da vingança são partes constituintes da estrutura jurídica.

A tragédia (terceira parte da trilogia) traz a cena do julgamento de Orestes – que mata sua mãe, Clitemnestra, em vingança pelo assassinato do pai, Agamêmnon (na primeira parte da trilogia, Clitemnestra mata seu marido em conluio com seu amante, Egisto). Atena, a juíza, alerta os jurados para a aparente impossibilidade de reconciliação dos dois partidos. O julgamento passa a depender da instituição do testemunho", e Atena diz que cada um dos lados deve apresentar testemunhas (marturia) e provas (tekmêria) em favor de suas causas.

Um dos pontos importantes que Seligmann-Silva traz aí é sobre a dicotomia que se estabelece: ao contrário do patricida Édipo, o matricida Orestes não só é absolvido, como ao invés de ser banido ou sacrificado, ele passa a ser reconhecido novamente como autoridade, é santificado". Tanto o banido (sacer) quanto o rei (sanctus) tem a lei como referencial: um está fora e outro acima da mesma.

O autor questiona se testemunhar ainda se mostra frutífero nos dias de hoje, levando em conta que é no espaço aberto pela poética do convencer" que o próprio testemunho se dá, em meio ao embate entre criação e verdade dos fatos". E diz:

A testemunha citada no tribunal também cita a história, mas nesse momento mesmo ela a destrói e a recria, dando início a um processo potencialmente sem fim de escritura e disseminação. Poderíamos dizer que todo testemunho, enquanto zeugen" (testemunhar e procriar), tende a se transformar em um überzeugen" (convencer e supergerar) infrutífero (Seligmann-Silva, 2005, p. 78).

Para Seligmann-Silva, tanto em Eumênides quanto em Coéforas evidencia-se que a masculinidade está na origem da concepção de testemunho. Destaca que testis, em latim, significa tanto testemunho" quanto testículo", e lembra que nas sociedades tradicionais as mulheres são excluídas como testemunhas.

O autor propõe dois modelos de testemunho: etimologicamente, testis é aquele que assiste – o testemunho está vinculado desde a Antigüidade à visão, muito mais que à audição – como um terceiro. De outro lado, superstes descreve a testemunha tanto como aquele que subexiste além de", quanto como aquele que se mantém no fato".

Talvez convenha estabelecer algumas diferenças: o modelo do testemunho como testis, segundo o autor, é mais visual do que auditivo, correspondendo ao modelo do saber positivista, em uma concepção da linguagem que leva em conta a possibilidade do trânsito entre o tempo da cena histórica e o tempo em que se escreve essa história.

Já o modelo como superstes, além de ter a audição e não a visão em seu centro, propõe pensar a história de forma mais auricular", estando aberta ao testemunho e ao próprio evento de testemunhar, isto é, não reduz o testemunho ao ambiente, o meio. Aqui pressupõe-se uma incomensurabilidade entre as palavras e essa experiência da morte (...), o presente do ato testemunhal ganha procedência" (2005, p. 81).

Os apontamentos trazidos pelo autor fazem pensar sobre como entender os testemunhos de guerra, principalmente os de Primo Levi. Apesar de Seligmann-Silva alertar que a separação completa dos dois sentidos de testemunho não é possível, tampouco ideal, a discussão pode ser interessante.

Sabem bem os magistrados: quase nunca sucede que duas testemunhas oculares do mesmo fato o descrevam do mesmo modo e com as mesmas palavras, ainda que o fato seja recente e que nenhum dos dois tenha interesse em deformá-lo. Esta escassa confiabilidade de nossas recordações só será explicada de modo satisfatório quando soubermos em qual linguagem, em qual alfabeto elas estão escritas, sobre qual material, com qual instrumento: ainda hoje é uma meta de que estamos longe (Levi, 1989, p.19).

Tendo em vista as características de testis e superstes, podemos pensar que o testemunho de Levi exemplifica o quanto os dois sentidos de testemunho são, de fato, inseparáveis. Se por um lado Levi é uma testemunha ocular do horror sem nome", e dele nos mostra detalhes, conta-nos vivências e desvenda os acontecimentos que fizeram com que esse advento tivesse a relevância que possui para a história, por outro, ao longo de toda sua narrativa sublinha questões do próprio ato do testemunhar (como em superstes), testemunhando o próprio advento do testemunhar.

Levi destaca que eles, os sobreviventes, não são as verdadeiras testemunhas, são apenas uma minoria, que por habilidade ou sorte" não tocaram o que chama de fundo do poço". Os que lá chegaram não voltaram para contar suas histórias ou voltaram completamente mudos: estes sim são as testemunhas integrais, cujo depoimento teria significado geral" (Levi, 1989, p. 72).

A partir disso, é preciso aceitar o testemunho com seu sentido profundamente aporético de exemplaridade possível e impossível, de singularidade que nega o universal da linguagem e nos remete ‘diante da lei" (...) mas ao mesmo tempo exige e cobra essa mesma lei", diz Seligmann-Silva (2005, p. 81).

A proposta do autor é entender o testemunho com a complexidade que envolve, já que esse envolve o sentido da visão, a oralidade narrativa e a habilidade de julgar. Se é verdade que um elemento complementa o outro, ambos não deixam de se relacionar de modo conflitivo. O testemunho revela a linguagem e a lei como constructos dinâmicos, que carregam a marca de uma passagem constante, necessária e impossível, entre o ‘real" e o simbólico, entre o ‘passado" e o ‘presente"", diz Seligmann-Silva (p. 82). Desencontro" que a linguagem da poesia e da literatura não deixam de perseguir.

 

Rastro escrito: papéis dos contra-tempos

Uma vez que a chamada literatura de testemunho" não se configura exatamente como um gênero literário, Seligmann-Silva propõe que se fale em uma face da literatura" que emergiu depois da época das catástrofes, e que promoveu uma revisão de toda a história da literatura, questionando seu compromisso e sua relação com o real" (entendido aqui não como equivalente à realidade, mas pela via da teoria do trauma de Freud, como um evento que resiste à representação). Toda obra literária é marcada por um teor testemunhal" que os estudos sobre testemunho se interessam: esse teor indica diversas modalidades de relação metonímica entre o ‘real" e sua escritura" (2005, p. 85).

Todavia, o apagamento das fronteiras entre o fictício, o literário e o descritivo, proposto pelo conceito de testemunho, leva ao questionamento de uma ética da escritura". Se por um lado, onde o sujeito manifesta-se pela narrativa há literatura, por outro, o referencial histórico que está na base do testemunho não reduz o real" a uma ficção literária". O testemunho impõe uma crítica da postura que reduz o mundo ao verbo, assim como solicita uma reflexão sobre os limites e modos de representação" (2005, p. 85).

Principalmente na Europa e Estados Unidos, o discurso testemunhal tem sido analisado pela tensão que provoca entre a oralidade e a escrita, no que se denomina literalização", isto é, a incapacidade de traduzir vivências em imagens e/ou metáforas.

Segundo Benjamin (1994), a fonte de todos os narradores é a experiência transmitida de boca em boca. Ressalta que as narrativas escritas podem ser consideradas melhores quanto mais se aproximarem das transmitidas oral e cotidianamente por narradores anônimos. Neste sentido, o autor destaca dois grupos de narradores responsáveis de maneira particular pela transmissão de experiências, a saber: o narrador como alguém que vem de longe, denunciado no dito quem viaja tem muito que contar"; e a tradição daquele que tem suas raízes arraigadas em um único lugar e melhor conhece suas histórias, costumes e tradições. Benjamin acredita que o reino narrativo" só pode ser compreendido em sua real extensão levando-se em conta a interpenetração" desses dois arcaicos tipos de narração.

Pereira, no artigo intitulado Notas de leitura: o narrador, de W. Benjamin: por que isso interessaria a um psicanalista?", ressalta que é justamente sobre o significante da narrativa que Benjamin pensa as questões de seu tempo. Dessa forma, o trabalho do narrador benjaminiano" e da psicanálise encontram um ponto comum: o campo do sujeito e o campo do Outro" (2005, p. 9). A questão da enunciação, de onde a fala se autoriza e da produção na cultura são pontos de aproximação que envolvem esses campos.

Diz Pereira,

O Narrador" nos faz pensar por onde algo da sustentação de uma prática como a psicanalítica renova a possibilidade de estabelecer uma experiência, travessia, trabalho que supõe um certo percorrer", fala e escuta sustentados por uma relação transferencial, campo do Outro, inconsciente (2005, p. 13).

A cena analítica é um dos lugares que a contemporaneidade abriu para que as inúmeras escritas no corpo ganhem a densidade de palavra endereçada a um outro, e assim possam efetivamente tomar forma diante dos sujeitos até então incrédulos e embaraçados com a condição de enigma das escritas que portam sem saber". Podemos, assim, encontrar o sujeito como efeito do que nele se escreve:

A psicanálise interroga de forma radical essa ilusão de autonomia do ego, essa aparente certeza de sua identidade para mostrar as determinações constitutivas de um sujeito a partir de uma exterioridade. Jacques Lacan vai traduzir essas teses produzidas por Freud mostrando como esse sujeito inflado narcisicamente é na verdade efeito do significante. Há então uma alienação constitutiva tão bem demonstrada no famoso texto a Etapa do Espelho, de Lacan, que indica que é nesse intervalo/movimento de um ao outro" que temos que deduzir um sujeito (Sousa, 1998, p. 29).

Segundo o autor, uma das funções da escritura poderia ser então a de manter este intervalo vivo, velando por uma alteridade necessária em nossa relação com a linguagem. Quanto mais esmorecida essa relação, maior o empobrecimento da experiência, como coloca Benjamin, referindo tal advento como a tragédia do homem contemporâneo.

 

O ir-representável

Porque esse olhar não foi cruzado entre dois homens. Se
soubesse explicar a fundo a natureza desse olhar, trocado como
através de um vidro de um aquário entre dois seres que habitam
dois meios diferentes, conseguiria explicar a essência da grande
loucura do Terceiro Reich" (Levi, 1988, p. 108).

A narrativa que tenta organizar o sujeito chega então, inevitavelmente, no momento do tropeço, daquilo que vai no sentido da procura de palavras tradutoras", a uma certa cena fracasso diante da insuficiência do dito.

A literatura diante da Shoah em que se pode ver o confronto da necessidade da rememoração da vivência na luta contra o esquecimento, e concomitante a isso, a impossibilidade e a impotência na procura do que diga do horror sem nome" (Gagnebin, 1999, p. 123), a ineficácia da razão que procura (desesperada!) explicações.

Se palavras são necessárias, pode-se pensar, em contraponto sobre a tentação metafísica de recobrir tudo com palavras, em que tudo o que se passa estaria sob o domínio da apropriação racional e lingüística do sujeito.

Se ao real fosse denegada a potência de interrogação, nossa linguagem só seria, portanto, uma máquina magnífica e sem arrancos, um sistema cada vez mais correto de apreensão e de enclausuramento daquilo que, no entanto, continua a escapar de sua captura", diz Gagnebin (1999, p. 124).

Lacan nos lembra que daquilo que não se pode falar é do que mais falamos. Neste sentido, questiona-se o conceito de irrepresentabilidade: sobre aquilo que não encontra palavras, nada se fala. Mesmo o recalque4 é simbolizado, é sempre em nome-do-pai", está na cadeia significante; caso não fosse, o conteúdo seria foracluído (verwerfung), como em casos de psicose.

Kehl (1998), no artigo O irrepresentável existe?, também propõe que se questione o entendimento do caráter da irrepresentabilidade. Refere-se tanto a catástrofes históricas quanto a acontecimentos cotidianos, que de alguma forma impedem o sujeito a se por a falar. Refere-se ao conceito de trauma em Freud, ou ao conceito de real em Lacan. Interessante, aliás, pensar nesses conceitos que compulsivamente repetem" o mesmo como duplo, tendo em vista que trazem, ambos, a dimensão da falta, do furo, do vazio, da morte.

O que a autora vem criticar no artigo é o excesso de fascínio que a idéia do irrepresentável pode produzir, bem como a facilidade com que é vinculada ao obscurantismo, àquilo que não se explica.

Kehl ressalta que as fronteiras da dimensão traumática não são postas de antemão. Aos seres de linguagem consiste a tarefa de ampliar os limites do simbólico, mesmo que não tenha a pretensão de recobrir todo o real:

De cada experiência, de cada objeto, de cada percepção, fica sempre um resto que não conseguimos simbolizar; o núcleo duro" das coisas, que lhes confere independência em relação à linguagem e nos garante, de alguma forma, que o mundo não é uma invenção de nosso pensamento (p. 67).

Quanto ao nazismo, a autora ressalta que não há dúvidas de que se trata da maior expressão coletiva do mal que já se viu – um mal absoluto que luta e fala em nome de um bem" igualmente absoluto. Em uma perspectiva absolutista, ambos – mal" e bem" – se tornam igualmente irrepresentáveis e terríveis. Kehl ousa dizer que qualquer ato que se pretenda como absoluto sempre produzirá morte – a vida é indissociável da incompletude, da confusão do vir-a-ser constante que a incompletude promove" (p. 72).

Seligmann-Silva descreve a Shoah como um evento-limite, a catástrofe, por excelência, da Humanidade e que já se transformou no definiens do nosso século" (2000, p. 75), que acabou por reorganizar reflexões importantes sobre o real e sua capacidade de representação.

O que a Shoah comporta de ir-representável é o excesso que ali se apresenta, o que aproxima o evento à noção Kantiana do sublime – o excesso que causa uma impressão tão forte, que não raro produz assombro, um anestesiamento, um momento de falta de consciência. O sublime representa um máximo, uma hipérbole que não pode ser controlada e que descontrola quem a contempla" (Seligmann-Silva, 2000, p. 80). É o sem expressão" e não o inexprimível, corrobora Gagnebin (1999).

Por outro lado, Levi observa em seus relatos:
O amigo religioso me havia dito que eu sobreviveria a fim de dar testemunho.
Eu o dei da melhor forma que pude, e não teria podido deixar de dá-lo; e ainda o
faço sempre que se me apresenta ocasião; mas a idéia de que o privilégio de
sobreviver aos outros e de viver por muitos anos sem maiores problemas tenha
propiciado este meu testemunho, esta idéia me inquieta, porque não vejo
proporção entre o privilégio e o resultado (Levi, 1989, p. 72).

Além disto, ele próprio experimentou a violência de não poder falar de sua dor, dessa incomunicabilidade angustiante que se fez presença constante em Auchwitz: o uso da palavra para comunicar o pensamento, esse mecanismo necessário e suficiente para que o homem seja homem, tinha caducado" (Levi, 1989, p. 80).

No mesmo sentido, Costa continua com as seguintes interrogações:
Como seria possível comunicar o irrepresentável? Como seria possível registrar
a memória de um acontecimento que não tem representação num código
compartilhado? Essas produções nos revelam que a memória não é relato do
acontecido, mas fundamentalmente criação. Nesse ponto, elas colocam em
evidência algo que nosso corriqueiro instinto de preservação não reconhece.
Como diz Gagnebin, a preservação situa a memória na sua dupla face de morte
(1998, p. 10).

A autora ressalta que o relato neurótico é marcado pela repetição, uma repetição que cria. Uma ambigüidade é revelada no retorno do recalcado e demonstra-nos tanto a impossibilidade de lembrar quanto a impossibilidade de esquecer. A insistência de uma cena revela-se encobridora, já que – no discurso e como representação – não é suficiente para abarcar o acontecimento.

 

A clínica do testemunho

A partir das considerações feitas até aqui, vamos agora discorrer brevemente sobre a temática do testemunho associada à clínica psicanalítica.

Na clínica psicanalítica vemos sujeitos testemunhando suas histórias, escolhendo palavras que também se mostram insuficientes para traduzirem a dor da perda, o enredo do sintoma, a novela familiar, os mitos individuais etc, e que são ainda assim a expressão mais eloqüente, mais essencial e inerente ao ser falante.

O paciente, diz Levy,

na sua fala traz ao analista fragmentos de histórias vividas ou sonhadas,
ouvidas, cenas primitivas e episódios de conflito, sonhos etc... sendo que o
trabalho analítico retira destes pedaços, às vezes desconexos, uma história
ainda não contada,
performática na medida em que revela um valor de verdade
(1994, p. 41).

No processo analítico, o que se espera é que o sujeito percorra um caminho em que possa ter como resultado dessa experiência algo mais autêntico do que aquilo que havia no começo.

Para Gagnebin (1999), o esforço da narração analítica consiste na quebra de uma ilusória coerência de uma história renitente, que ao mesmo tempo em que entretém o sujeito como uma garantia de identidade, o aprisiona. As intervenções analíticas provocam rupturas na narrativa excessivamente convincente, aponta seus furos, retomam o tropeço e o ato falho para que o sujeito tenha a possibilidade de se arriscar (no presente) a agir diferentemente.

A hermenêutica, com o privilégio da interpretação, da atribuição de um sentido, é posta à prova pela singularidade da interpretação psicanalítica do abrir sentidos, da análise da polissemia do discurso e da observação da relevância de suas equivocidades. Além disso, Gagnebin afirma que:

Em sua teoria da narração e em sua filosofia da história em particular, o indício de verdade de narração não deve ser procurado no seu desenrolar, mas, pelo contrário, naquilo que ao mesmo tempo lhe escapa e a escande, nos seus tropeços e nos seus silêncios, ali onde a voz se cala e retoma fôlego (...). Essas paradas e esses silêncios são outros tantos signos daquilo que deve ou quer ser negado pelo historiador oficial ou, num mecanismo muito próximo, pelo eu consciente que se edifica sobre o recalque (1999, p. 115).

É onde o fluxo das palavras se exaure que existe a possibilidade de vir a tornar a fluir, desta vez de uma fonte desconhecida e incerta. Assim, é possível afirmar que é no movimento de nossas palavras que a verdade se sustenta, e ao mesmo tempo, que nossa frágil" linguagem se vê ameaçada.

A proposta do modelo interpretativo psicanalítico dá relevância ao que não é dito, ao desejo que aparece apesar de recalcado, ao que é eximido da narrativa, mas que deixa rastro a quem puder ouvir. É nesse sentido que o sintoma, o sonho, o chiste ou o lapso configuram-se não como uma produção voluntária, mas como derivados ou formações do inconsciente.

As formações substitutivas criadas pela censura por meio dos efeitos do deslocamento produzem alusões àqueles conteúdos mantidos ocultos. As ligações das alusões às suas formas de origem são difíceis de se reconhecer, podendo ser cômicas, singulares, ou parecerem a princípio enganosas.

O sentido do sonho, como do chiste, não é decifrável, único, mas se revela por uma relação de contigüidade de um discurso contextual, no qual o antes e o depois, colocados na linguagem, conferem sentidos ao que está sendo dito. Essa incidência do significante no sujeito (discurso) fala de quem ele é (sujeito do sintoma).

Se por um lado a tentativa de colocar palavras nas vivências é a principal atividade da narratividade, a psicanálise abre um espaço importante de discussão sobre os entraves e artimanhas do discurso.

Estamos marcando um tempo para que o paciente fale do não-tempo da repetição e de seu aprisionamento no sintoma, que o impedem de continuar escrevendo sua história. Paradoxalmente, o tempo da sessão (...) será palco do não tempo da transferência, que torna presentes modos de relações pregressas, que, todavia, jamais deixaram de existir (Millan, 2002, p. 92).

O relato garante a intimidade da história que a análise nos fornece. Suas rupturas temporais e suas descontinuidades possibilitam que a linguagem do figurável tenha condições de ser produzida. Conforme Fédida, enquanto o paciente busca a impossível rememoração de sua história pessoal e a suspensão de sua amnésia" em suas próprias falas, o analista, de seu lado, labora a partir de seu próprio recalque, na construção de uma memória anacrônica, que nada mais é senão a construção de uma tópica psíquica possibilitando nomear os lugares dos acontecimentos" (Fédida, 1991, p. 235).

 

Para concluir: as margens da palavra

As questões que incitaram este artigo partiram de indagações acerca do trabalho clínico psicanalítico. Na experiência da clínica psicanalítica, vemo-nos inquietados nos momentos em que as histórias, não raro bastante instigantes, em um dado momento mostram-se insuficientes na análise e na re-significação dos sintomas. Nessas situações, o detalhe, a escuta afinada da transferência, do lapso escondido, das sinuosidades das memórias encobridoras e do encadeamento significante vão sendo reconhecidas, e cada vez mais, produzindo sentidos que dão contorno específico a um fazer clínico.

O contato com a obra de Primo Levi colocou em questão de forma radical esse narrar e escutar histórias, abriu-nos o caminho do tema do testemunho. Como coloca Kehl:

O que diferencia o testemunho de Primo Levi de outros que também trabalharam por ampliar o campo simbólico de modo a incluir nele a experiência sinistra do nazismo é que ele sustenta, como sobrevivente, a posição de quem faz escolas, e de quem responde por elas. Seu suicídio, em 1989, logo depois da morte de sua mãe, é testemunho do preço que se paga por essas escolhas em condições-limite, as condições em que aparentemente não temos mais nenhuma escolha (1998, p. 74).

A partir do testemunho de Levi, muitas questões acerca da temática da narrativa ganham um espaço para serem exemplificadas, questionadas e trabalhadas, bem como suscitam caminhos para pensar questões clínicas. A aproximação entre literatura e psicanálise não é nova; Freud quando perguntado sobre quem eram seus mestres, apontou para sua estante de livros onde ficavam os clássicos da literatura mundial, além de livros de autores que lhe eram contemporâneos.

Quanto às questões clínicas, a psicanálise propõe uma forma singular de trabalho, que admite extrema relevância no que vai além da história contada: propõe que se opere com significantes e que se atente para o lugar da enunciação. Abre espaço para a condição de insuficiência, do saber mais; questiona a passagem entre intenção e expressão, já que nossa obra fundamental", o sintoma, carrega nossas intenções, das quais sabemos muito pouco.

Neste sentido, podemos pensar no sujeito barrado ($) proposto por Lacan, nessa desarmonia constitutiva da ilusão da relação entre intenção e expressão, na tentativa imaginária de uma articulação exata entre pensar-sentir-falar-fazer. A narração descobre aí suas margens.

As fraturas que escandem uma narração são indícios de uma falha mais essencial da qual pode emergir uma outra história, uma outra verdade" (Gagnebin, 1999, p. 119), justamente aí, nesse discurso narrativo, emerge o sujeito da enunciação. São estas enunciações que precisamos cuidar, nos responsabilizar, na medida em que abrem novas metáforas do lembrar, fundamentais para combater o monstro obscuro que tenta apagar os traços da história que não devemos esquecer.

 

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Endereço para correspondência
Márcia Barcellos Alves
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Recebido em: 29/11/07
Aprovado em: 25/06/08

 

 

Márcia Barcellos Alves

Psicóloga; Especialista em Atendimento Clínico – Ênfase Psicanálise (Clínica de Atendimento Psicológico/UFRGS).

Edson Luiz André de Sousa

Psicanalista; Professor (PPG Psicologia Social e PPG Artes Visuais/UFRGS); Analista Membro (APPOA); Doutor em Psicanálise e Psicopatologia (Universidade de Paris VII); Pesquisador (CNPq).

 

Notas

1 Palavra em hebraico que significa catástrofe, desastre.
2 As referências a Levi só serão lembradas, a partir daqui, quando não se tratarem desta obra.
3 Ou, senão, (àqueles que desconsiderarem sua história) desmorone-se a sua casa, a doença os torne inválidos, os seus filhos virem o rosto para não vê-los" (p. 9).
4 Somente o recalque primordial escaparia à ordem da representação
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