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Revista da SBPH

versión impresa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.10 n.1 Rio de Janeiro jun. 2007

 

 

A subjetividade do câncer na cultura: implicações na clínica contemporânea

 

The subjectivity of the cancer in the culture: implications in clinical contemporary

 

 

Leopoldo Nelson Fernandes BarbosaI; Ana Lúcia FranciscoII

I Bolsista (PROSUP/CAPES) do Mestrado em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP.Endereço: Av. Beira Rio, 230/101, Ilha do Retiro. Recife-PE. 50.750-400. Fone: 81 3227-7039 / 81 9245-1890Endereço eletrônico: Lnfbpsi@uol.com.br
II Profa. Dra. Docente da graduação e pós-graduação do departamento de psicologia da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Coordenadora da linha de pesquisa “Práticas Psicológicas em Instituição” e Líder do grupo de pesquisa em Psicologia clínica.Endereço: R. Dr. Geraldo de Andrade, 75, Aptº 1102, Espinheiro. Recife-PE. 52.021-220. Fone: 81 9978-5624 Endereço eletrônico: ana.francisco@terra.com.br

 

 


RESUMO

Este texto aborda a construção subjetiva do paciente, especificamente aquele com diagnóstico de câncer, uma doença culturalmente estigmatizada e com representações simbólicas negativas. Ressalta a importância desta compreensão, sobretudo no que diz respeito às suas repercussões para o equilíbrio emocional do paciente, que afeta, significativamente, o seu quadro clínico geral. Corroboramos com a literatura na qual estudos realizados indicam que as representações construídas pela cultura somadas aos efeitos produzidos pelo seu tratamento podem influenciar na forma de enfrentamento da doença. Diante disto, discussões e reflexões acerca desta temática são importantes na medida em que podem contribuir para um maior aprofundamento da prática clínica no contexto hospitalar, visando um tratamento que contemple tanto o orgânico como o psíquico destes pacientes, promovendo desta forma, um bem estar integral, tal como preconizado pela Organização Mundial de Saúde.

Palavras-chave: Câncer, Subjetividade, Cultura, Psicologia clínica.


ABSTRACT

This text approaches the construction subjective of the patient, specifically that one with cancer diagnosis, a culturally mark illness and with negative symbolic representations. The importance of this understanding standes out, over all in that it says respect to its repercussions for the emotional balance of the patient, who affects, significantly, its general clinical picture. We corroborate with literature in the which carried through studies indicate that the representations constructed for the culture added to the effect produced through its treatment can influence in the form of confrontation of the illness. Ahead of this, quarrels and reflections about of this thematic one are important in the measure where they can contribute for a bigger deepening of the practical clinic in the hospital context, aiming at a treatment that can contemplate the organic one in such a way as the psychic one of these patients, promoting of this form, a whole welfare, such as praised for the World Health Organization.

Keywords: Cancer, Subjectivity, Culture, Clinic psychology.


 

 

INTRODUÇÃO

Preocupações com enfermidades orgânicas são existentes desde muito tempo. Na antiguidade as doenças eram atribuídas a espíritos do mal, punição divina ou forças da natureza desequilibradas. E enquanto a medicina se desenvolvia através do tratamento dos xamãs com a utilização de ervas, deuses eram invocados, exorcismos realizados e a cura, geralmente, atribuída a um milagre. Nesta época, pouco se conhecia sobre qualquer coisa.

Apesar do grande avanço tecnológico no campo da saúde, da enorme influência da medicina no desenvolvimento de técnicas e no tratamento de doenças graves, ainda hoje, existem representações e estigmas presentes na nossa cultura que nos remetem a essa época anterior. E, ainda hoje, podemos dizer que pouco se conhece sobre muita coisa.

A partir do intrigante termo “doença popular”[1], este artigo se propõe a abordar as repercussões da subjetividade relacionadas a construção de estigmas culturais em torno do câncer, estreitando um pouco mais o binômio saúde/doença na clínica contemporânea.

Longe de querer esgotar o tema, esta discussão sugere muito mais uma provocação ao leitor, o qual, tomando como base a relação cultura, subjetividade e câncer, poderá elaborar outras construções a partir das suas experiências pessoais e profissionais, estendendo-as a outras doenças ou enfermidades recorrentes na contemporaneidade.

 

A SUBJETIVIDADE DE UMA DOENÇA POPULAR “MALDITA”

A importância dos valores culturais na constituição do sujeito é uma antiga discussão. Morin (2000) infere que, apesar do homem ser reduzido à idéia de indivíduo, ele é composto por características consubstanciais que comportam a dimensão social, biológica, psicológica e antropológica, entre outras.

Partindo deste pressuposto, Boff (1997) ressalta que o homem foi o criador da sua própria cultura a partir das intervenções sobre si mesmo e sobre a natureza. Estas intervenções proporcionaram a criação do seu habitat, denominado de ethos(ética) pelos gregos na antiguidade e assim associado à morada humana. Em outras palavras, ethos refere-se ao “(...) pedaço do mundo que escolhemos cuidadosamente, organizamos e nele construímos nossa habitação permanente” (Boff, 1997. p. 62).

De modo geral, a formação cultural influencia na vida das pessoas em diversos aspectos: suas crenças, comportamentos, percepções, emoções, linguagem, religião, rituais, estrutura familiar, dieta, modo de vestir, imagem corporal, conceitos de tempo e espaço, atitudes frente à doença e outras desventuras, podendo todos, apresentar implicações para a saúde e para a sua assistência (Helman, 2003).

Os estudos das representações sociais em saúde e da antropologia médica vieram mostrar que o processo saúde-doença também é atravessado por elementos culturais, sociais e econômicos, sendo compreendido e vivenciado diferentemente pelos vários atores que dele participam (Atkinson,1993). Ou seja, as definições de saúde e doença podem assumir diferenças nos diversos grupos, classes sociais, indivíduos e famílias (Oliveira,1998; Helman, 2003). Estas definições são o resultado do meio cultural e da herança de um longo processo acumulativo do conhecimento e experiência adquiridos pelas gerações que nos antecederam (Laraia, 2005).

Para Helman (2003), o adoecimento é um padrão resultante da presença de sinais e sintomas. Na maioria dos casos, uma pessoa é definida como doente quando há concordância entre as suas próprias percepções de comprometimento ao bem-estar e as percepções das pessoas ao seu redor.

Estas percepções são, geralmente, fruto de experiências subjetivas, as quais, a maioria das pessoas pode experimentar na sua rotina diária de forma branda. Porém, quando há um consenso entre pessoas de uma mesma cultura ou comunidade sobre um padrão de sinais e sintomas, sobre sua origem, seu significado e seu tratamento, Helman (2003) afirma que se trata de uma “doença popular”.

As doenças populares são mais do que sinais e sintomas físicos. Para este autor, essas doenças possuem uma série de significados simbólicos, morais, sociais, psicológicos, de seu valorativas e de crenças, assim como de toda ambiência que o cerca e produzem ressonâncias, tanto de forma direta como indireta, no modo de sofrer dos indivíduos. Em outros casos, o quadro clínico da doença é uma maneira de expressão, culturalmente padronizada, do envolvimento do enfermo em conflitos sociais.

O autor destaca, ainda, que uma das características de muitas “doenças populares” é a somatização, definida por Kaplan e cols. (1997) como uma conversão defensiva de derivativos psíquicos em sintomas corporais; uma tendência a manifestações somáticas ao invés de psíquicas, fato que, em muitas culturas, repercute no aprendizado de doenças como forma de responder a uma série de sintomas emocionais ou estresses sociais.

Contudo, a compreensão de muitas doenças permanece inalterada pelo modelo médico e fortemente arraigada ao folclore tradicional. Mas, além disto, algumas doenças graves e de risco, também, se tornaram “doenças populares”, como é o caso, por exemplo, da Aids, das doenças cardíacas e do câncer. Doenças carregadas de estigma, que podem fazer com que o enfermo se oculte, se afaste dos seus papéis sociais, que não queira mais se relacionar com outras pessoas, desista dos seus sonhos ou, simplesmente, não se disponha a levar adiante um tratamento por acreditar na impossibilidade de cura.

O estigma dessas doenças, ou de enfermidades ditas graves e difíceis de tratar, torna-se fonte de ansiedade e, em muitos casos, elas são muito mais do que uma simples condição clínica.

Especificamente em relação ao câncer, diversos autores (Bahnson, 1997; Carvalho, 1992; Cyrillo & Pazotto, 2000; Holland, 1990), principalmente os ligados a psico-oncologia, apontam questões que, a nosso ver, permitem estabelecer conexões possíveis entre a cultura e a subjetividade de pacientes oncológicos como uma valiosa contribuição para se repensar a clínica no contexto hospitalar.

 

UMA DOENÇA CULTURALMENTE ESTIGMATIZADA

Apesar de toda a evolução tecnológica e das formas de tratamento, o estigma do câncer imprime sua marca na cultura e, ainda hoje, a cristalização deste estigma repleto de representações negativas parece não se dissolver.

Segundo Holland (1990), o medo do câncer permanece por séculos estigmatizado na nossa sociedade, nos pacientes com a doença e, embora atualmente o câncer apresente uma forma de tratamento mais avançada sendo objeto de pesquisas sistemáticas, o medo persiste e o impacto pode causar modificações nas atitudes frente à doença.

Do ponto de vista psicológico, encontramos na literatura diversos autores que abordam o estigma do câncer na nossa sociedade relacionando-o a sentimentos negativos, quando não à expectativa de morte. Paira sobre a nossa sociedade um mito de que o câncer é uma “doença maldita” e, desta maneira, pode traduzir conotações negativas se comparado a outras enfermidades. Esta dificuldade na aceitação, pela sociedade, pode ser atribuída a diversos fatores, destacando-se, entre eles, o temor de todos a um sofrimento prolongado nas etapas terminais do câncer (Bahnson, 1977).

Carvalho (1994) ressalta os temores do paciente oncológico relacionados à perda dos ideais, aos objetivos de vida, aos papéis sociais e ao fato de causar sofrimento à família. Além disso, algumas dificuldades psicossociais podem ser observadas, como enfrentar a possibilidade da morte, ansiedade pela cirurgia, mudança no desempenho dos papéis sociais, enfrentamento de mudanças corporais decorrentes da cirurgia e tratamentos complementares (Nascimento-Schulze, 1997).

Segundo Barbosa, Francisco e Efken (2007), em pacientes oncológicos e que se submetem aos procedimentos invasivos, o registro de “sentença de morte” que acompanha essa doença, não raro, causa sentimento tão profundo de angústia, parecendo não ter contornos, chegando mesmo, a tornar-se agonia e desalojamento tanto nos pacientes quanto em seus familiares. O registro que fica não é do medo de “simplesmente morrer”, mas sim o de “morrer de câncer”, dado o seu estigma e representações negativas construídas ao longo dos séculos.

Para Botega (2002), a idéia de morte aciona inúmeras defesas sociais contra emoções e sentimentos angustiantes. O medo e a forma de enfrentá-la não dependem da morte em si, mas sim do morrer que se tem, com o medo da dor, do desfiguramento, da mutilação, da falta de ar, além do receio de isolamento e abandono.

O câncer, também, é associado com desfiguramento, dor, crise financeira, trauma emocional, perda das funções corporais e morte; o diagnóstico e o tratamento podem demandar mudanças de papéis, dependência, alteração na imagem corporal, modificações no estilo de vida e possíveis perdas no funcionamento sexual (Dierkhising, 1987, citado por Kovács, 1994). Observamos, no paciente oncológico, uma sucessão de crises que se inicia pelo impacto do diagnóstico, com todas as representações sobre a doença seguida da carga emocional gasta durante o tratamento.

Corroboramos com o pensamento de Bahnson (1977), de que a adaptação do paciente ao câncer depende muito de quem ele é, suas atitudes filosóficas frente à vida, seus antecedentes educacionais, étnicos, sociais, religiosos, da sua idade, sexo, posição que ocupa na vida e de uma inúmeras variáveis psicológicas. Ou seja, de sua construção subjetiva.

Observamos a relevância que têm as representações construídas sobre si mesmo e sobre a doença. Dado o elemento cultural que todos nós carregamos, conhecer essas representações que atravessam constantemente o sujeito significa abordar aspectos complexos que podem interferir de modo direto ou indireto no cuidado, no tratamento e na vida do paciente e seus familiares.

 

RESSONANCIAS NA CLÍNICA CONTEMPORÂNEA

As doenças fazem parte da vida cotidiana e as repercussões psicossociais decorrentes destas desempenham um papel complexo na forma como reagem os sujeitos. Nas palavras de Leitão (1993), o diagnóstico de uma doença remete a uma luta interior daquele que sofre com um forte sentimento de dúvida que, a princípio, poderá, até mesmo, dificultar a admissão da verdade.

Indo um pouco mais além, Oliveira (1998) ressalta que a maneira pela qual o indivíduo se percebe como “doente” refletirá no modo como ele relata a evolução de sua doença e o sentido dado ao tratamento.

Explicitamente em relação à subjetividade construída em torno do câncer, o comportamento do paciente frente ao diagnóstico e ao tratamento pode ser diretamente afetado. A responsabilidade se estende à tentativa de ouvir o paciente e enxergar além da sua palavra, já que, neste aspecto, a subjetividade construída parece tornar-se um eixo de problematizações e contribuições bastante significantes tanto para aquele que sofre quanto para os profissionais envolvidos no processo.

Se tomarmos a clínica, tal como é definida por Figueiredo (2004), a partir de um ethos, comprometida com a escuta do interditado e com a sustentação das tensões e dos conflitos, poderemos afirmar que esta sustentação engloba diferentes dimensões: o existir no mundo exigindo espaço tanto para reparação como para recolhimento e proteção; a importância da presença de um rosto humano capaz de, com sua escuta, dar contorno ao sofrimento tornando-o suportável, entre outras.

Desde esta perspectiva, o sentido de clinicar, tão caro aos profissionais de saúde, retorna ao seu sentido original podendo ser pensado como um modo de dar a ver e de configurar o que não se mostra por si mesmo. A sua caracterização é dada, a priori, pela:

 “(...) submissão do sujeito a um outro que irrompe e se eleva a sua frente, expressando sofrimento, fazendo-lhe exigências, desafiando sua capacidade de atenção e hospedagem, escapando em maior ou menor intensidade ao campo de seus conhecimentos e representações, furtando-se ao seu domínio, desalojando-o. Mas, será também esse mesmo outro que na sua penúria e no seu maior desamparo pode assumir diante do sujeito uma posição ensinante. Clinicar é, assim, inclinar-se diante de, dispor-se a aprender com, mesmo que a meta, a médio prazo, seja aprender sobre” (Figueiredo, 2004. p. 165-166).

Corroborando com este pensamento, Lévy (2001) já propunha diferentes maneiras de “inclinar-se” sobre o leito de uma pessoa que sofre. Entre estas, pode-se auscultá-la, observá-la, apalpá-la, escutar sua queixa, testemunhar-lhe compaixão, reconfortá-la com palavras tranqüilizadoras, interrogá-la ou conversar com ela.

Considerando a complexidade humana como seu aspecto constituinte (Morin, 2000; Sundfeld, 2000), a compreensão clínica exige um movimento dinâmico para dar sentido à realidade. Lembramos, aqui, o pensamento de Lévy (2001), ressaltando que os procedimentos de intervenção clínica não pretendem responderem sozinhos a todas as situações e problemas, visto que exigem a participação dos interventores e dos atores sociais.

De acordo com Sundfeld (2000), a idéia de complexidade enuncia um sujeito dinâmico, relacional, dialógico que funda o ser vivo em sua dimensão ontológica[2] e ôntica[3]. Neste sentido, adotar o pensamento complexo nas práticas psicológicas exige um redimensionamento das ferramentas clínicas em um novo posicionamento à concepção clássica.

Embora a clínica tenha a sua origem associada, principalmente, à medicina na ajuda e cuidado aos pacientes acamados e hospitalizados, ela vem sendo constantemente ampliada e transformada (Lévy, 2001). Hoje, a perspectiva clínica representa um importante desafio teórico e epistemológico no que diz respeito a significações e ao devir das ciências humanas e do seu lugar na sociedade.

Dada a complexidade no acompanhamento direcionado aos pacientes oncológicos, em que o settingterapêutico pode ser o consultório, o quarto de um hospital ou um leito de UTI e o suporte emocional pode ser realizado através de vários encontros, ou de um único, o objetivo é escutar e tentar dar um novo significado ao que faz sofrer.

Aqui, intencionalmente elegemos a palavra “escutar” para remarcar sua diferença qualitativa com o “ouvir”; da mesma forma que existem estas diferenças entre “ver” e “olhar”. A clínica se propõe a olhar e escutar e não a ver e ouvir.

O lugar da clínica é o lugar do cuidado, e isso independe do referencial teórico, mas sim de um compromisso ético. Nas palavras de Lévy (Op. Cit.), a proposta é a de re-inserir o sujeito e a relação intersubjetiva no movimento que o permite aprender ou “compreender” uma totalidade significante na qual ele mesmo está inserido.

Para a atuação clínica, se faz necessário, antes de tudo, perceber em que contexto o paciente está situado, de que lugar ele fala para, a partir daí, possibilitar o encontro de novos sentidos à sua subjetividade que, neste caso, apresenta construções associadas a uma “doença popular” maldita, favorecendo a formação de um conjunto de sofrimentos que, como tantos outros, merecem a nossa atenção.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Termo descrito no decorrer do artigo e proposto por Helman (2003).
[2] “Ontológica” relaciona-se aos fundamentos da condição humana. O que funda o ser humano para além do tempo, além do biográfico (Safra, 2005).
[3] “Ôntica” relaciona-se aos acontecimentos no tempo e no mundo, aos registros da experiência (Safra, 2005).

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