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Psicologia: teoria e prática
versión impresa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.11 no.3 São Paulo 2009
ARTIGO ORIGINAL
A identidade como fator de imunidade psicológica: contribuições da clínica intercultural perante as situações de violência extrema
Identity as a factor of psychological immunity in situations of extreme violence: contributions of intercultural clinical psychology
La identidad como factor de inmunidad psicológica: contribuciones de la clínica intercultural a las situaciones de violencia extrema
Lucienne Martins BorgesI; Jean-Bernard PocreauII
I Universidade Federal do Paraná
II Universidade Laval, Canadá
RESUMO
O corpus teórico da clínica intercultural (etnopsiquiatria) e a prática clínica que a sucede esclarecem certas analogias entre os mecanismos psicológicos, presentes tanto na tortura quanto no terrorismo, particularmente, em sua dinâmica de ação (a intrusão), como em alguns de seus efeitos (o traumatismo). O acompanhamento psicológico de refugiados e vítimas de tortura, realizado no Service d'Aide Psychologique Spécialisée aux Immigrants et Réfugiés (Sapsir) da Universidade Laval, no Canadá, ilustrado nesse artigo por meio de um estudo de caso, demonstrou que alguns pacientes não apresentavam os sintomas teoricamente esperados das violências vividas. Diversos fatores de proteção foram identificados como, particularmente, o enraizamento em uma identidade cultural definida, um forte sentimento de pertencimento, ainda ativo, ao grupo de referência. Tais elementos culturais contribuem para garantir a proteção psicológica do indivíduo e a manutenção de sua segurança interna, inscrevendo-se em um universo de significações e no lugar de sujeito-ativo e não de vítima-objeto.
Palavras-chave: Etnopsiquiatria; Psicoterapia intercultural; Violência; Tortura; Iimigração.
ABSTRACT
Both the theoretical corpus of intercultural clinical psychology (ethnopsychiatry) and its clinical practice have identified certain analogies between torture and terrorism, particularly in the action dynamic and in certain effects such as traumatism. And yet, at the Sapsir (Service dAide Psychologique Spécialisée aux Immigrants et Réfugiés at Université Laval, Canada) refugees and torture victims often do not show the expected symptoms of exposure to extreme situations. The case study related in this paper, show that important variables appear to be a strong attachment to a cultural identity and an active sense of belonging to the reference group. These cultural elements favour the psychological protection of the individual and maintain an internal sense of security by placing the individual in a rich, meaningful cultural universe, and giving him the status of an active subject rather than a passive victim.
Keywords: Ethnopsychiatry; Intercultural psychotherapy; Violence; Torture; Immigration.
RESUMEN
El cuerpo teórico de la clínica intercultural (etnopsiquiatría) y la práctica clínica que resulta de éste resaltan analogías entre los mecanismos psicológicos presentes tanto en la tortura como en el terrorismo, especialmente en su dinámica de acción (efracción) y en algunos de sus efectos (trauma). El apoyo que se le brinda a los refugiados y a las víctimas de tortura en el Servicio de Ayuda Psicológica Especializado en Inmigrantes y Refugiados, Universidad Laval, Canadá, como el estudio de caso lo ilustra en el artículo, se demostró que algunos de los pacientes no tuvieron síntomas que teóricamente se esperan de la violencia vivida. Factores de protección han sido identificados, especialmente el arraigamiento en una identidad cultural. Estos elementos culturales contribuyen a la protección psicológica del individuo y el mantenimiento de la seguridad interior, inscribiéndolo así en un universo de significados y en un estado de sujeto-activo y no de víctima-objeto.
Palabras clave: Etnopsiquiatria; Psicoterapia intercultural; Violência; Tortura; Inmigración.
Introdução
O terrorismo e a tortura suscitam medo. Eles provocam pavor e desencadeiam o horror. Tal é seu método. Quanto às finalidades, elas dependem das diversas ideologias, nas quais o terrorismo e a tortura se apoiam, e a partir do lugar de que são observadas. O mesmo ocorre quando se deve falar de seus mecanismos ou analisá-los, com base em uma disciplina específica. É imprescindível, então, primeiramente, especificar de que lugar, fundamentadas em que função, em que tipo de atividade e em que população essas observações aqui expostas foram realizadas.
As observações apresentadas no presente trabalho foram obtidas por meio da prática da psicologia, com psicólogos clínicos formados em etnopsiquiatria1 e que atuam em uma clínica especializada no atendimento de pessoas refugiadas o Service d'Aide Psychologique Spécialisée aux Immigrants et Réfugiés (Sapsir) (Serviço de Atendimento Psicológico Especializado aos Imigrantes e Refugiados) da Universidade Laval, em Québec, no Canadá. Essa clínica, fundada em 2000, exerce suas atividades no Departamento de Psicologia da Universidade Laval e constitui uma das áreas de atividade da Unité d'Ethnopsychiatrie et de Stress Post-Traumatique (Unidade de Etnopsiquiatria e de Estresse Pós-Traumático). Desde 2004, o Sapsir é reconhecido pelo Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos como um dos programas canadenses que oferecem atendimento psicológico e psicossocial a vítimas de tortura. Uma parte importante das atividades do Sapsir é destinada a oferecer atendimentos psicológicos a pessoas refugiadas, que foram muitas vezes expostas, em seu país de origem, a situações de violência extrema, tais como a guerra e a tortura. A experiência clínica, mas sobretudo humana, transmitida por essas pessoas e adquirida junto a elas conduziu-nos a pensar o sofrimento, a tristeza, em outros termos do que aqueles propostos pela psicologia clássica e a nos apoiar em um corpus teórico e metodológico específico: o da etnopsiquiatria.
Os conceitos e as compreensões propostos por essa disciplina permitem observar certas analogias semelhanças entre os mecanismos de ação do terrorismo e os da tortura. Os preceitos da etnopsiquiatria permitem, igualmente, analisar os impactos dessas ações sobre o funcionamento psíquico das pessoas atingidas direta ou indiretamente, particularmente os efeitos da tortura (SIRONI, 1999). Com base nessa disciplina e em sua prática, é igualmente possível compreender o que leva certas pessoas expostas a tais situações que todos julgariam, com precisão, irremediavelmente devastadoras a não apresentarem os sintomas esperados ou, ao menos alguns deles, da violência à qual foram submetidos.
Não se trata, aqui, de imunidade psicológica no sentido de que tais experiências de terror não deixassem vestígio ou sequela. Infelizmente, isso é impossível, pois tais sequelas se tornam definitivamente inscritas no corpo e nas histórias dessas testemunhas-sobreviventes. Fazemos referência, neste texto, à imunidade psicológica no sentido de que o sujeito pode manter a capacidade de continuar a existir, depois e apesar do horror ao qual foi submetido. Ele consegue continuar sua existência como ser humano, totalmente humano, isto é, portador de um sentido, de um projeto, em contato com a realidade e vinculado aos outros e ao grupo social.
Referimo-nos à etnopsiquiatria como disciplina suscetível de esclarecer, à sua maneira, a temática do terrorismo, da tortura e da imunidade psicológica ou, ao menos, de oferecer uma grade de leitura complementar àquela das outras disciplinas. Fundada por Georges Devereux (1972), mas na continuidade dos trabalhos de alguns psicanalistas (Freud, Ferenczi, Géza Roheim e outros), a etnopsiquiatria é uma teoria e um tipo de intervenção psicoterápica que reserva partes iguais à dimensão cultural do transtorno e do seu tratamento e à análise dos funcionamentos psíquicos (NATHAN, 1986; MORO, 1998, 2007). A prática da etnopsiquiatria necessita de uma iniciação a outras formas de pensar, de dizer e de fazer, e é, também, pela originalidade de seu dispositivo terapêutico e pela natureza de suas intervenções que ela se distingue das demais psicoterapias, mais ortodoxas e ocidentais.
Levar em consideração a dimensão cultural significa apoiar-se sobre a noção de cultura, sobre as funções da cultura no equilíbrio dinâmico da pessoa e em seu papel na estruturação psíquica. A cultura é, de certa maneira, um reservatório de significações às quais o ser humano recorre para encontrar sentido para as suas experiências. Assim, a cultura protege do pavor, da perplexidade, da confusão, tornando o real significante e previsível (NATHAN, 1986). Essa função de proteção é fundamental quando se trata de fenômenos terroristas, cuja especificidade é irromper na ordem do cotidiano, sem que seja possível prever ou antecipar o lugar, a data e a hora do ato terrorista.
Lembraremos aqui, brevemente, algumas das funções da cultura. A cultura: 1. estrutura as representações por meio da língua e delimita o dentro e o fora, o mundo interno do mundo externo; 2. opera como um envelope cultural; 3. disponibiliza aos seus membros as defesas comuns contra a angústia e a solidão, verdadeiros amortecedores do Real, segundo a expressão de Laplantine (2007, p. 89); 4. propõe modalidades para a resolução dos conflitos e indica maneiras de se comportar em situações de estresse intenso e durante os momentos críticos e significativos da existência, fixando ritos, rituais de iniciação (nascimento, casamento, mortes, catástrofes etc.); 5. assume um papel fundamental na estruturação da identidade, na sua manutenção e nas suas transformações ulteriores.
Em suma, pressupõe-se que a cultura garanta as funções de proteção, de organização das significações, de filtro da realidade e de delimitação das fronteiras entre o dentro e o fora, entre o mundo interno e o externo.
À luz desses conceitos, o que se pode dizer das analogias entre terrorismo e tortura? Entende-se aqui por tortura a definição dada pela Organização das Nações Unidas2, na qual três elementos devem estar presentes: a agressão, a intencionalidade e o vínculo do torcionário com uma função pública. Quanto ao terrorismo, entendem-se os atos cometidos com intenção de causar a morte de ou lesões corporais graves a um civil, ou a qualquer outra pessoa que não participe ativamente das hostilidades em situação de conflito armado, quando o propósito do referido ato, por sua natureza e contexto, for intimidar uma população ou compelir um governo ou uma organização internacional a agir ou abster-se de agir (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1999).
Nos dois casos, trata-se de provocar efeitos destruidores no psiquismo e no corpo da pessoa, na sua integridade e na sua unicidade. Da mesma maneira, o grupo social em sua totalidade, tudo o que o representa as diversas instituições políticas, jurídicas, comerciais, suas produções coletivas, principalmente seu imaginário, encontra-se afetado e fragilizado. Essa fragilidade ocorre, pois o que é atingido pela tortura e pelo terrorismo é o centro da segurança do grupo social, isto é, seu funcionamento cultural. O terrorismo visa tornar inválidas as funções da cultura que ele tomou por alvo. As consequências destruidoras da tortura e do terrorismo, tanto nos planos social e cultural como nos planos psíquico e psicopatológico, são a ilustração perfeita dos efeitos que produzem “[...] um traumatismo intencional deliberadamente induzido e pensado pelo homem (SIRONI, 1999, p. 13)3. A intencionalidade malevolente, terrivelmente sutil e insidiosa, encontra-se no centro desses atos de violência, e isso é totalmente visível e reconhecível nas reações que ela provoca nas vítimas. O que chama a atenção é a concordância dos mecanismos de ação da tortura e aqueles dos ataques terroristas. Os dois se apoiam sobre os mesmos princípios: utilização da imprevisibilidade, da dor física e psíquica, da mobilização do risco de morte, do pavor, da absurdidade lógica.
Essa intencionalidade determina a diferença entre estes traumatismos e aqueles provocados por catástrofes naturais ou eventos acidentais, e mesmo aqueles cometidos por seres humanos (assalto, por exemplo). Na realidade, quando se trata da intencionalidade malevolente, devem ser levadas em conta, necessariamente, as pessoas que têm essa intenção, que se encontram por trás do ato terrorista, escondidas, invisíveis da mesma maneira como a pessoa torturada se liga, a despeito dela, ao seu torcionário. Nos dois casos, o ato terrorista e o ato de tortura constrangem as vítimas a pensar os autores de tais atos, a criar um espaço no campo de suas representações de seu espaço mental. Nos dois casos, eles são interiorizados e ocupam um lugar que conquistaram da intrusão nos envelopes psíquicos e culturais. Trata-se, assim, de uma verdadeira situação de influência de uma influência que destrói que enlouquece. Doravante, as vítimas desses atos deverão lidar com esses terceiros invisíveis, interiorizados e onipresentes que são os torcionários e os terroristas (SIRONI, 1999).
O objetivo em vista, o efeito procurado, é o de produzir intencionalmente um traumatismo individual ou coletivo (generalizado) e de coagir o outro ou o grupo social a renunciar à sua liberdade de ação e às suas escolhas, aos seus valores e às suas convicções. Em outros termos, esses atos de violência organizada constituem um empreendimento deliberado de transformação da identidade, pela destruição do envelope e pela ruptura dos laços permanentes mantidos entre os fatos psíquicos e os universos referenciais (SIRONI, 1999; NATHAN, 1994). Deparamos, então, com uma tentativa brutal de deculturação que constitui uma ameaça de aniquilação e de despersonalização.
A ameaça identitária, como ela é imposta pela tortura e pelo terrorismo, foi o que os americanos perceberam, intuitivamente, depois dos acontecimentos de 11 de setembro 2001. A imprevisibilidade (aparente) desses atos, o pavor e os riscos de morte suscitados por tais atos desencadearam uma reação maciça de afirmação e de proteção da identidade: proliferação da bandeira nacional, cerimônias e ritos patrióticos múltiplos, discursos dos líderes de diferentes associações políticas e religiosas, reafirmando o pertencimento à pátria-mãe.
A violação das fronteiras e do território e dos controles de segurança é vivida e sentida não apenas como uma intrusão do envelope cultural, mas também político. A cultura não pode mais preencher sua função de delimitação do mundo interno e do mundo externo (NATHAN, 1986; MORO, 2007). De onde vem o inimigo, de onde vem o perigo? De dentro ou de fora; território geográfico e psíquico? Não poder responder a essa questão alimenta a confusão e a desordem. Relembrando um pouco os detalhes dos atentados de 2001, a angústia foi, em seguida, reforçada e confirmada pelo ataque do bacilo de carvão, não reivindicada nem identificada. Quanto ao autor presumido desse terrível cenário, ele aparecia e desaparecia das telas de televisão e da internet, como um personagem virtual, inapreensível, depositando falas ativas e ameaçadoras que iriam penetrar o núcleo das pessoas fragilizadas pelo horror. As autoridades questionaram, em seguida, o mundo dos mortos, procurando provas invisíveis de seu destino. Encontrava-o no mundo dos vivos ou no mundo invisível, subterrâneo o mundo dos mortos? Essa breve análise demonstra quanto a lógica terrorista é terrivelmente eficaz e quanto ela se apoia sobre os mesmos mecanismos psicológicos da tortura. Ela tem os mesmos objetivos: destruir o Outro, física e psiquicamente, constranger seus pensamentos e seus comportamentos, impor sua lógica, tomar o controle do que o constitui como ser humano: sua liberdade.
Existiria um antídoto para essa lógica destrutiva de influência, para esses processos e essas técnicas de infiltração do núcleo da identidade (NATHAN, 1994)? Como expulsar os torcionários ou os terroristas interiorizados? A etnopsiquiatria clínica propõe algumas pistas de soluções técnicas, como o ataque do culpado, por meio de uma contralógica que visa desfazer o que o torcionário conseguiu fabricar, considerando esse terceiro invisível e interiorizado o torcionário da mesma forma como ele pensou aqueles que ele torturou ou aqueles que ele terrorizou (SIRONI, 1999).
A experiência clínica adquirida no Sapsir leva-nos a privilegiar a reconstrução identitária como instrumento terapêutico (MARTINS BORGES; POCREAU, 2009). O acompanhamento dos refugiados e das vítimas de guerra e de tortura permitiu constatar que alguns dentre eles não apresentavam os sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA, 2002), mesmo tendo sido expostos a situações de violências extremas. Alguns fatores puderam ser identificados como fatores protetores de equilíbrio psíquico: o enraizamento em uma identidade cultural bem definida, a continuidade de si por meio das representações culturais que permaneceram operacionais, um forte sentimento de pertencimento ao grupo de referência étnica e vínculos ativos com o grupo social (por intermédio das atividades com membros da mesma origem cultural).
Para ilustrar tais ideias, serão expostas observações feitas com base na prática clínica no Sapsir. Mas, antes de iniciar tais observações, em que consiste o Sapsir?
Service d'Aide Psychologique Spécialisée aux Immigrants et Réfugiés (Sapsir)
O Service d'Aide Psychologique Spécialisée aux Immigrants et Réfugiés (Sapsir), cujas atividades são realizadas na Clínica de Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Laval, em Québec, no Canadá, é o fruto de reflexões que se referem à importância da codificação cultural na expressão e na estruturação do sofrimento psicológico de um grande número de imigrantes e refugiados.
O projeto de criação do Sapsir apesar de já fazer parte dos interesses profissionais de seus fundadores foi lançado pela Agência da Saúde e dos Serviços Sociais da Capital Nacional (Agência) na cidade de Québec, no Canadá. A Agência, representante administrativo regional do Ministère de la Santé et des Services Sociaux du Québec (2009), tem por missão geral criar, em seu território, uma organização de serviços integrados a fim de tornar os serviços mais próximos da população e facilitar, assim, o encaminhamento de todas as pessoas dentro da rede de serviços. Em decorrência dessa política de oferta de serviços à população, a Agência estava cada vez mais preocupada com as dificuldades (no que se refere à acessibilidade e aos resultados esperados) encontradas nos serviços oferecidos à população imigrante. Entre os elementos preponderantes à criação dessa clínica especializada, o aumento do número de imigrantes permanentes na região de Québec é um fato significativo. Com o aumento do efetivo de imigrantes, os dados gerais que caracterizam a imigração, tais como o multiculturalismo, as contribuições à sociedade de acolhimento etc., crescem e se diversificam. Porém, não são apenas os efeitos positivos desse aumento que se tornam perceptíveis, mas também tudo o que, diretamente ou não, tem um impacto sobre o bem-estar psicológico dos imigrantes. As atividades clínicas (psicoterapia) do Sapsir são quase todas realizadas com pessoas vítimas de guerra e de tortura. Os pacientes são encaminhados por profissionais da rede de saúde e dos serviços sociais, por causa da forte codificação cultural presente na expressão do sofrimento psicológico dessas pessoas. É nelas que se encontram perceptíveis os efeitos mais nefastos, no plano psicológico, do processo migratório; efeitos esses quase sempre relacionados com as perdas (do país, das pessoas, do referencial cultural, da identidade etc.) e, por conseguinte, o luto.
O modelo teórico de intervenção do Sapsir apoia-se na teoria de Georges Devereux (1967, 1972) que a desenvolveu em torno do postulado da universalidade do funcionamento psíquico. Esse autor apresenta uma forma original e determinada de considerar o material cultural como um poderoso apoio terapêutico, suscetível de desencadear associações de ideias e de ativar processos mentais bloqueados pela perda do quadro cultural e pelos traumatismos pré e pós-migratórios.
No que se refere ao dispositivo clínico, o modelo do Sapsir foi inspirado no modelo proposto por Tobie Nathan (1986, 1994). As intervenções são realizadas por um grupo de profissionais (psicólogos, assistentes sociais, médicos etc.) e, em sua maioria, imigrantes igualmente. A língua materna é valorizada nesse dispositivo, pois ela é considerada um modo importante da expressão da afetividade (MESMIN; BÂ, 1995). Quando se mostra necessário, solicita-se a colaboração de um mediador cultural (chamado também de intérprete), mediador esse que garante não apenas a tradução da língua, mas também a da cultura.
As intervenções do Sapsir têm os seguintes objetivos gerais: 1. reduzir os sintomas clássicos do sofrimento psicológico (ansiedade, afetos depressivos, sentimentos de perda e luto, transtornos somáticos diversos etc.); 2. reduzir as manifestações sintomáticas do transtorno de estresse pós-traumático (pesadelos, sobressaltos, angústia, pavor, imagens do evento traumatizante etc.); 3. identificar e prevenir o agravamento das situações problemáticas de risco; 4. restaurar as forças e os mecanismos de adaptação da pessoa e dos membros de sua família (reorganização da dinâmica intrafamiliar); 5. estimular os vínculos da pessoa com seu meio psicossocial e apoiá-la em suas dificuldades de adaptação.
De 2000 a 2008, quase 180 pessoas, de mais de 30 países diferentes, foram atendidas (atendimento psicológico/psicoterapia) no Sapsir. Os sintomas depressivos e do transtorno de estresse pós-traumático foram os mais frequentemente observados, acompanhados de angústia, ansiedade, irritabilidade, conflitos familiares e dificuldades de adaptação.
História clínica casuística
Apresentaremos agora a história de João-Batista (nome fictício), história de um sobrevivente que foi exposto à guerra e à destruição de vários membros de sua família e de seu grupo. João-Batista foi atendido pela equipe de profissionais do Sapsir, na clínica de psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Laval. O atendimento psicológico estendeu-se durante 13 meses, com um total de 20 sessões (frequência de um atendimento por semana), divididas em dois períodos diferentes, por causa de uma hospitalização para procedimentos cirúrgicos.
Essa apresentação de um estudo de caso é apenas uma tentativa de expressão não do sofrimento humano, mas da força da identidade cultural na sobrevivência de uma vítima de tortura. Para tal apresentação, enfatizaram-se os fatores culturais, elementos centrais na expressão do sofrimento desse paciente, assim como nas etapas do seu tratamento.
João-Batista é um homem jovem, de 30 anos, que imigrou sozinho para o Canadá, como refugiado, depois de ter passado quatro anos em um hospital de um país vizinho de seu país natal. Ele foi encaminhado ao Sapsir por um médico e um assistente social de um posto de saúde da cidade de Québec, algumas semanas apenas depois de sua chegada ao Canadá. Os telefonemas dos assistentes sociais, que precederam a primeira sessão realizada com João-Batista, testemunhavam uma problemática difícil e complexa, com o paciente exprimindo um grande sofrimento psíquico e psicológico em razão das torturas sofridas no seu país, antes de sua partida. João-Batista sofria, assim, de dores internas, dores que se deslocavam de um órgão a outro com um predomínio na região dos intestinos, com uma sensação de apodrecimento no interior de seu corpo. No plano psicológico, a demanda formulada pelo médico e pelo assistente social não era clara. Simplesmente, depois de ter vivido essa história mórbida de guerra e tortura, “ele devia certamente sofrer”, diziam os profissionais.
Discussão do caso
João-Batista apresentou-se, na primeira sessão, acompanhado de um assistente social que havia feito o encaminhamento ao Sapsir. Um pouco intimidado, claro, mas com um grande sorriso que atestava uma serenidade desconcertante, suas primeiras palavras foram: “Venho encontrá-los, pois todos a quem devo contar minha história4 dizem que devo sofrer muito”. E, como uma gravação na qual a tecla repeat parecia estar em função, de forma contínua, ele contou todos os detalhes deste evento, a priori, insustentável para todas as pessoas sentadas na sala. Ele os relatou com desprendimento, sem ser tomado pela ansiedade; ele era claro, sem ser conciso, e enfatizava os detalhes ao mostrar cada cicatriz, testemunhando o fato consumido; as palavras eram colocadas em um discurso organizado, estruturado, pausado.
Nessa história, muitas vezes narrada, João-Batista foi confundido pelos homens do Exército com um rebelde em um lugar nem insignificante nem estranho à história de um sujeito: ele foi preso na estrada que ligava dois vilarejos, o de seu pai e o de sua mãe. Em seguida, foi levado ao vilarejo de sua mãe pelos soldados, onde, em média, 800 pessoas foram massacradas nas horas seguintes. João-Batista foi torturado à repetição: eles pegaram os braços dele e os forçaram para trás do corpo, rasgando a pele e os músculos do braço e das axilas; ele recebeu golpes de baionetas na barriga e nas pernas e chutes no tórax. Seus torturadores quiseram completar “o trabalho” com uma bala na cabeça, a qual o atingiu na base do crânio e o fez perder, finalmente, a consciência.
João-Batista estava acostumado, nos últimos cinco anos, a falar de suas dores físicas aos médicos e aos enfermeiros, expressão muitas vezes empregada por ele. Assim, ao nos expor seu relato a distinção entre psicologia e medicina não fazia o menor sentido no seu imaginário, João-Batista contava os eventos, como havia feito inúmeras vezes. Um espaço de fala foi oferecido a João-Batista para que ele pudesse expressar os conteúdos envolvidos nos eventos, o que ouviu e sentiu, o que entendeu e o que não conseguia entender, por falta de coerência entre o mundo interno e o externo.
Em primeiro lugar, o ataque ao vilarejo (nunca se soube precisamente o motivo de tal ataque) concernia aos homens; buscava-se a eliminação dos homens... mesmo os que estavam por vir, ainda no ventre das mulheres. João-Batista estava, então, no vilarejo de sua mãe e assistia à exterminação dos homens. Ele é testemunha da decapitação de seus amigos, da agonia das mulheres que se faziam abrir o ventre, dentre elas sua irmã mais nova; os soldados se obstinavam sobre os fetos masculinos. Nesse sentido, o massacre concernia também às mulheres, mas de forma indireta. Ele assistia a esse massacre em um estado de consciência alterado e se lembrou de dizer palavras, muitas vezes, pronunciadas pelo seu avô paterno: Você nunca deve baixar a cabeça perante o sofrimento. Alguns dias mais tarde sem saber o número exato de dias, uma dezena de corpos sem vida, sendo um deles o de João-Batista, foi encontrada em uma cova, na qual haviam sido depositados os cadáveres. Ele foi, então, transportado a um hospital da Cruz Vermelha de um país vizinho e, depois desse período, andava com os atestados dos médicos que o encontraram e cuidaram dele, como uma prova da veracidade desses fatos. A narração durou três sessões, sempre em presença da pessoa que o encaminhou; ele não queria vir sozinho, pois tinha medo de se perder nas ruas de Québec, dizia.
O assistente social esteve presente durante apenas as três primeiras sessões. Assim que João-Batista começou a apresentar-se sozinho às sessões, seu discurso se transformou. Antes de tudo, à pergunta “O que ele esperava de nós e do tratamento?”, sempre com um sorriso luminoso, respondeu que queria aprender a se proteger desta selva, que não era como a de seu país, nestas ruas em que não havia crianças. Nenhuma referência à tortura, aos fatos relatados durante as primeiras sessões. Apesar do fato de sermos formados em abordagens interculturais/etnopsicanálise, uma ideia semelhante àquela dos outros profissionais nos interpelava continuamente, a saber, sobre a ausência de afetos de pavor e de angústia, levando em conta a gravidade dos acontecimentos. Resistência, clivagem, negação, recalcamento; enfim, tais hipóteses foram elaboradas, mas pouco convincentes. E João-Batista prosseguia nessa outra narração, da pré-tortura, do período em que ele se tornou o portador, no plano psicológico, de uma herança poderosa e eficaz: o conhecimento sobre o mundo invisível, assim como seu avô paterno.
João-Batista nasceu de uma relação um tanto marginal, pois sua mãe era prometida ao chefe do vilarejo. Seu pai foi, então, considerado um ladrão da mulher do chefe. A partir desse fato, tornou-se possível entender como, durante duas décadas, um ódio se instalou entre essas duas comunidades. O casamento foi, presumivelmente, o início de uma guerra que se propagou ao comércio de peixe, à pesca e à criação de animais. Durante a gravidez, sua mãe foi aconselhada por um curandeiro o qual lhe anunciou que o nascimento do filho João-Batista é o mais velho ameaçaria a vida de seu marido. Ela escolheu a criança; e o pai de João-Batista morreu três dias após seu nascimento. Ele é, assim, no imaginário dessa família e do vilarejo, aquele que vem substituir o pai, e, mesmo antes de nascer, João-Batista se tornou um sobrevivente. No seu nascimento, já se tornou um sobrevivente, pois nasceu na água, “dias na água”, disse ele, e foi na água que teria sido encontrado. Na tortura, sobreviveu no meio dos cadáveres. Esses fatos tornavam complexa a compreensão do que ele relatava. Seria um delírio? Como é possível passar dias na água e no meio de cadáveres? Estaria ele falando do mesmo mundo, real, que é o nosso? E, pouco a pouco, João-Batista começou a expor o que havia aprendido de seu avô, o curandeiro da região, para proteger-se dos homens, dos animais e dos espíritos. Os homens, como dizia ele, não são os mesmos que os daqui, no Canadá, pois os homens, no seu universo singular, não são nada mais do que porta-vozes de uma representação do mundo invisível. É o mundo invisível que pode ser perigoso, que pode mudar o curso da história; e desse mundo, João-Batista aprendeu a se proteger.
Logo após o nascimento de João-Batista, seu avô lhe fez uma tatuagem na qual foi inscrito seu futuro: ele se tornaria um pescador. Além disso, seria o depositário dos segredos deste homem de saber o avô, conhecido por curandeiro. Ele aprenderia a lidar com a natureza, as plantas, as árvores e os animais, e dominaria o poder dos fenômenos naturais. Seria considerado nos dois vilarejos como seu avô o havia sido. Seria, assim, respeitado e protegido por essa herança e esse status. Desse modo, João-Batista construiu sua identidade em torno dessas representações, que lhe garantiam uma dupla segurança perante o mundo externo e o interno. Essa identidade era intimamente ligada ao mundo invisível, mais poderoso que o mundo dos homens e dos vivos. Mais tarde, no hospital, essa ligação com o mundo invisível traduziu-se, para João-Batista, em uma prática espiritual, em contatos com os padres missionários, em seu elo com Deus.
Considerações finais
João-Batista não apresentava afetos depressivos, nem pavor, nem sobressaltos, nem pesadelos, para não citar alguns sintomas normalmente expressos pelas vítimas desses tipos de atos de violência, conforme os critérios diagnósticos do estresse pós-traumático presentes no DSM-IV (ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA, 2002). Seu sofrimento situava-se em outro lugar, na procura de continuidade de si mesmo, como antes. Ele se perguntava como fazer para continuar a ajudar as crianças e os grandes, como fazia no seu país natal; pouco compreendia da função dos papéis necessários para a obtenção para pescar seu peixe; perguntava-se se as árvores da selva canadense tinham os mesmos poderes daqueles de sua selva natal; não apreendia a lógica desses confetes brancos que caiam do céu (a neve...). E o trabalho clínico prosseguia por meio dessa descoberta que João-Batista fazia do mundo dos humanos, e, gradualmente, ele se sentia mais seguro. Aprendeu a escrever e ler e pensava em trabalhar com crianças abandonadas.
Durante as sessões, iniciou a equipe de psicólogos em alguns segredos, para testemunhar a validade de seu saber e selar, assim, um pacto (afiliação) com o grupo, ao compartilhar seus segredos. João-Batista soube preservar, ao longo de todo seu percurso do antes, do durante e do depois, um domínio de seu destino. Perante a equipe, em situação clínica, era ele quem sabia: e o papel atribuído por ele aos membros do Sapsir se restringia ao de mediador entre o mundo invisível e ele. Reconhecidos como interlocutores por João-Batista, isto é, capazes de ouvir e conter sua narrativa, foi-lhe oferecido, assim, a possibilidade de continuar a existir por meio dos vínculos estabelecidos com um grupo que o reconhecia, confirmando seu status de sobrevivente.
Porém, como profissionais ocidentais, partindo das categorias etiológicas e diagnósticas ocidentais (ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA, 2002), não podemos deixar em um primeiro momento de postular a existência inevitável de sequelas pós-traumáticas, de transtornos de ansiedade, de vulnerabilidade. João-Batista deve ter algo, pois nossa lógica nos conduz a essa conclusão. No entanto, ele não pede nada mais do que a possibilidade de compartilhar com o grupo a narrativa de sua vida, de criar uma existência ao grupo de terapeutas (em seu mundo interno), de compartilhar seu mundo, de transmitir saberes. Sim, uma inversão de papéis atuada nos dois sentidos: João-Batista não deseja ser tratado de um mal ocidental (o transtorno de estresse pós-traumático), mas iniciar-nos ao seu mundo, ao que ele tem de vivo, ativo e estável. Ele deseja nos mostrar que sua existência é coerente, que ela se inscreve na continuidade do que lhe foi transmitido, na narrativa fundadora de seu nascimento. Nada do que ele evoca é contrário às suas referências culturais. A matriz de significações culturais está de acordo com a descrita por ele. Não existe material importado que possa nos levar a suspeitar de uma construção delirante. Assim, o trabalho psicológico deve ser realizado em torno da identidade vivida e dos vínculos de pertencimento, da cultura tal como ele a apropria (isto é, como ele se vincula a ela) e como ele a utiliza para encontrar um sentido. Essas representações culturais orientam o sujeito na sua relação com o mundo (ALMEIDA, 2008).
João-Batista é um ser sadio, funcional, dotado de uma identidade fortemente alimentada por suas representações culturais. Para ele, o saber de seu avô, de seus ancestrais, que lhe foi transmitido, teve sem dúvida um papel protetor que não pode ser reduzido a simples fatores de proteção ou de resiliência.
São, no entanto, os perigos ligados ao processo migratório que constituem, efetivamente, verdadeiras ameaças internas. João-Batista percebe essa ameaça interna essa que resulta da migração, da perda do envelope cultural. Ele a sente e a expressa: tem medo das ruas, de se sentir desorientado, tem medo dos homens do Canadá. Na ausência de crianças nas ruas e ao seu redor, ele se pergunta como poderá exercer sua função de transmissão de valores e saberes, adquiridos de seus ancestrais. Sente a perda de seu envelope cultural, o que pode efetivamente fragilizá-lo (SIRONI, 1999). Ele se encontra agora em outro lugar e não conhecia o exílio nem a experiência migratória. Ele tem razão quando receia não poder continuar a ser ele mesmo, não poder dar continuidade à sua existência. Subjetivamente, percebe as ameaças internas e as expressa durante o tratamento. É particularmente nesse momento que os profissionais que praticam a etnopsiquiatria devem ficar atentos. Como avaliada por várias pessoas, a ameaça não se encontra no quadro clínico do estado de estresse pós-traumático, nas sequelas dos eventos violentos, da tortura, mas sim nas consequências do exílio e da perda do quadro cultural. Para João-Batista, a segurança física externa adquirida no Canadá não compensa a ameaça interna que se refere à perda da identidade e da continuidade de si. É imprescindível que os profissionais estejam atentos à diferença fundamental entre segurança externa e interna e à dimensão central do bem-estar psicológico.
Referências
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SIRONI, F. Bourreaux et victimes. Psychologie de la torture. Paris: Éditions Odile Jacob, 1999Links ] Arial, Helvetica, sans-serif"size="2">.
Contato
Lucienne Martins Borges
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e-mail: lucienneborges@ufpr.br; lucienne_borges@yahoo.ca
Tramitação
Recebido em agosto de 2009
Aceito em novembro de 2009
1 A etnopsiquiatria é transmitida nas universidades e praticada em clínicas universitárias e sociais no Canadá e na Europa. Tal prática se diferencia consideravelmente do que pudemos observar no Brasil. Para maior esclarecimento, consultar Martins Borges e Pocreau (2009).
2 Tortura [...] designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou, por qualquer motivo, baseado em discriminação de qualquer natureza, quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções, ou delas decorram” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1989).
3 Todas as citações foram traduzidas pelos autores deste artigo.
4 Os refugiados devem, em cada etapa do percurso migratório, contar o que viveram, a fim de validar os diversos pedidos feitos nas instituições (imigração, saúde, serviços sociais etc.). Observa-se assim, com certa frequência, um distanciamento entre o discurso e a emoção. Esse fenômeno é muito frequente não apenas em vítimas desse tipo específico de violência, mas em pessoas que foram vítimas, à repetição, de violência.