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Stylus (Rio de Janeiro)

versión impresa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.38 Rio de Janeiro enero/jun. 2019

 

CONFERÊNCIA BILÍNGUE

 

O real e a interpretação1

 

The real and the interpretation

 

El real y la interpretación

 

 

Jean-Jacques Gorog; Tradução de Cícero Oliveira

 

 


RESUMO

O autor aborda as noções de real e interpretação no ensino de Jacques Lacan, especialmente no período de sua última década. Trabalhando o texto L'étourdit, a presente conferência discute a interpretação da transferência, salientando o real a que ela visa. O autor conclui, afirmando que o real visado pela interpretação refere-se à impossibilidade lógica da relação sexual, apenas dedutível e diferenciado do retorno ao inefável, à alíngua.

Palavras-chave: Psicanálise; Real; Interpretação; Transferência.


ABSTRACT

The author addresses the notions of real and interpretation in the teaching of Jacques Lacan, especially in the period of his last decade. Working on the text L'étourdit, this conference discusses the interpretation of the transfer emphasizing the real to which it aims. The author concludes by stating that the real to which the interpretation refers points at the logical impossibility of the sexual relationship, only deductible and differentiated from the return to the ineffable, to lalangue.

Keywords: Psychoanalysis; Real; Interpretation; Transfer.


RESUMEN

El autor aborda las nociones de real e interpretación en la enseñanza de Jacques Lacan, especialmente en el período de su última década. Trabajando el texto El aturdito, la presente conferencia discute la dimensión de la interpretación de la transferencia subrayada a lo real que pretende. El autor concluye afirmando que lo real a que se refiere la interpretación es relativo a la imposibilidad lógica de la relación sexual, sólo deducible y diferenciado del retorno a lo inefable, a lalengua.

Palabras clave: Psicoanálisis; Real; Interpretación; Transferencia.


 

 

O ato analítico é aquilo que permite que a cura prossiga como convém. Ele consiste em recortar o que diz aquele que fala. É nisso que consiste o ato. Chamamos isso, eventualmente, de interpretação. É preciso dizer que a interpretação não é, para Lacan (tampouco para Freud, aliás), o que, no mundo, é comumente dado como a interpretação analítica. Não é algo como: "Bem, você acha que sou seu pai, sua mãe, você me ama, você me detesta no lugar deles...", assim como, obviamente, a interpretação edípica "Você quer a morte do seu pai para dormir com sua mãe", ou o contrário, dependendo do caso.

Não é que essa interpretação seja incorreta, mas já faz muito tempo que ela se revelou inútil. Por quê?

Porque, simplesmente, os escritos de Freud difundiram-se suficientemente no mundo ("como a peste", ele diz), para que aquele que vai ver um analista saiba quem ele é e que não precisa do analista exatamente para fazer essa interpretação - pode fazer isso sozinho, é capaz, sozinho, de perceber essas coisas, e isso desde a guerra de 1914. Sabemos que o fim da era de ouro da interpretação, que corresponde ao fim da Primeira Guerra Mundial, levou Freud para a via do além do princípio de prazer e da pulsão de morte. Lacan evoca esse momento muitas vezes. Assim, em "Situação da psicanálise em 1956":

(...) o problema só lhes foi levantado a partir do momento em que paciente, em pouco tempo tão a par dessa interpretação que era tarefa sua, o que, deve-se dizer, é realmente a artimanha mais constrangedora que se pode infligir a um áugure. (Lacan, 1956/1998b, p. 465)

Sem dúvida, ele ironiza quanto à variedade de desvios - por exemplo, aquele em que o paciente não consegue ouvir o analista e suas consequências: "Curiosamente, as formas do ritual técnico valorizam-se proporcionalmente à degradação dos objetivos" (Lacan, 1956/1998b, p. 467).

Com o desenvolvimento freudiano da segunda tópica, vem à tona o que, na interpretação, se revelará do real. A primeira apreensão dessa dimensão consistirá em distinguir o complexo de Édipo do complexo de castração, que é sua obra-prima, com a falta fálica como aquilo sobre o que a interpretação deve incidir.

O segundo tempo será "o dizer de Freud" - "não há relação sexual" - nesse texto que serve de referência, porque é uma espécie de soma, de resumo do conjunto do ensino de Lacan.

Claro que, muitas vezes, há coisas já mencionadas, e vou voltar à questão a partir de uma das definições da interpretação dada por Lacan em "O aturdito", a mais simples e óbvia que há.

"Não sou eu que te faço dizê-lo." Não é esse o mínimo da intervenção interpretativa? Mas o que importa não é seu sentido, na formulação que a alíngua de que aqui me sirvo permite dar-lhe, e sim que a amorfologia de uma linguagem descortina o equívoco entre "Você o disse" e "Tenho tão pouca responsabilidade por isso que não lhe mandei dizer por ninguém". (Lacan, 1972/2003a, p. 494)

Lacan, com "não sou eu que te faço dizê-lo", essa definição de interpretação em "O aturdito", quer dizer duas coisas muito distintas, as quais ele explica detalhadamente. Por um lado, "você o disse" e, por outro, "você não vai me culpar por ter dito o que você diz", tendência natural contra a qual esse equívoco afirma lutar e que implica que o chamemos de transferência. É por isso que não há interpretação que não seja interpretação da transferência, e sempre no mesmo sentido, muito freudiano, e que distingue a psicanálise dos outros métodos de tratamento, e que é que essa dimensão da transferência deva ser denunciada, corrigida, ao mesmo tempo que é um motor da cura. Ao contrário do prestidigitador, trata-se de saber de onde o coelho que é tirado da cartola vem. Tudo isso está indicado na fórmula. Mas alguém poderá me dizer onde está o real?

Aqui, é preciso colocar nosso excerto ali onde ele aparece no texto "O aturdito", quando o que está em questão é o equívoco interpretativo:

Os equívocos pelos quais se inscreve o lateral de uma enunciação concentram-se em três pontos-nodais (...).

Começo pela homofonia (...).

Afirmo que todos os lances são permitidos aí, em razão de que, estando qualquer um ao alcance deles, sem poder reconhecer-se nisso, são eles que jogam conosco. Exceto quando os poetas os calculam e o psicanalista se serve deles onde convém. (Lacan, 1972/2003a, p. 493)

Que esteja claro que a interpretação lacaniana não se resume ao equívoco significante, mesmo que seja preciso lhe dar toda a importância, uma vez que há três pontos. O segundo é a gramática, e é aqui que nos é dada a definição de interpretação exposta anteriormente.

Porque a interpretação, aqui, é secundada pela gramática. À qual, tanto nesse caso como em outros, Freud não se priva de recorrer. Não volto a me referir aqui àquilo que destaco dessa prática confessa em muitos exemplos. (Lacan, 1972/2003a, p. 493)

Essa questão da gramática parece-me um ponto essencial na geografia lacaniana, sem dúvida não suficientemente esclarecido. Para precisar bem o ponto, Lacan respondeu a duas perguntas que lhe fiz (esclareço que não estive em análise nem em supervisão com ele, trata-se de uma conversa). A primeira dizia respeito aos textos de Freud que era preciso ler, ao que ele respondeu com aquilo que mais tarde pude verificar serem os textos que ele considerava fundadores do inconsciente, a ciência dos sonhos, a psicopatologia da vida cotidiana e o chiste. A segunda, tratava-se de saber se ele concordava com o ordenamento das duas tópicas freudianas com a sua, seja consciente, pré-consciente, inconsciente, em seguida ego/eu [moi], isso/id [ça], supereu/superego [surmoi] com a sua, então, imaginária, real, simbólica, nessa ordem, o que ele confirmou, naturalmente, gratificando-me com um sorriso.

E encontrei muitas confirmações dessa dimensão real da gramática, assim como dessa ligação, que pode parecer estranha, tanto com o pré-consciente quanto com o isso/id freudianos. Mas, por exemplo, para fazer entender esse ponto, nunca se tratou de uma questão de gramática da pulsão?

Lacan não cessa de nos falar sobre a inacessibilidade do ponto de origem da linguagem, o qual não é verdadeiro nem falso. Sabemos que esse texto, "O aturdito" (Lacan, 1972/2003a, p. 449), começa com o estudo, bem gramatical, da frase "Que se diga fica esquecido por trás do que se diz no que se ouve". Não retomarei os detalhes de suas considerações, para me ater ao seguinte: mais uma vez, ele insiste na precisão de sua fórmula sobre "que se diga" e o uso do subjuntivo. Pode-se dizer que o real é o subjuntivo, estritamente falando, é isso que é necessariamente esquecido, o fato de dizer fica esquecido, e retém-se apenas o conteúdo. Gostaria de dar um exemplo desse esquecimento. Quando, após os atentados de Paris, o então presidente da República, François Hollande, pronunciou um discurso diante dos deputados, ele propôs que os terroristas fossem privados da nacionalidade. Esse discurso foi muito aplaudido, dado que não é habitual, por todos os deputados. Somente um pouco mais tarde percebeu-se que essa privação da nacionalidade era constitucionalmente impossível, porque é possível privar de nacionalidade alguém que não tem nenhuma outra nacionalidade, alguém que nasceu francês, e, exposto às críticas, Hollande levou certo tempo antes de admitir seu erro. Em suma, haviam esquecido seu dizer, a pertinência do dizer no momento em que ele foi pronunciado, o ato de dizer, pouco importando seu dito.

Acrescento aqui algo que me parece importante sobre o uso dual desse dizer, seja ele dessa enunciação, dimensão clássica em Lacan, ou do discurso que sustenta essa enunciação, como em "O aturdito". Obviamente, ambos coexistem até o fim, e especialmente no mesmo texto. E, para abordar o que é o esquecimento do dizer, parece-me que o estatuto da alucinação pode ser considerado contraexemplo, ali onde esse "que se diga" não se esquece, como se a voz estivesse sendo sempre enunciada. Creio que a experiência mais atual permite verificar esse estatuto sempre atual, fora do tempo, da voz alucinada.

E se o pré-consciente é o real e seu atributo essencial é a gramática, isso precisa continuar com as diferentes modalidades da negação.

Essa distinção pode ser visitada graças a uma especificidade da língua francesa, que utiliza a presença de um estranho desdobramento na negação - ne e pas2 -, que raramente se encontra em outras línguas. Aqui, a negação que nos interessa é a do discordancial - no discurso em que se percebe, talvez, a proximidade com a discordância [discord] - já que é aquela que faz aparecer o sujeito como dividido. O ne discordancial de que fala Lacan é o que vemos na fórmula do Homem dos Ratos - Je crains qu'il ne meure [Receio que elemorra],3 e que, para ele, marca o desejo, e até mesmo o define. Esse ne é o que divide o sujeito, e a interpretação tem interesse especial por esse ne que constitui o traço persistente do dizer no dito, ou seja, no que é real.

Digamos que a frase, que serve de material para seu artigo, é feita para que não se esqueça que ela deve ser pronunciada para existir. Para fazê-la existir, há, antes de tudo, o recurso ao discurso direto. Donde a ênfase dada ao subjuntivo, que se diga, de modo que ela dá a ilusão de estar sempre sendo dita. É esse momento que a análise supostamente reconstrói, e é esse impossível que Lacan chama de real, e até mesmo de ciência do real. Até aqui, nada que o distinga de Freud, ele só faz com que nos lembremos daquilo que o conceito de inconsciente implica, ou seja, a consideração das formações do inconsciente, lapso, um ato falho, um sonho ou um chiste, durante os quais o dizer se trai por um breve instante.

Tento abordar o assunto com a maior prudência, na tentativa de trançar elementos bastante diferentes. Lacan utiliza as mesmas palavras - discordancial e foraclusivo - para falar de coisas muito distintas: gramática, a clínica da neurose e da psicose e, por fim, a diferença homem-mulher. Pode-se supor, sem dúvida, que o não-todo [pas-tout] é discordancial e que está do lado das mulheres, assim como o paratodo [pourtout] foraclusivo está do lado dos homens. Quando Lacan diz "todas as mulheres são loucas (...), como se diz. É por isso mesmo que não todas, isto é, não loucas de todo" (Lacan, 1973/2003b, p. 438),4 parece que elas são loucas de alguma forma em virtude da discordância [discordance], mais marcada nelas por causa da ambiguidade do estatuto da castração do lado mulher - que implica essa discordância -, ao passo que, do lado homem, a função da castração implica a aceitação ou a rejeição em bloco, daí o empuxo-à-mulher, que é um dos resultados no homem quando a função discordancial não chega a se convidar como um parasita dessa aceitação.

Esse "não" vai permitir ir em direção a uma nova concepção do ato analítico, que realmente distingue a ação do analista da interpretação com relação à forma como ela era pensada até então. O que fica mais claro não é uma modificação de sua relação com a transferência, mas o que se deduz quanto ao estatuto da própria transferência. A interpretação é sempre interpretação da transferência, pela razão de que a interpretação é concebida apenas no contexto da cura, com o endereçamento a alguém presente, e, se toda interpretação é interpretação da transferência, isso se dá desde que se recoloque a transferência em seu lugar, isto é, que ela seja considerada como aquilo que é.

O dizer que não, o que é próprio ao analista que sempre diz "não", não deve ser entendido no registro da frustração. Não se trata de uma questão de atormentar o analisante, mas que o analista tome uma posição. Por conseguinte, ele não pode contentar-se em se calar. Com efeito, se ele sempre se cala em nome de uma neutralidade "frustrante", a qual conservaria diante dos dizeres de seu paciente, vai expor-se a mal-entendidos. Sempre é possível imaginar que o analisante toma seu silêncio por uma não aceitação, mas isso é errado. Na maioria das vezes, se o analista não diz nada, o analisante acha que ele concorda, não apenas com o fato de dizer, mas também com o conteúdo do que foi enunciado. Estar de acordo com o que é dito implica estar de acordo com a intenção do que é dito, ou seja, com o discurso que sustenta esse dito. A interpretação, pelo contrário, consiste em evidenciar que aquilo que é dito não tem necessariamente o sentido imaginado por aquele que diz. Se o analisante cometer um lapso, fazer com que ele o perceba é realmente o mínimo que o analista pode fazer. No entanto, isso não é suficiente, porque faltaria o "não sou eu que te faço dizê-lo" que interpreta a transferência, o endereçamento ao analista. Como fazê-lo saber? Aqui, não há resposta preestabelecida, e a tarefa incumbe ao analista, sem que uma regra possa ser válida para todos os casos.

Entendemos por que Lacan ressalta que ele é mais livre no que diz respeito à tática - título dessas jornadas -, mas insisto aqui que o mal-entendido é frequente com relação àquilo que o analisante sabe sobre análise. Que esse analisante, no começo de sua aventura, tenha uma ideia da existência da transferência é uma coisa, e que ele possa interpretar o que diz no âmbito da transferência já está, assim como o Édipo, sem dúvida presente no discurso corrente, mas que ele saiba a que isso realmente corresponde é muito diferente. Lacan lembra que o analista, diante de cada analisante, deve renovar o enunciado da regra fundamental à sua maneira, prova de que isso não é evidente. Ele é muito atento ao esquecimento daquilo que ordena a psicanálise, e seu seminário estava lá, assim como os textos de Freud, para reanimar o inconsciente e suas consequências. Hoje, parece que muitas noções aparentemente patentes estão sendo questionadas, inclusive a ciência e sua demonstração matemática - Darwin ou a evolução do clima, por exemplo. Vemos os efeitos disso na política. A psicanálise, que não foi evidente em nenhum momento de sua história, o é ainda menos hoje.

Outro exemplo que implica o estatuto da negação é o do sonho lido por Freud em seu artigo sobre a denegação (Die Verneinung), "não é minha mãe". Ele serve de base ao debate com Hyppolite sobre a negação. Esse é o exemplo paradigmático que Lacan cita durante seu primeiro seminário, esse sonho em que aparece uma mulher desconhecida cujo sonhador diz, em resposta à pergunta "quem é?", "não é minha mãe". Lacan insiste no fato de que a negação é a única forma de acessar o verdadeiro, isto é, que não apenas "não é minha mãe" quer dizer "é minha mãe", mas que essa é a única maneira de ter certeza de que é realmente ela, desde que, contudo, consiga encontrar-se em meio à variedade de formas de negação, e é aí que reside a dificuldade. Isso nos permite chegar à terceira modalidade, que é a lógica:

Número 3, agora: é a lógica, sem a qual a interpretação seria imbecil, sendo os primeiros a se servir dela, é claro, aqueles que, para transcendentalizar a existência do inconsciente, armam-se da afirmação de Freud de que ele é insensível à contradição. (Lacan, 1972/2003a, p. 494)

A questão agora é como essas três modalidades articulam-se. Parece que não é possível simplesmente se ater a uma repartição segundo os registros lacanianos - simbólico, imaginário e real -, mesmo que a ênfase esteja no real com relação à gramática. Muito claramente, o real é algo a que não se tem acesso direto, seja qual for o ponto em que ele é fisgado [s'attrape]. Por conseguinte, precisamos organizar a homofonia, a gramática e a lógica de outra forma. A homofonia é o ponto de partida, algo foi enunciado e é equívoco. É um real que constitui a experiência analítica, muito claramente lembrado por Lacan (1953/1998a) desde "Função e campo da fala e da linguagem", uma fala plena, que o analista tem de reconhecer em um emaranhado de falas vazias. Mas, para que a homofonia tenha algum sentido, é preciso que seja articulada, colocada em contexto, endereçada a alguém que possa ouvi-la - essa é a função da gramática. Por fim, a partir desse conjunto, resta compreender sua lógica, o que Lacan chama, nesse texto, de dizer, ou seja, o discurso que dá sentido à fala articulada e endereçada. A cada vez, é um real que o todo deve decifrar e que chamamos de interpretação.

Para que se apreenda bem o que estamos falando, podemos seguir Lacan e sua demonstração topológica nesse mesmo texto:

O toro, como demonstrei há dez anos a pessoas que queriam muito me enlamear com seu próprio contrabando, é a estrutura da neurose, na medida em que o desejo, pela re-petição indefinidamente enumerável da demanda, pode fechar-se em duas voltas [deux tours]. É sob essa condição, pelo menos, que se decide do sujeito no dizer que se chama interpretação. (Lacan, 1972/2003a, p. 487)

Mas também podemos dar uma versão mais pragmática disso. A repetição evocada aqui, a dupla volta [le double tour] que justifica o título - As voltas do dito [Les tours du dit] -, também pode ser ouvida como o tempo do "Você o disse" [Tu l'as dit], que deve ser completado por uma segunda volta, com a pergunta "Deonde vem que você tenha dito?" [D'ou vient que tu l'aies dit]. Essa é a segunda volta do dito que a dimensão transferencial - Tenho tão pouca responsabilidade por isso que não lhe mandei dizer por ninguém [Je le prends d'autant moins à ma charge que, chose pareille, je ne te l'ai par quiconque fait dire]5 - muitas vezes mascara, como se fosse o analista a causa do que foi dito, ainda mais porque isso não está completamente errado, que ele não está por nada no fato de que isso foi dito (Lacan, 1972/2003a, p. 494). Sem a análise, essa coisa não teria sido dita, ou pelo menos não teria sido identificada. Deduz-se daí que é uma questão de se opor a esse efeito da transferência, para abordar o porquê de tal coisa ter sido dita. Apreende-se aqui a complexidade da operação. Não é que Lacan complique com prazer, é que atravessar o impasse transferencial requer tanto sua interpretação nesse quadro transferencial quanto a busca da questão que ali se depositou. O uso do significante - Lacan diz assemântico, mas é um tipo de pleonasmo, o significante é assemântico por definição, uma vez que, para um sujeito, ele só opera se estiver ligado a outro significante e se perder sua significação própria.

Para entender a diferença em questão e a partir daquilo que Lacan introduziu nessa direção, ou seja, seu interesse pela psicose, o neologismo caracteriza-se menos como uma palavra nova do que tendo um significado tal, que não permite o equívoco, uma significação fixada e que, aliás, demanda que a cada vez ela seja especificada, assim como o riso sem motivo só é sem motivo para o espectador, não para aquele que ri. Também nos lembraremos do exemplo que dei do louco e da maçã.

Esse também é o caso do conceito ao qual se dá uma definição precisa. Poder-se-ia dizer que ele perde, então, ao mesmo tempo que o equívoco da língua, sua função significante. É assim que o exercício da leitura de Lacan revela-se ainda mais delicado, porque ele escolhe como conceito palavras da alíngua, as mesmas palavras que também utiliza em seu uso cotidiano. É assim que "sujeito" [sujet], dependendo do contexto, é o sujeito do inconsciente, o sujeito dividido ou a pessoa de quem ele fala, e muitas outras coisas.

É nesse sentido que convém ler a frase "isso nos basta para ver que a interpretação é sentido e vai contra a significação" (Lacan, 1972/2003a, p. 481).

Parece-me que existe aqui um mal-entendido sobre o que Lacan quer dizer. Ele lembra como um dado aquilo que havia enunciado muito cedo sobre o significante assemântico. Para que a interpretação respeite o sentido, é preciso que siga o fio na ordem - homofonia, gramática, lógica -; caso contrário, ela se perde na significação, no sentido em que se destacaria cada elemento, dando-lhe o sentido que o preconceito lhe atribuiria. Na realidade, a crítica é a mesma que a de Freud contra Jung. Dar uma significação a priori é idêntico ao arquétipo para o qual o sentido é predefinido, sempre o mesmo, ali onde, para Freud, trata-se a cada vez de verificar aquilo que dada palavra quer dizer para determinado assunto.

É assim que Lacan chega, no final de seu texto, a estigmatizar aqueles que, como ele diz, palavralisam-se [movalisent] (Lacan, 1972/2003a, p. 497): "(...) o que eu centraria na palavra-valise [mot-valise]... Ultimamente, palavralisa-se [movalise] a perder de vista e, infelizmente, isso não deixa de dever algo a mim".

A crítica é dessa vez dirigida a seus alunos que tomaram o jogo de palavras, isolando-o como sendo a receita do lacanismo. Ele é muito claro sobre isso, pois Freud também se deparou com esse efeito do mal-entendido provocado por seu próprio ensino: "Quem censuraria Freud por tamanho efeito de obscurantismo, e as nuvens de trevas que, de Jung a Abraham, ele acumulou prontamente para lhe responder? Certamente não eu, que, frente a isso (por meu verso), tenho certas responsabilidades" (Lacan, 1972/2003a, p. 494).

A referência a Jung, como se vê aqui, é explícita. As trevas de Abraham são menos óbvias, sem dúvida elas vêm de um ordenamento muito estereotipado na sucessão dos estádios pré-edípicos, ou melhor, dessa insistência em querer de todo modo que tal objeto oral ou anal seja a causa da melancolia, ali onde Freud tentava, sem sucesso, implicá-lo no mecanismo em jogo.

Assim, ele coloca lado a lado a semantofilia daqueles que antecipam a significação em função de seus preconceitos e aqueles que usam a palavra-valise em nome da esbórnia6 lacaniana.

O real a que visa a interpretação está além da linguagem apenas na medida em que, a exemplo do dizer - o dizer de Freud é: não há relação sexual, um dizer que se deduz do conjunto de sua obra -, ele pode ser deduzido do conjunto dos elementos articulados. Portanto, não se vê aí um retorno do inefável, o real, ou do pré-verbal, a alíngua. Isso entraria em contradição com o conjunto da concepção que comanda a psicanálise de Freud em Lacan, e, portanto, não posso aderir a isso.

 

Referências bibliográficas

Lacan, J. (1998a). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In J. Lacan. Escritos (pp. 238-324). Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1953)        [ Links ]

Lacan, J. (1998b). Situação da psicanálise em 1956. In J. Lacan. Escritos (pp. 461-495). Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1956)        [ Links ]

Lacan, J. (2003a). O aturdito. In J. Lacan. Outros escritos (pp. 448-497). Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1972)        [ Links ]

Lacan, J. (2003b). Televisão. In J. Lacan. Outros escritos (pp. 508-543). Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1973)        [ Links ]

 

 

Recebido: 30/04/2019
Aprovado: 30/04/2019

 

 

1 Conferência proferida em São Paulo, em 10 de novembro de 2018, durante o XIX Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL), Brasil.
2 Alusão do autor ao fato de que a negação, em francês, sempre utilizará a partícula "ne" seguida de outro índice de negação (pas, rien, personne etc.). Assim, para se negar uma frase como "Ele é psicanalista" [Il est psychanalyste], que em português diríamos "Ele não é psicanalista" (acrescentando o advérbio "não"), em francês é necessário adicionar ne... pas, ou seja, Il n'est paspsychanalyste. [N.T.]
3 Nessa frase, encontramos o chamado ne explétif, ou seja, um ne cujo uso não é obrigatório na frase. Não se trata de uma negação; o ne explétif é uma herança do latim, utilizado facultativamente na forma afirmativa ou interrogativa, mas não negativa. [N.T.]
4 A construção "pas folles-du-tout" admite também os sentidos de "nada têm de loucas" e de "não loucas pelo todo". [N.E.]
5 Lacan (1972/2003a, p. 494, nota 22): "A construção francesa ['Je ne te le fais pas dire', 'desdobrada' em 'Je le prend d'autant moins à ma charge que, chose pareille, je ne te l'ai par quiconque fait dire'], que aqui procuramos traduzir tão próximo do original quanto possível, deixa bem clara a dubiedade que se expressa em português na frase 'Não sou eu quem está dizendo', com as implicações de 'Foi você quem disse' e 'Eu nunca diria uma coisa dessas'."
6 Em francês, tuyaux de poêle, expressão popular pejorativa, oriunda de uma peça de Jacques Prévert de mesmo título (1933), que narra as peripécias de uma família burguesa depravada (que pratica incesto, entre outras coisas), mas que afirma, hipocritamente, ser muito virtuosa. [N.T.]

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