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Psicologia USP

versión On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo  1994

 

APRESENTAÇÃO

 

A questão da alteridade

 

The question of alterity

 

 

João A. Frayze-Pereira

Instituto de Psicologia - USP

 

 

A pergunta que se impõe a nós, ao abrirmos este volume de Psicologia USP, é a seguinte: por quê a alteridade é uma questão?

O antropólogo Carlos Rodrigues Brandão resume, com extrema clareza, vários aspectos da problemática:

O diferente é o outro, e o reconhecimento da diferença é a consciência da alteridade: a descoberta do sentimento que se arma dos símbolos da cultura para dizer que nem tudo é o que eu sou e nem todos são como eu sou. Homem e mulher, branco e negro, senhor e servo, civilizado e índio... O outro é um diferente e por isso atrai e atemoriza. É preciso domá-lo e, depois, é preciso domar no espírito do dominador o seu fantasma: traduzi-lo, explicá-lo, ou seja, reduzi-lo, enquanto realidade viva, ao poder da realidade eficaz dos símbolos e valores de quem pode dizer quem são as pessoas e o que valem, umas diante das outras, umas através das outras. Por isso o outro deve ser compreendido de algum modo, e os ansiosos, filósofos e cientistas dos assuntos do homem, sua vida e sua cultura, que cuidem disso. O outro sugere ser decifrado, para que lados mais difíceis de meu eu, do meu mundo, de minha cultura sejam traduzidos também através dele, de seu mundo e de sua cultura. Através do que há de meu nele, quando, então, o outro reflete a minha imagem espelhada e é às vezes ali onde eu melhor me vejo. Através do que ele afirma e torna claro em mim, na diferença que há entre ele e eu (1986, p.7).

No contexto da Psicologia, mais especificamente no de uma Psicologia Social voltada para o estudo e a compreensão da vida humana, a questão do Outro é nuclear — não apenas a do Grande Outro ou do pequeno outro lacanianos, mas a de tudo aquilo que não é o Eu. E por quê essa questão é central? A resposta pode ser direta: é da possibilidade da existência do Outro e do seu reconhecimento pelo Eu que a própria Psicologia é possível, pois não há experiência da subjetividade, portanto, não há campo especificamente psicológico, anterior à experiência da inter-subjetividade. E, como sabemos, a emergência desta depende da possibilidade ontológica da relação com o Outro. A questão é, portanto, primordialmente filosófica e não psicológica ou antropológica. E Maurice Merleau-Ponty, entre os filósofos contemporâneos, foi o que mais longe levou a tematização dessa questão: nem o objetivismo científico, nem o subjetivismo filosófico, as duas posturas teóricas criticadas por ele, antagônicas apenas na aparência, são capazes de dar conta da problemática encerrada pelo Outro. Mas, quando o Outro vem a ser uma questão?

A alteridade torna-se imediatamente um problema quando nos damos conta de que, em nossa experiência quotidiana, o contato com o outro se dá, embora nada, em princípio, a não ser a minha fé ingênua na existência do mundo, garante que diante de mim esteja um outro eu, um outro homem, e não uma coisa — algo que é ao mesmo tempo idêntico a mim e diferente de mim, um ser habitado por uma interioridade. E mais do que isso, o problema se agrava quando percebemos que nos quadros do objetivismo científico, assim como nos do subjetivismo filosófico, não existe o nós e o mundo social é uma impossibilidade. Mais exatamente: é a fundação de uma Psicologia Social que se torna impossível. Com efeito,

se se concebe a percepção em função de variáveis exteriores, se o homem nada mais é do que um detector de estímulos, os 'outros homens', uma constelação sócio-histórica, só poderão 'intervir como estímulos se reconhecermos também a eficiência de conjuntos que não possuem existência física e que operam sobre ele não segundo suas propriedades imediatamente sensíveis, mas (...) num espaço e num tempo sociais, conforme um código social e, finalmente, antes como símbolos do que como causas' (Merleau-Ponty, 1971, p.33). (...). Se, entretanto, não podemos esperar a constituição do outro a partir do objetivismo científico, não será do ponto de vista de uma filosofia da consciência que o veremos nascer. 'Para esta, é uma dificuldade inextricável compreender como uma consciência constituinte pode pôr outra que seja sua igual e, em conseqüência, também constituinte — dado que, imediatamente, é preciso que a primeira passe a constituída' (Merleau-Ponty, 1971, p. 68). Do ponto de vista de uma subjetividade constituinte, um 'eu penso', seria impossível deixar de reduzir o outro a um objeto — redução esta que se constitui num impasse para o aparecimento da intersubjetividade. E só sairemos dele se renunciarmos à dicotomia sujeito/objeto (Merleau-Ponty, 1971, p. 137). (Frayze-Pereira, 1984 p. 140).

Para Merleau-Ponty, se a experiência do corpo consigo mesmo, um visível capaz de reflexão, propaga-se na relação entre ele e as coisas, por que não ocorreria essa propagação entre ele e um outro corpo?

Ou seja, por quê a reversibilidade instaurada na relação entre meu corpo e a coisa não se daria na relação entre os corpos? Se meu corpo é uma sinergia onde dois olhos vêem, duas mãos tocam, realizando a experiência de um único corpo diante de um único mundo, graças à possibilidade de reversão de um no outro, graças a uma relação do sensível consigo mesmo e que me transforma em sentiente — 'este círculo que não faço mas que me faz' (Merleau-Ponty, 1971, p. 137), por quê essa generalidade que faz a unidade de meu corpo não se abriria para outros corpos? Por quê não existiria a sinergia entre os diferentes organismos, se ela é possível no interior de cada um? (Merleau-Ponty, 1971, p. 138). Minhas duas mãos são as mãos de um só corpo: elas são 'co-presentes'. Será por extensão dessa co-presença que o outro aparecerá (Merleau-Ponty, 1975, p. 439). No aperto de mãos, a mão de outrem vem ocupar o lugar deixado por uma das minhas: 'posso sentir-me tocado ao mesmo tempo que toco' (Merleau-Ponty, 1971, p. 138). Abertos um para o outro, os corpos se entrelaçam. Instaurando-se entre eles o circuito reflexionante, abre-se, então, a possibilidade de uma 'inter-corporeidade' (Merleau-Ponty, 1971, p. 137). Para Merleau-Ponty (1971, p. 138), a experiência do outro me é acessível se for tomada, não como uma idéia, mas como uma experiência iminente. Assim, a paisagem que vejo cruza-se com a do outro: torna-se nossa, e não minha. Para confirmá-lo, basta que, ao contemplá-la, fale dela com alguém — 'então, graças à operação concordante de seu corpo com o meu, o que vejo passa para ele, este verde individual da pradaria sob meus olhos invade-lhe a visão sem abandonar a minha; reconheço em meu verde o seu verde...'. Eu e outrem comungamos sobre um mesmo panorama que vemos por dois pontos de vista diferentes. Vejo que ele vê. Reconheço que meu mundo sensível é também o dele, pois assisto à sua visão: 'meu' verde passa nele e o 'seu' em mim — experiência iminente que vejo na tomada do espetáculo por seus olhos (Merleau-Ponty, 1975, p. 440) (Frayze-Pereira, 1984, p. 140-141).

Ora, como não há visão que seja ontologicamente acabada, cada visão está sempre sujeita a ser descentrada por outras visões. E quando essas se realizam, os limites de nossa visão de fato são acusados. Quer dizer, a referência ao outro já é implicada quando se investiga a atividade perceptiva, pois o perspectivismo da percepção — sua inerência a um ponto de vista localizado espacial e temporalmente e que permite falar de um mundo de experiência privado — pressupõe a presença de um mundo intersubjetivo, como campo aberto de outras possíveis experiências, onde justamente uma perspectiva poderia se recortar.

A certeza perceptiva nunca será, por si mesma, autêntica certeza, se não remeter para esta dimensão de coexistência na qual a minha perspectiva e a do outro se envolvem mutuamente, como outras tantas aberturas para um único campo de experiência. É por isso que eu e os outros podemos figurar como órgãos de uma única intercorporeidade (Bonomi, 1974, p. 46).

A minha perspectiva e a do outro são, assim, simultaneamente possíveis. Quer dizer:

O mundo é intercorporal e a transitividade de um corpo a outro está definitivamente fundada: 'há um círculo do palpado e do palpante, o palpado apreende o palpante; há um círculo do visível e do vidente, o vidente não existe sem existência visível; há até mesmo inscrição do palpante no visível, do vidente no tangível e reciprocamente; há, enfim, propagação dessas trocas para todos os corpos do mesmo estilo que vejo e toco' (Merleau-Ponty, 1971, p. 139). A possibilidade da existência de outrem dá-se abaixo da ordem do pensamento: percebo primordialmente uma outra 'sensibilidade' e, só depois, um outro pensamento. Antes de ser espiritual, a intersubjetividade é corpórea (Merleau-Ponty, 1975, p. 439). E, na medida em que vemos outros videntes, pela primeira vez somos desmesuradamente visíveis para nós mesmos. 'Essa lacuna, onde se encontram nossos olhos, nosso doso, é (...) preenchida por um visível de que não somos titulares' (Merleau-Ponty, 1971, p. 139). O que não posso ver de mim mesmo, porque adiro ao visível que sou, o outro, por sua situação no meio dos visíveis, pode vê-lo. Mas não podemos confundir o visível com a camada superficial do ser. Como sabemos, o visível estende-se em profundidade, de sorte que aquilo que se nos oferece é apenas a cifra de uma transcendência. Assim, o que o outro vê de seu lugar não é apenas a película superficial de minha pele, mas uma interioridade inesgotável que aí se expressa e exterioriza, sendo possível aos corpos enlaçados um ao outro (um corpo em geral visível-vidente) fazerem seu exterior seu interior, e seu interior seu exterior (Lefeuvre, 1976, p. 290-1).

Ou seja,

como cada vidente não existe sem ser ao mesmo tempo visível, cada um deles torna-se uma possível presa de outros videntes, através dos quais é conduzido de seu exterior para seu interior. Como diz Merleau-Ponty (1971, p. 139), na presença de outrem, 'somos plenamente visíveis para nós mesmos, graças a outros olhos'. E, descentrando-me em relação a mim mesmo e a meu pequeno mundo, os outros me abrem para novas dimensões do Ser (Lefeuvre, 1976, p. 303-4). Assim, por meu corpo, movo-me num mundo sensível que é intersujetivo, isto é, um mundo no e com o qual eu e os outros estamos situados e relacionados, um mundo que, portanto, já se premedita desde a raiz como mundo cultural (Frayze-Pereira, 1984, p. 142).

Entretanto, fundada a possibilidade ontológica de relação com o Outro, fica em aberto o modo particular como esse relacionamento irá se dar: na modalidade do conflito e da luta mortal, quando o eu só reconhece o outro para escravizá-lo, para reduzi-lo ao papel de testemunha e de espelho, o que leva à negação de sua qualidade própria, como poderíamos pensar na vertente hegeliana e, ainda, sartriana; ou, então, na modalidade da simpatia e do encontro, quando a experiência do outro e o conhecimento com o outro, bem longe de nos remeter, por analogia, a experiências familiares, ao contrário, amplia nossos horizontes, proporcionando-nos incessantes revelações. Nessa perspectiva, podemos simpatizar com sentimentos que nos são inacessíveis, como reflete Max Scheler para quem a simpatia não se confunde com o contágio afetivo. Na verdade, a simpatia transcende a afetividade, pois é um ato que visa a dor e o prazer de outrem, que os reconhece mais do que os experiência (Huisman e Vergez, 1966, ps. 166-168). E sem essa possibilidade de relação com o Outro, todas as Ciências Humanas seriam impossíveis, pois seria impossível ao homem compreender a mulher e vice-versa; aos adultos, a criança; ao branco, o negro; ao civilizado, o primitivo; ao jovem, o idoso; ao médico o doente; ao leitor, a obra; ao espectador, o criador e assim por diante. E na impossibilidade desse reconhecimento, também seria impossível pensarmos na possibilidade de uma convivência das diferenças, da multiplicidade de perspectivas no plano das ações práticas e teóricas, da interdisciplinaridade no plano do conhecimento e da pesquisa.

Foi pensando em questões como essas que organizamos este volume de Psicologia-USP cujo conteúdo, em parte, nasceu no IIIº Simpósio de Psicologia Fenomenológico-Existencial que coordenamos através da Sociedade de Psicologia de São Paulo, no Instituto de Psicologia da USP, em novembro de 19891. Dos conferencistas participantes desse evento, gostaríamos de lembrar o Professor José Américo Motta Pessanha que reviu conosco a transcrição de sua belíssima comunicação, sempre viva, cuja versão final, agora publicada, infelizmente, não pode chegar a ler. Mas, se incluímos a contribuição de outros estudiosos, procuramos manter os propósitos originais daquele Simpósio: interrogar o tema da alteridade de vários ângulos para evocar alguns de seus possíveis sentidos e enfatizar o caráter necessariamente interdisciplinar de seu campo de discussão. Assim, o leitor encontrará, neste volume, textos que se articulam ao redor de dois eixos — A presença do Outro na Literatura e nas Artes e a experiência do Outro nas Ciências Humanas e na Clínica Psicológica — através dos quais são tematizados diferentes aspectos da questão. E mais, tematizados por vias teóricas muito distintas que vão de Bachelard a Jung, de Merleau-Ponty a Freud, de Proust a Gauguin, de Adorno e Horkheimer a Homero, entre outros pensamentos e pensadores. Porém, consideradas as particularidades estilísticas de cada autor e os compromissos teóricos de cada perspectiva adotada, todas as diferenças harmonizam-se através da identidade de um gênero — o ensaio — que, segundo Michel Foucault (1984, 13), deve ser entendido como uma experiência modificadora de si no jogo da verdade e não como uma apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação. Nesse sentido, esperamos que os ensaios aqui reunidos contribuam para alargar nossa reflexão sobre nós mesmos. E para que se perceba a densidade desse campo tão amplo, implicado pela questão da alteridade, e a tarefa igualmente complexa que é pensá-la — questão atualíssima a ser tematizada pela Bienal de Veneza, em 1995 — há que se lembrar, novamente, algumas palavras de Merleau-Ponty. Numa de suas notas de trabalho, escreveu: "o que trago de novo ao problema do mesmo e do outro? Isto: que o mesmo seja o outro do outro e a identidade seja diferença de diferença". (1971, p. 237).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONOMI, A. Fenomenologia e Estruturalistno. S. Paulo, Editora Perspectiva, 1974.        [ Links ]

BRANDÃO, CR. Identidade e Etnia. S. Paulo, Ed. Brasiliense, 1986.         [ Links ]

FOUCAULT, M. O Uso dos Prazeres. RJ., Ed. Graal, 1984.         [ Links ]

FRAYZE-PEREIRA, J.A. A Tentação do Ambígüo. São Paulo, Ed. Ática, 1984.         [ Links ]

HUISMAN, D. e VERGEZ, A. A Ação. R.J., Ed. Freitas Bastos, 1966.         [ Links ]

MERLEAU-PONTY, M. O Visível e o Invisível. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971.        [ Links ]

 

 

1 Da comissão organizadora deste III Simpósio participaram comigo os professores Henriette Morato e Irto de Souza. À Prof. Henriette sou particularmente grato pelo apoio dado à obtenção de alguns dos artigos aqui publicados. Agradeço também à Aparecida Angélica Zoqui Paulovic Sabadini do Serviço de Biblioteca e Documentação do IP-USP pela cuidadosa revisão das referências bibliográficas, presentes neste volume.