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Psicologia USP
versión On-line ISSN 1678-5177
Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo 1994
ARTIGOS ORIGINAIS
A experiência do "outro" na antropologia
The experience of the "other" in anthropology
Renate Brigitte Viertler
Faculdade de Filofosofia, Letras e Ciências Humanas - USP
RESUMO
Este artigo visa apresentar alguns subsídios teóricos relativos às teorias da identidade étnica, tal como ela tem sido elaborada pelos antropólogos sociais; em segundo lugar, visa fornecer algumas idéias sobre a teoria da identidade social de um "outro", no caso, os índios Bororo do Mato Grosso, e por último, visa descrever como tais referenciais teóricos pensados e vividos em experiências de campo afetaram a busca da própria identidade da autora enquanto ser humano.
Descritores: Antropologia. Identidade étnica. Identidade social. Índios.
ABSTRACT
This article intends, first, to present some basic ideas relating to the theories of "ethnic identity" developed by social anthropologists; second, to furnish some data about the theory of social identity among the Bororo Indians, from Mato Grosso (Brazil); and third, to describe how these field experiences made the author changes personal perspectives about what research priorities should be.
Index Terms: Anthropology. Ethnic identity. Social identity. Indians.
No seio das ciências sociais contemporâneas, em especial da Antropologia Social, a noção de "identidade étnica" é imediatamente remetida ao contexto social no qual se privilegiam a multiplicidade, a diferença e o contraste culturais entre os grupos humanos. Basicamente, as teorias antropológicas relativas à identidade étnica aquela que se refere a grupos sociais e comunidades humanos podem ser subsumidas pela idéia de irredutibilidade. Assim, a definição da noção de identidade é certa dimensão de algo "irredutível", do qual todo grupo humano seria portador no decorrer de sua história de sobrevivência.
Na versão contemporânea da teoria da identidade, o outro é um "semelhante" apenas enquanto "ser humano", mas definido como "diverso" e "desigual" no jogo das relações interétnicas desencadeado pela história dos contatos culturais entre as diversas sociedades humanas. O contexto destas conjunturas de contacto intercultural extremamente diversificadas engendra modalidades de interação interétnica altamente variáveis que devem ser desvendadas cuidadosamente pelo pesquisador. E, em termos ideais, caberia então ao antropólogo, um investigador das dimensões étnicas e culturais das populações humanas, determinar quais as condições necessárias e suficientes para explicar o processo de engendramento (ou as "causas") destas "diversidades".
O problema está colocado, mas muito pouco se fez para aprofundá-lo no sentido de transcender o nível meramente descritivo das contribuições. As teorias da identidade social, da maneira como têm sido desenvolvidas, não chegam a propor hipóteses para os processos mais profundos que possam explicar o "por quê" da escolha de certas "marcas" pelos grupos humanos nas suas diversas contingências históricas. A sua descrição minuciosa, bem como o diagnóstico relativo aos limites do seu emprego constitui tarefa apenas necessária, mas não suficiente, para explicar o processo de sua emergência ou "criação" social.
Portanto, no contexto das teorias antropológicas, a "marca" emerge como algo arbitrário, fortuito, não explicável ao antropólogo atual, assinalando dimensões culturalmente construídas e reconstruídas pelos grupos étnicos no intuito de sua especificidade frente a outros grupos com os quais mantêm contatos sociais.
Um dos a priori da Antropologia Social é que cada sociedade, ao escolher a sua marca étnica, escolhe, por meio dela, um certo sentido para a construção das suas condições de vida social em um cenário de sobrevivência mais amplo. Neste campo de estudos, ressaltam as contribuições de Barth (1969), que, ao estudar os fenômenos de identidade étnica, associa as "marcas de identificação" a certas condições do ambiente físico. Segundo este mesmo autor, trata-se de analisar a competência que possuem os diversos grupos étnicos que se interligam em intrincada rede de relações em determinado território, na obtenção de recursos escassos de ordem material, competência esta que fundamentaria uma possível explicação da emergência das "marcas" de identificação étnica. Fato é que a maioria dos estudos antropológicos relativos a relações interétnicas não aprofundou a pesquisa e a interpretação para permitir um cotejo com os resultados obtidos por Barth, limitando-se a inventários descritivos de cunho histórico, sem nenhum intento comparativo.
Outra abordagem do problema das "marcas" étnicas consiste em relacioná-las com modalidades de controle social e político, desenvolvida principalmente por Balandier, que propõe a análise da multiplicidade de manifestações da "situação colonial", contextualizando a orientação geral da dinâmica das relações interétnicas. Apesar de se tratar de um enfoque de cunho sócio-econômico-político mais abrangente, Balandier não aprofunda possíveis aspectos micro-sociais e ecológicos do problema das "marcas", integração metodológica que ainda está por ser realizada. No Brasil, Cardoso de Oliveira, por exemplo, propõe a sua teoria das interrelações de grupos étnicos, baseada na idéia da natureza contrastiva de grupos étnicos, tais como certos segmentos da sociedade nacional brasileira e comunidades tribais indígenas. Tal natureza contrastiva entre os sistemas sociais envolvidos no contato inter étnico é concebida como sendo a expressão de um processo de "fricção interétnica", cuja descrição pormenorizada infelizmente não permite a elaboração de hipóteses relativas à emergência das "marcas" que afloram ao nível da consciência dos envolvidos.
Em suma, o problema teórico da criação de "marcas" ainda prescinde de hipóteses que possam explicar a sua emergência, embora disponhamos de numerosos trabalhos que, partindo delas, partem, aprioristicamente, daquilo que está por merecer uma explicação. As "marcas" criadas por cada grupo étnico para classificar os tipos de relação com o mundo humano mais distante, o mundo dos representantes de outros grupos étnicos, são construçõles culturais que nos remetem a processos psico-sociais muito pouco explorados e que, entre outras coisas, têm sido investigadas sob o tema de "identidade social". Quer nos parecer que tais estudos de "identidade social" ainda não tenham sido devidamente considerados pelos estudiosos da "identidade étnica", o que explica o seu caráter eminentemente descritivo. E, mais do que isso, na conjunção entre o antropólogo social e representantes de outros grupos étnicos, parece não se levar em conta a especificidade de interpretação de "identidade social" e de "identidade étnica" não só pensada, mas vivida pelo próprio pesquisador.
Dadas tantas lacunas, é compreensível que os avanços teóricos sejam parcos e pouco freqüentes. Como se o antropólogo social pudesse eximir-se do estudo mais aprofundado de seu próprio sistema de referência cultural apenas pelo fato de se considerar, em termos puramente ideológicos, acima das contingências desfrutadas por qualquer ser humano...
Fato é que dispomos apenas de uma cobertura fragmentária e pouco sistemática destas diversas teorias de "identidade social" e de "identidade étnica" envolvidas pela conjunção de representantes de grupos étnicos diversos, estado de coisas que está a pedir novos esforços de pesquisa e teorização.
Tais lacunas podem ser igualmente observadas a partir da apresentação do material coligido para a compreensão das idéias relativas à identidade social e à identidade étnica dos índios Bororo do Mato Grosso, tal como se verá a seguir.
Esboçando, de modo muito resumido, as idéias que têm os índios Bororo a respeito da identidade social, esta, segundo o que revelam as pesquisas de campo, deve ser entendida como um processo iniciado por meio da outorgação de um ou mais nomes pessoais ao ser humano enquanto bebê. Receber um nome significa receber uma identidade, um "rosto" moldado em um corpinho ainda mole. Portanto, o recém-nascido não representa, como entre nós, uma entidade social dotada de alma, coisa que, entre os Bororo, só acontece com a cerimônia de nominação dos bebês.
A análise do sistema de nomes pessoais e títulos honoríficos entre os Bororo revela que a outorgação de nomes a crianças e a adultos significa outorgar-lhes fragmentos de uma entidade maior, um ancestral clânico, que representa uma unidade detentora de nomes pessoais inspirados em feitos míticos e aspectos cerimoniais com ele associados. Os nomes possuídos por cada ancestral ou "casa cerimonial" associam-se a danças, pinturas faciais e corporais, cantos e mitos, além de primazias e privilégios na distribuição de recursos materiais nobres, tais como penas de aves e ornamentos plumários.
Cada "casa cerimonial", por sua vez, associa-se à idéia de "dinastia" ou "mansão" de famílias nobres em nossa tradição histórica européia. E cada unidade deste tipo, de cunho eminentemente cerimonial e político, preside o funcionamento de uma ou mais "casas-habitações" ou unidades domésticas que abrigam os seus representantes (no caso, mulheres de mesmo clã e sub-clã, visto tratar-se de uma sociedade matrilinear uxorilodal, isto é, onde, após o casamento, o marido vai morar na casa da esposa que tende a morar com a sua mãe).
Pelos nomes que recebe, cada indivíduo humano possui um vinculo especial não apenas com a sua "casa" de origem ou de "adoção clânica", mas também com as "casas" de seus padrinhos encarregados de oficiar durante a sua cerimônia de nominação. Tais vínculos expressam-se também ao nível da vida cotidiana, permeando padrões de distribuição de comida, visitas, casamentos e outras formas de solidariedade. O ciclo de vida de cada ser humano é concebido por um processo de outorgação gradativa de vários nomes, em diversas etapas de vida, associados com diversas partes do corpo: lábio inferior (perfurados para o nominando bebê do sexo masculino), lóbulos das orelhas (perfurados para jovens de ambos os sexos), pênis (amarrados com estojos penianos) e narizes (cujos septos eram perfurados para os pais de bebês do sexo masculino pelos Bororo do passado), num pontilhar de nomes que se estende desde o primeiro batismo do bebê até a consumação da procriação de um novo varão por parte do jovem adulto.
Na língua Bororo, dar um nome à criança corresponde à expressão ie-do, "fazer rosto" (uma identidade social ou máscara para a vida social uma persona, no sentido de Jung e de Radcliffe-Brown), cerimônia esta em que se pinta com urucu o rostinho da criança, realçando-o todo vermelho, em contraste com o branco da penugem que lhe envolve a cabeça, tronco e bracinhos. Já o "fazer orelhas" de jovens de ambos os sexos envolve, além da sua perfuração, a outorgação do direito de usar brincos próprios ao sub-clã a que pertence o iniciando, associado, entre outras coisas, ao longo processo de aprendizado das tradições orais próprias a cada clã, expressão das normas jurídicas do mundo social Bororo.
Durante os ritos de iniciação pubertária masculina, os jovens recebem estojos penianos que lhes dão o direito de exercer relações heterossexuais com mulheres "esposas", isto é, mulheres com as quais é permitida a procriação. O próprio termo Bororo para "esposa" oreduje (aquela que está para fazer filho) denota a importância do aprendizado do jovem realizado por ocasião do nascimento do seu primeiro descendente, quando ele se envolve no provimento da dieta adequada para sua esposa, abstenções alimentares e contenção sexual visando beneficiar o recém-nascido. Crescendo bem, os parentes matrilineares da mãe decidem então outorgar um ou mais nomes ao bebê, que, quando de sexo masculino, permite que o pai possa receber um furo no septo nasal para ostentar belas penas e enfeites, em suma, belos "narizes" cerimoniais.
No caso específico da cultura Bororo, a estratégia de outorgar nomes, muito difundida entre as diversas sociedades tribais brasileiras, é complementada por uma prática cerimonial inédita: após a morte de um indivíduo, seja ele homem, mulher, adulto ou criança, ele recebe um "nome de morte" que será usado também por outro indivíduo, um vivo, de sexo masculino, designado para ser o seu "substituto".
O "substituto" representa o finado durante os seus funerais, dançando por ele, lavando-lhe os ossos para untá-los com resinas e urucu, para depois enfeitá-los com plumas e dispô-los em um cesto-ossuário a ser enterrado fora da aldeia. Além de tantas tarefas cerimoniais, o "substituto" também deve caçar um animal de desagravo, a ser oferecido aos enlutados como compensação à grande perda por eles sofrida. Em troca, o "substituto" recebe direitos vitalícios à comida cerimonial preparada por estes em homenagem ao morto considerado. Na medida em que o "substituto" recebe um nome e o direito de usar e fabricar alguns enfeites do clã do seu morto, ele passa a ser adotado ritualmente pelo clã enlutado, tornando-se um "parente" (um "filho" ritual) dos parentes do seu finado. Cabe ressaltar que o nome recebido pelo "substituto" é sempre um nome diverso (embora pertencente à mesma unidade detentora de nomes ou "casa cerimonial") daquele do morto, eclipsado por um longo tempo ("até que a terra tenha comido os ossos"), embora se espere que ele se desincumba das mesmas obrigações sociais exercidas pelo finado.
Instaura-se, assim, um ciclo de perpetuação de um indivíduo, lembrado enquanto fôr vivo o seu "substituto" que, após a sua própria morte, será lembrado por outro vivo, o seu próprio "substituto". Deste modo, perpetuam-se as funções cerimoniais funerárias ligadas a identidade sociais eclipsadas pelas mortes, identidades sociais desaparecidas que configuram uma cadeia de finados cerimonialmente entrelaçados. Na medida em que a escolha de um "substituto" sempre recai sobre um homem caçador "não parente" do morto, e na medida em que o parentesco Bororo é concebido em termos da pertinência dos parentes a uma mesma metade matrilinear (cada metade é formada, por quatro clãs matrilineares, por sua vez subdivididos em vários sub-clãs ou "casas cerimoniais") o "substituto" acaba por ser escolhido entre os caçadores adultos da outra metade à do morto. Substituindo-se uns aos outros, tais cargos cerimoniais de "substituição" definem a especificidade do culto aos mortos entre os Bororo, expresso, de maneira exuberante, por prolongados cantos, danças, sofisticada arte plumária e refeições comunitárias, refeições de "almas" de mortos, já vingados, que vêm, alegremente, receber o seu quinhão de comida cozida dentro da choupana dos homens, pelas bocas dos seus "substitutos".
Cada "substituto", em termos de sua identidade social, representa na verdade um "outro" (iadu) carregando consigo, tal como carrega a cabacinha mortuária que simboliza o finado, os direitos e os deveres por um "outro", um finado, fisicamente morto, anônimo e ausente da aldeia, mas, espiritualmente vivo, nominado com um nome de morte e, cerimonialmente, representado pelo seu substituto. Os nomes dos mortos não devem jamais ser pronunciados, nem guardados os seus pertences que são incinerados, enterrados, jogados no rio e enclausurados com seus ossos. A vida dos mortos corresponde a uma outra dimensão da existência humana em que a noite é dia entre os vivos e o dia é o frio e a escuridão noturna dos sobreviventes. Os vivos cantam, falam, tocam os instrumentos e possuem o fogo, enquanto os mortos apenas gemem e dançam como animais moribundos, cegos e desprovidos de fogo; calor e alimento cozido que, nas suas andanças irrequietas vêm de tempos em tempos procurar junto aos vivos, engendrando o ciclo periódico de rememoração dos mortos das aldeias.
Evidentemente, torna-se difícil a compreensão e a vivência deste tipo de concepção da identidade social por parte de qualquer pesquisador ocidental. Engendram-se fusões pouco habituais entre categorias de classificação que, ao nosso ver, são inconfundíveis: "mortos" / "vivos", "seres humanos" / "animais", "corpo" / "alma", etc.
Interpretando a teoria da identidade dos Bororo, existe a possibilidade de assumir que, dentro de cada ser humano vivo, há a conjunção temporária de dois princípios que o ligam ao cosmo: um associado às almas humanas, à identidade social expressa pelos nomes pessoais, cantos, pinturas, mitos e danças, sinteticamente expresso pela nossa concepção de Cultura; outro associado à vida animal e ao mundo dos gostos, desejos e demais paixões incontroladas levando a comportamentos anti-sociais e a infrações das normas de convivência social. Assim, haveria uma dualidade interna a cada indivíduo vivo, dotado de um corpo que ainda não se desintegrou (bi-bokwareu = morto não, vivo): a sua "alma" humana ou sua essência social, e outra "alma" animal, representada por tendências bio-psicológicas que compartilha com espécies animais e vegetais que observa no seu ambiente.
Com a morte, desfaz-se o tênue equilíbrio entre estes dois princípios que fundamentam o psiquismo do Bororo vivo, equilíbrio temporário redefinido corporal, psicológica e socialmente pelas diversas etapas do seu ciclo de vida, já que, com cada novo nome recebido, o Bororo altera a aparência do seu corpo (por "furos" e enfeites novos, amarrações, cintos, etc. que sinalizam o seu "estado"), bem como se esperam dele novos padrões de comportamento social. A morte do Bororo é predominantemente explicada por parte dos Bororo da atualidade pela influência, sedução e atuação de espíritos designados de Bope ("coisa ruim"), que tomam conta do Bororo de dentro para fora, alastrando-se pelo seu corpo e sua maneira de viver, a ponto de aproximá-lo do mundo dos animais, que desobedecem aos preceitos morais da comunidade.
O bebê possui um pouco de Bope que deve ser mantido sob controle pelos seus genitores por meio de rigorosas prescrições ligadas ao sexo e à alimentação, cuidados rituais e espirituais estes reforçados pela atuação dos padrinhos de batismo do bebê que, pelo nome, é associado a um ancestral clânico antigo e benevolente (Aro marigudu = finado morrido há muito tempo) e passa a ter dentro de si um pouco de "alma humana" (Aroe) e um pouco de "alma animal" (Bope), o início de um pequeno sistema de equilíbrio psíquico redefinido e ampliado no decorrer do seu ciclo de vida.
E este processo termina quando Aroe (a alma humana) é roubado e retido fora do corpo do Bororo, coisa por vezes feita por algum feiticeiro, que abre caminho para os avanços de Bope (a alma animal).
Após a agonia e o desenlace, cabe à comunidade dos sobreviventes cuidar primeiro dos aspectos tangíveis do finado considerados altamente perigosos (Bope), razão pela qual são rapidamente emplumados e rigorosamente isolados. O corpo, envolto em esteira, é sepultado no meio da praça central da aldeia para que logo se possa lavar os ossos, livres das carnes estragadas, sem pele. A casa é queimada junto com alguns dos objetos do morto. Enquanto isto, dentre os aspectos Aroe do finado, o seu nome pessoal não pode mais ser pronunciado, entrando em longo eclipse enquanto os enfeites plumários e demais adornos cerimoniais são juntados apenas aos ossos depois de lavados, pintados e enfeitados de plumas. A lavagem e decoração dos ossos é sempre tarefa do "substituto" que junta ossos, enfeites, plumas, sangue e lágrimas dentro do cesto funerário, para costurá-lo e enterrá-lo em algum lugar longe da aldeia. E, bem longe da aldeia também, ele caça um animal de desagravo para trazê-lo como oferta aos enlutados e assim redimi-los do luto. Traz-lhes couros de onças, jaguatiricas, pumas, lobos ou penas de grandes aves de rapina, espécies vistas como encarnações temporárias dos finados (Bope). Uma vez abatido, o animal de desagravo é carregado para a aldeia, onde é depenado ou esfolado, à semelhança dos mortos humanos conservados apenas pelos ossos. Deste modo, o animal de desagravo de Bope é transformado em Aroe, um belo couro de onça pintada, um belo diadema de penas de águia ou um colar de dentes feito em memória a um falecido. De modo inverso, os ossos sepultados dos finados, de Aroe se transformam em Bope, pois as áreas de sepultamento entre os Bororo são respeitadas como lugares interditos à caça e à pesca, constituindo-se, portanto, em reservas de regeneração de vida animal, espécies que durante o seu ciclo vital se subordinam aos Bope. Tais espíritos associados à abundância e ao crescimento de espécies animais e vegetais úteis aos Bororo são igualmente a manifestação dos finados Bororo já vingados que, satisfeitos com os seus parentes vivos, benevolamente lhes enviam animais, frutos e raízes para a sua alimentação, pelo que são lembrados por ocasião das refeições comunitárias. Em suma, pelos encargos cerimoniais e pelo abate do animal de desagravo, os "substitutos" representam a interligação de seres humanos mortos e vivos e dos mundos humano e não-humano. Reinstaura-se um novo equilíbrio rompido com a morte do Bororo que, após o abate do seu animal de desagravo, é regenerado em novos níveis um equilíbrio entre o finado, já integrado no reino dos mortos, e os parentes sobreviventes ressarcidos pela integração de um novo parente, o "substituto", e belos troféus de caça, expressão de um novo controle sobre a animalidade desenfreada do finado, razão pela qual é possível superar o luto emocionalmente associado à raiva e à vergonha pelos atos impensados do parente morto e voltar à vida de rotina reconstruindo a casa; trabalhando na roça, pesca, caça e coleta, preparando a comida e relacionando-se sexualmente, reengendrando o fluxo da vida.
Estas observações constituem, ao meu ver, um pano de fundo mínimo indispensável à compreensão daquilo que os antropólogos podem aprender com os índios Bororo sobre o problema da "identidade social". É preciso não esquecer que as eventuais "teorias" sugeridas pelos pesquisadores não passam de representações criadas por estes dentro de condições cognitivas e afetivas muito particulares, e pouco controladas, projetadas como válidas para explicar certas reações, verbalizações e comportamentos de outros seres humanos. Se tais construções correspondem a processos reais de identificação social atuantes no psiquismo destes outros seres humanos é uma outra questão, por sinal impossível de ser resolvida. Trata-se sempre de construções imaginárias, hipóteses de trabalho a serem mantidas enquanto tiverem eficiência explicativa suficiente para não serem descartadas. E, no contexto da Etnologia e da Antropologia Social e Cultural, tais construções tendem a ser altamente idiossincráticas, dada a especificidade das propostas, métodos de trabalho e história de contato interétnico altamente variável de um para outro pesquisador.
No âmbito das relações interétnicas, os Bororo classificam como marege a outros índios ou índios não Bororo, Kaiamo-doge e Koroge a inimigos humanos, e Barae e Tabae aos civilizados de cor branca e preta, respectivamente.
Segundo um mito Bororo, os "civilizados" foram criados pelos Bororo. Um ancestral muito estúpido teve a infeliz idéia de, em se sentindo muito só, bater com a sua vareta mágica para fazer aparecer os primeiros civilizados. Como estes sentissem fome e frio, bateu-lhes mais uma vez a vareta para criar-lhes animais e espécies domésticos, além de madeiras para as suas casas.
Eis uma hierarquia de dominação expressa no mito Bororo que nos apressamos em inverter pois, segundo a concepção dos antropólogos, os índios Bororo é que são os dominados pelos representantes da civilização! A validação da interpretação Bororo ocorre por ocasião da realização dos funerais, quando os chefes de postos, missionários, pesquisadores e demais Barae são obrigados a obedecer às determinações dos chefes cerimoniais Bororo.
Quando a convivência entre Barae e Bororo é mais prolongada, os primeiros tendem a ser integrados como subalternos dos homens mais velhos da aldeia, chefes clânicos de prestígio social variável, por meio da política de outorgação de nomes.
A autora do presente trabalho foi adotada por um chefe de pouco prestígio clânico, mas de grande prestígio pessoal. E, dentro deste clã, foi associada a um ancestral visto como "irmão menor". Portanto, enquanto "irmã menor" ela desfrutava, em termos de vínculos internos a sociedade Bororo, um prestígio menor do que alguém considerado "irmã maior" ou "irmã mais velha", "mãe" ou "avó materna", dentro da mesma "casa" (ou sub-clã). Junto com o nome, ela recebeu também o encargo vitalício de zelar e cuidar dos seus parentes próximos, em especial no que se relaciona a recursos materiais e presentes. Tais expectativas e exigências visam, antes de mais nada, fortalecer o prestígio do "nominador", o chefe Bororo que tomou a iniciativa de nominá-la e que, em troca, espera a satisfação de suas ordens e desejos.
No passado, durante os conflitos entre Bororo e fazendeiros ou militares, quando derrotados, os Bororo passavam a se designar pelo nome do seu dominador. O pacto de paz entre o então coronel Rondon e o grande chefe cerimonial e político Cadete foi celebrado pela oferta de uma farda ao grande chefe Bororo, fato que inspirou o seu apelido "Cadete". Assim, observa-se que o Bororo derrotado ou "pacificado" recebe, se não for um nome, como ocorreu após a derrota sofrida pelos Bororo Ocidentais por parte dos civilizados da área que os reduziram a um punhado de poucas pessoas, alguma insígnia do seu dominador (no caso, a farda de Cadete). Atualmente, antropólogos e chefes de Posto orgulhosos de terem recebido nomes entre os Bororo, portadores de insígnias e nomes dos Bororo, acabam se transformando, na verdade, em subordinados "civilizados" dos seus parentes rituais...
No contexto das "marcas étnicas" selecionadas pelos Bororo para construírem a sua identidade no contexto das relações intertribais e interétnicas, estes optaram por se apresentarem neste cenário mais amplo como sendo "os grandes conhecedores dos funerais", dimensão esta que não logrou ser disputada por nenhuma outra tribo brasileira. E os Bororo se afirmam como os detentores exclusivos de algo muito exclusivo: a prática do enterro secundário, padrão funerário este bem menos desenvolvido e mesmo desaparecido entre outras tribos indígenas brasileiras que o possuíam no passado. E mais do que isto: a prática do enterro secundário, feito por um "substituto" todo ornado e emplumado quando dança como "alma nova", engendrando um tipo de sociabilidade vitalícia sui generis (respeito, trocas de bens nobres, etc.) com os parentes clânicos do morto, que não reencontramos em nenhum outro contexto tribal.
A maioria absoluta dos Bororo da atualidade continua a participar entusiasticamente dos funerais que, apesar de evidenciar acentuadas mudanças nos padrões de manifestação material (o desaparecimento quase total da cerâmica, o desaparecimento de algumas cerimônias, dado um acentuado decréscimo populacional e a falta de matérias-primas por vezes insubstituíveis, a introdução da cachaça, do mate, açúcar, fumo, café, roupas, cobertores, etc.), continuam aglutinando grande número de Bororo participantes e visitantes nas aldeias enlutadas. Apesar de todas as pressões em contrário, os Bororo continuam afetivamente ligados à realização destes funerais e ao mundo cultural ligado ao prestígio dos heróicos caçadores, os "substitutos" dos finados, fazendo florescer a vida societária dos Bororo vivos, jorrando belos enfeites, danças, cantos e comidas perfumadas nas praças de suas aldeias.
Como esta convivência afetou a autora enquanto pesquisadora e enquanto ser humano? Constato que durante os primeiros anos de minha pesquisa de campo, eu desfrutava de condições melhores para realizar um trabalho de cunho acadêmico. Talvez pelo fato de me sentir mais segura por permanecer controlada e mais afastada dos meus "informantes", relutando ao processo inexorável de aproximação a estes "outro", coisa que viria a tentar nos períodos de convivência posteriores. Tal aproximação é penosa, pois implica em transcender a si mesmo, aos seus gostos e confortos, para tentar se aconchegar a estes outros misteriosos seres humanos, "amigos" talvez, ainda distantes, mas suficientemente instigantes para atrair-nos...
Constato que as teorias elaboradas pela Antropologia Social têm muito pouco da profundidade necessária para captar os processos psico-sociais de "outros" e de "nós mesmos", constantes diálogos que subjazem às manifestações aparentes daquilo que convencionamos designar de "relações interétnicas", ou então, "questões de identidade social". É evidente também que as teorias propostas referem-se a reflexões esquemáticas e simplificadoras de referenciais ricos e complexos de vivência e pensamento humanos.
Minha convivência cumulativa e cada vez mais intensa e calorosa com os Bororo me convenceu que seria útil tentar captar novas dimensões de realidade por meio de referenciais baseados na sensibilidade e na intuição, antes de tentar sujeitá-las à frieza conceituai indispensável a qualquer ciência. E constato que a esta altura, após uma história pessoal de contato por vinte anos, eu mesma me sinto com uma identidade um tanto fragmentada, intensificada inclusive por minha origem européia. Além do longo processo psicoterapêutico, que se revelou como caminhada decisiva na busca de minha própria identidade, constato ser necessária uma prolongada reciclagem teórica e filosófica para dar continuidade à minha atividade como pesquisadora. A certeza inicial de um longo caminho de incertezas futuras é representada pela idéia de que as questões ligadas à identidade social ou à identidade étnica não podem ser explicadas ao nível de meras descrições de circunstâncias históricas, a não ser quando forem referidas a processos psico-sociais mais profundos, hipóteses parciais relativas a uma natureza humana, objetivo este infelizmente relegado como secundário pela maioria dos antropólogos da atualidade.
Caberia pois um esforço conjunto no sentido de não se aplicar apenas teorias já propostas por cientistas sociais, mas de criar novas teorias, mesmo que se considere que entre nós haja falta de amadurecimento intelectual quando nos comparamos aos cientistas do primeiro mundo. Construir um discurso acadêmico convincente pode ou não coincidir com um discurso de natureza científica, além de que elaborar um discurso científico pode ou não ser satisfatório para um pesquisador mais intuitivo e sensível. Retomemos, portanto, com novo vigor, à velha questão da Antropologia, enquanto uma proposta holística relativa ao seu objeto, a espécie Homo Sapiens: O que é o Homem? E, ao meu ver, caberia aos antropólogos da atualidade tomar a iniciativa de buscar novo dados e ferramentas, não apenas do seu domínio restrito e exclusivo a Antropologia Social mas de outros domínios que encerram fenômenos ainda não suficientemente desvendados pelas outras ciências humanas (em especial Psicologia, bastante negligenciada pelos antropólogos), bem como mistérios ainda pouco investigados, segundo o revela a história das Humanidades, Religiões e Artes de Homo Sapiens.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTH, F. Ethnic groups and boundaries. Boston, s.ed., 1969. (The little Brown Series in Anthropology) [ Links ]
VIERTLER, R.B. A duras penas: um histórico das relações entre índios Bororo e civilizados no Mato Grosso. São Paulo, FFLCH / USP, 1990. [ Links ]
VIERTLER, R.B. A refeição das almas: uma interpretação etnológica do funeral dos índios Bororo Mato Grosso. São Paulo, HUCITEC, 1991. [ Links ]