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Psicologia USP

versión On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo  1994

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A questão da alteridade na teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche1

 

The question of alterity in Jean Laplanche's Theory of Generalized Seduction

 

 

Luís Claudio Mendonça Figueiredo

Instituto de Psicologia - USP

 

 


RESUMO

Neste artigo é apresentada uma síntese da Teoria da Sedução Generalizada de Jean Laplanche enfatizando-se a incidência decisiva do encontro com a alteridade — as mensagens enigmáticas do mundo adulto — nos processos de constituição e reconstituição do si. Em seguida, é posta em questão a própria noção de 'alteridade' assumida implicitamente por Laplanche: procura-se mostrar que o psicanalista francês trabalha com uma noção 'positivista' de alteridade em que esta é concebida como ente-já-constituído. Em contraposição, argumenta-se que a noção de 'enigma' exige uma ontologia não positivista em que a alteridade seja tomada como emergência, ou seja, como o que brota no acontecimento inaugural em que o si e o outro vêm a ser.

Descritores: Subjetividade. Psicanálise. Teoria psicanalítica. Tempo. Sedução.


ABSTRACT

This paper presents a synthesis of the Generalized Seduction Theory of Jean Laplanche enphasizing the encounter with alterity in the processes of constitution and reconstitution of the self. Then, the very notion of alterity implicit in Laplanche's work is discussed. An alternative conception is proposed; here alterity is conceived as 'emergency' and happening in the same process of self-constitution.

Index terms: Subjectivity. Psychoanalysis. Psychoanalytic theory. Time. Seduction.


 

 

Os textos de Jean Laplanche reunidos na coletânea La Révolution Copernicienne Inachevée (1992), em particular os últimos, em que sua Teoria da Sedução Generalizada é desenvolvida e posta a trabalhar, têm como questão central os processos de constituição e reconstituição da subjetividade a partir do encontro com as alteridades. Neste artigo tomaremos como base dois capítulos deste livro {Temporalidade e Tradução e O Tempo e o Outro) para uma exposição crítica das idéias do psicanalista francês. Como se verá adiante, a crítica incidirá na própria compreensão da alteridade explicitada por Laplanche: a uma concepção em que a alteridade é vista como ente-já-constituído contraporemos uma concepção da alteridade tomada como o que emerge no mesmo processo em que se constitui o si.

Avançaremos procurando inicialmente uma sistematização das idéias principais através de breves considerações em torno de alguns temas:

 

1. Tempo cósmico ou cosmológico, tempo do vivente, temporalização e historicidade

Laplanche distingue quatro níveis em que o tempo pode ser trabalhado pela filosofia e pelas ciências: o tempo dos processos físicos, o tempo dos processos biológicos e das "vivências", a temporalização ao nível da existência humana e, finalmente, a historicidade das coletividades. As contribuições de Freud para o tempo perceptivo do vivente são rapidamente apresentadas; trata-se na verdade de uma formulação não psicanalítica, embora de eventual interesse, acerca de como o modo de funcionamento dos aparelhos perceptivos gera uma temporalidade baseada na periodicidade dos ritmos de abertura e fechamento das vias de contato com o ambiente. Estes ciclos de abertura e fechamento seriam, talvez, expedientes através dos quais os organismos regulam suas exposições ao meio, evitando uma sobrecarga de estimulação. Desta periodicidade adviria o tempo da vivência.

 

2. A questão da temporalização e as respostas implícitas da psicanálise

Laplanche pretende trabalhar no terceiro nível, o da temporalização da existência, tentando desentranhar o que poderia ser uma teoria implícita da psicanálise acerca do processo existencial de temporalização. Para fazê-lo, contudo, Laplanche expõe a sua própria concepção do que seria o processo analítico e, em seguida, do que seria a subjetivação numa perspectiva psicanalítica pós-freudiana.

2.1. A alteridade e o enigma: todo o processo de constituição das subjetividades é deflagrado, segundo Laplanche, pelo encontro da criança com a alteridade do adulto. Não se trata apenas de um adulto em especial (o sedutor), mas do mundo adulto; por outro lado não se trata do mundo adulto como "o grande outro" lacaniano, mas de adultos concretos, particulares e diferenciados que "representam" o mundo adulto para a criança. Esta alteridade — esta mensagem outra — não é só a da diferença entre o adulto em relação à criança, mas a da diferença do adulto para consigo mesmo, ou seja, trata-se da alteridade implicada no/pelo inconsciente do adulto como corpo estranho e no que este inconsciente torna o adulto enigmático para si mesmo e, mais ainda, para a criança.

Assim sendo, a "hipocrisia" de que fala Ferenczi (1990, 1992) não é algo eliminável pela boa vontade ou pelo esforço de sinceridade do adulto. Em acréscimo, a sedução não é exercida apenas pelo adulto perverso, mas pelo adulto-outro-enigmático, isto é, por todo e qualquer representante deste mundo adulto com suas mensagens sempre plurais, cindidas, equívocas, promissoras e excludentes. Assim sendo, as mensagens do adulto serão necessariamente enigmáticas, pondo à prova e derrotando as capacidades e recursos simbólicos da criança.

2.2. O enigma e a exigência de tradução: efetivamente, os enigmas provenientes do mundo adulto impõem à criança uma tarefa inexequível e inadiável, a de traduzir, a de teorizar, a de simbolizar; a de metabolizar o corpo estranho implantado pelas mensagens enigmáticas. Uma parte mais ou menos substancial destes enigmas é imetabolizável, resistente ao trabalho tradutivo e vai se constituir, através do recalcamento de fragmentos de mensagens enigmáticas, no inconsciente da criança. Estas partes intraduzíveis — que são ao mesmo tempo comunicadas, ignoradas e desmentidas (para usarmos o termo ferencziano) pelo adulto — são o 'sexual' ("a sexualidade é o que se esconde das crianças", nos diz Laplanche). Mas, atenção: creio que não se trata de dizer que o 'significado sexual' é recalcado, mas de dizer que é o recalque que constitui o 'sexual psicanalítico' enquanto tal2.

O não traduzido e intraduzível, esta coisa impenetrável, exercerá perenemente uma pressão, gerando uma pulsão tradutiva e, simultaneamente, impondo reiterados fracassos ao esforço tradutivo.

2.3. As ocorrências de de-tradução:em determinadas circunstâncias, acontecimentos naturais, como o luto, ou 'artificiais', como a interpretação psicanalítica, promovem movimentos de-tradutivos, movimentos de destecimento ou desligamento dos elementos de uma trama. Esta trama, ao mesmo tempo que reunia e significava alguns elementos, resistia, por outro lado, à emergência dos que ficaram excluídos, como resíduos não traduzidos, como corpos estranhos, objetos-fonte de pulsão. As de-traduções propiciam novas possibilidades de tecimentos, eventualmente mais 'fluentes' e 'continentes' e menos rígidos e recalcantes. Ou seja: a de-tradução beneficiaria 'melhores' re-traduções.

2.4. Os enigmas, as traduções na posterioridade, as de-traduções, as re-traduções posteriores e a seqüência dos ekstases temporais —presente, passado e futuro: o que Laplanche sugere é que a temporalização se dá através dos movimentos gerados pelo enigma, ou seja, pela implantação de um a-traduzir, que ao mesmo tempo obriga o sujeito a um trabalho de tradução/tecimento (sempre imperfeito) e torna, dada a imperfeição, qualquer tradução/tecido (ou trama) precária, vulnerável a de-traduções e tendendo para re-traduções. A história se faz nas posterioridades dos encontros com os enigmas a-traduzir, sob o impacto destes enigmas ou sob a pressão de suas ressurgências (os retornos 'enigmáticos' do recalcado, por exemplo, num sintoma). Estes impactos é que levam do presente — o presente do encontro com um a-traduzir atual ou ressurgente — ao passado, num movimento de-tradutivo, e deste conduzem à abertura de um novo futuro, através de re-traduções.

2.5. A temporalização entre o determinismo e a construção livre do sentido: assim, uma teoria psicanalítica da temporalização estaria livre tanto do determinismo próprio de um realismo ingênuo — "passado determina presente e este determina futuro" — como de um puro construtivismo em que só no futuro, na posterioridade, se decide e se constrói o sentido do passado, o que retira deste passado qualquer eficácia própria. Nos dois casos, na verdade, o que mais se empobrece é o presente: sob a ótica determinista, o presente nada mais é que decorrência do passado e nada nele pode acontecer de fato; na ótica oposta, o futuro decidirá do sentido do passado e, portanto, do sentido do que hoje ainda é 'presente'. Assim, nada do que se dá aqui e agora pode incidir efetivamente na marcha da temporalização3 . Para que no presente algo se possa dar de crítico e decisivo fazem falta noções como a de acontecimento e de transpassibilidade4; embora Laplanche não faça uso delas, elas estão como que ausentemente presentes na sua teorização acerca dos impactos de enigmas a-traduzir. Enigmas a-traduzir, implantados como objetos-fonte de pulsão, nem contêm em si mesmos todas as possibilidades futuras de um sujeito, como se fosse um script a ir sendo recitado ao longo de uma vida, nem se submetem docilmente a qualquer tradução a posteriori. Ao contrário: não se submetem a nenhuma tradução e, exatamente por isso, exigem um permanente trabalho re-tradutivo.

No entanto, se na minha leitura de Laplanche sinto-me à vontade para discernir a necessidade e a possibilidade de introduzir uma noção como a de acontecimento, sinto-me também obrigado a considerar o fato de que ele próprio não a introduz. Isto me leva a elaborar uma leitura crítica de sua obra.

Realmente, em que pese o instigante das propostas de Laplanche, elas suscitam inúmeras questões, algumas das quais já enunciadas pelo debatedores, e, em particular, por Maurice Dayan5. Antes de expor, porém, estas questões já debatidas, iniciarei colocando outras que me parecem ainda mais básicas. Começarei tratando do que poderia ser chamado de o positivismo realista de Laplanche.

Para início de conversa, vale assinalar que o termo positivismo não está sendo aqui usado como acusação, mas corresponde ao que o próprio Laplanche disse de si mesmo em resposta a uma questão de Zeljko Loparic, quando de sua fala na PUCSP em setembro de 19936.

O que significa ser (e dizer-se) positivista?

Significa tomar os entes na sua positividade... e nada mais; ou seja, significa lidar-com e focalizar apenas os fenômenos já entificados, já constituídos e representados. Será, porém, que enigmas podem ser tomados desta maneira? Será que o positivismo de Laplanche faz justiça à sua intuição teórico-clínica que concede aos enigmas uma função destacada na subjetivação? Creio que não: falar em enigmas é já comprometer-se com um 'algo' que deixou de ser e ainda não é. Há nos enigmas uma falta — a falta de sentido, a falta de função — e um excesso — uma espécie de sobra irredutível e promissora. Efetivamente, se o enigma fosse apenas o 'sem-sentido' ele não engendraria a pulsão tradutiva cuja função será exatamente a de lhe dar um é. Nesta medida, enigmas devem e precisam ser entendidos como um momento de um processo que implica perda e reconstituição. Em outras palavras, enigmas não possuem a positividade dos entes simplesmente dados, nem a sólida funcionalidade dos instrumentos à mão e para dar conta deles seria necessária uma outra ontologia que não a positivista.

No entanto, em que pese a introdução desta noção, Laplanche é realmente positivista ao tratar de algumas questões básicas para a sua teorização.

Fundamentalmente, este positivismo se traduz na dificuldade de Laplanche livrar-se de uma noção pré-crítica de 'outro' e no seu desconhecimento de como se dá a emergência da alteridade.

Quando Laplanche fala do 'outro' e de sua alteridade ele se coloca no ponto de vista realista em que, naturalmente, o adulto é o outro da criança. Ele não é capaz de tratar da alteridade como emergência, ou seja, ele não faz o trabalho fenomenológico que dá conta da emergência simultânea de uma alteridade e do si como o protótipo de todos os acontecimentos, como o acontecimento inaugural Para Laplanche o outro é desde sempre um objeto a oferecer mensagens à criança e nunca o mundo circundante e, nesta medida, matriz de todas as traduções primitivas.

O outro funcionando como parte do si (a rigor ainda não há neste momento um si plenamente constituído, e a expressão 'parte do si' acaba incorrendo também ela numa falácia realista) foi o que levou, por exemplo, Kohut a cunhar o termo self-objeto, na mesma linha em que Winnicott falara em mãe ambiente e que Bollas veio a propor o termo objeto transformacional7. Muito antes deles, contudo, e numa abordagem fenomenológica, estas posições do mundo adulto e da criança foram tratadas por Scheler (1923/1971) que disse: "o homem vive de início e principalmente dentro dos outros e não de si mesmo" (p.335). Ao que acrescentei num outro trabalho:

De início estamos todos, assim, 'dentro' dos outros, sejam os outros família, classe social, nação, tradição, sistema linguístico etc. É este 'outro', anterior ao 'eu' ao 'tu' e ao 'ele', é este 'outro' indiferenciado — e que nesta medida precede a emergência da alteridade — que antes de aprendermos a fazer e a dizer 'eu fiz', antes de aprendermos a pensar e a dizer 'eu pensei', antes de querermos e de dizer 'eu quero', já faz, já pensa, já quer e já sente por nós (Figueiredo, 1991).

Segundo Max Scheler a diferenciação nunca será total: estamos sempre em maior ou menor medida imersos neste 'outro' (e sendo atravessados por ele); a este 'outro' Heidegger chamará de "o impessoal" e é o 'quem' que nos oferece um mundo sempre já pré-compreendido. É desde aí que podem emergir os outros positivados com suas alteridades, é aí que podem eclodir os acontecimentos, é deste pano de fiando que se podem destacar os enigmas.

Parece-me, contudo, que a contribuição de Laplanche é valiosa não só por insistir na outra face da moeda — o outro enigmático, sedutor e traumatizante — como por também enfatizar que este outro é outro para si mesmo, ou seja, contém uma diferenciação interna. Ora, esta idéia de um outro cindido e plural poderia proveitosamente ser incorporada também ao 'outro' (aparentemente) indiferenciado de Max Scheler ou ao outro como self-objeto ou como ambiente de que nos falam Kohut e os psicanalistas do grupo independente. Esta cisão, inclusive, seria, provavelmente, a condição da emergência da alteridade positivada. Assim sendo, a medalha nos seus verso e reverso nos mostraria que a cada vez que alguém me aparece como outro, uma 'parte' ou 'partes'8 deste alguém já estão fazendo ou fizeram o seu trabalho matricial, ou seja, já estão presentes como 'meu' mundo, como o 'meu' código de interpretação. Seria, portanto, possível conceber este 'outro-mundo-circundante' como atravessado por cisões e não como homogeneidade (por exemplo, como constituído pelo amor e pelo ódio e pelos movimentos de retenção e de expulsão, de cuidados e de exploração, de ajuda e de vingança dos pais para com seus filhos, e, em geral, por todas as suas ambivalências diante do mundo e de si mesmos, etc.). Seria apenas a partir do conflito entre estas 'partes' incorporadas do 'outro-mundo-circundante' que uma alteridade positivada pode irromper diante da criança.

A respeito desta questão, valeriam alguns comentários suplementares a partir de Ferenczi (1993), que nos oferece uma contribuição importante no seu artigo. O problema da afirmação do desprazer (p.393-404). Neste texto ele rastreia a emergência de uma "percepção de objeto" do outro na sua alteridade (ou seja, de uma percepção do outro como objeto) desde uma presença pré-objetal do outro como (nos termos heideggerianos que estou adotando) mundo circundante. Na condição de mundo-circundante a mãe não pode ser 'objeto' de qualquer sentimento. É só quando sucessivas experiências de frustração e privação versus experiências de satisfação operam o "desintrincamento pulsional" e separam amor e ódio que a mãe se objetaliza, tornando-se a "matéria para uma representação de objeto". Ele conclui dizendo:

Queremos somente acrescentar que a ambivalência de que acabamos de falar, ou seja, o desintrincamento pulsional é absolutamente necessário para que apareça uma percepção de objeto (Ferenczi, 1993, p.397, grifos do autor).

Enfim, é da natureza conflituosa do outro-mundo-circundante que, mediante o desintrincamento pulsional, emerge um outro objetalizado como alvo de amor e ódio simultâneos. É o relativo e sempre instável equilíbrio entre amor e ódio que conservam o outro na justa distância em que pode ser "matéria para uma representação de objeto". Diz Ferenczi:

as coisas que nos amam sempre, ou seja, que satisfazem constantemente todos os nossos desejos, não tomamos conhecimento delas como tais, incluímo-las simplesmente em nosso ego subjetivo; as coisas que nos são e sempre nos foram hostis, recalcâmo-las simplesmente (1993, p.397).

É preciso que benevolência e hostilidade coexistam para gerar o desintrincamento pulsional que gera e sustenta a objetalidade. De maneira mais ampla e retomando Laplanche, poderíamos dizer que é preciso que o outro-mundo-circundante seja outro para si mesmo para que venha a ser outro para a criança.

A esta compreensão da alteridade como emergência, ou seja, do processo que leva do outro-mundo-circundante ao outro objetivado na sua alteridade poderia também ajudar uma rápido passeio pelo campo da psicologia histórica sob a tutela de Detienne (1988).

Para os gregos, o estrangeiro (ksénos)

não se refere ao não-grego, ao bárbaro de fala ininteligível, mas ao cidadão de uma comunidade vizinha (...) Para ser chamado ksénos, um estrangeiro deve, pois, pertencer ao mundo helênico, idealmente constituído pelo conjunto de homens que tem o mesmo sangue, mesma língua, santuários e sacrifícios comuns (Detienne, 1988, p.21, grifos meus).

Ora, o que ressalta desta compreensão é que a pré-condição da estrangeirice é uma anterior presença do 'estrangeiro' como pertencente ao mundo helênico, ou seja, só é estrangeiro aquele que antes de mais nada foi e é parte do mundo circundante. Na ausência desta co-pertinência não se pode constituir uma alteridade humana: o bárbaro está para além dos limites em que a alteridade pode emergir, já que, destituído de uma língua humana, ele não pode emitir mensagens; muito menos, mensagens enigmáticas.

Em acréscimo, haveria que se assinalar o fato de que a chegada do estrangeiro impõe aos cidadãos os deveres da hospitalidade privada: É com efeito um simples cidadão, em sua privacidade, que se encarrega de acolher e de proteger um estrangeiro em trânsito (Detienne, 1988, p.23-4).

Ou seja, exatamente porque o estrangeiro emerge desde um plano de comunidade constituinte, não há como evitá-lo e barrar sua entrada. É lá 'de dentro' deste acolhimento que ele se poderá revelar na sua estranheza.

Um outro aspecto da questão diz respeito ao fato de que o outro-mundo-circundante deve ser concebido nas suas pluralidades e, portanto, nas suas possibilidades de surpresas. Retomando a noção de ksénos, só vem a ser estrangeiro quem, pertencendo a uma comunidade de sangue e de língua, surge de uma cidade vizinha, com suas formas de vida mais ou menos diferenciadas. Só daí vem o estranho familiar do ksénos.

Concluindo, gostaria de propor a tese de que não é a alteridade do outro que surpreende, mas que é a surpresa diante de alguém-que-sendo-parte-do-mesmo-é-outro, o que constitui o outro na sua alteridade. De uma certa forma, a surpresa surpreende porque provém do que parecia mais próximo e familiar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOLLAS, C. A sombra do objeto. Psicanálise do conhecido não pensado. Rio de Janeiro, Imago, 1994.        [ Links ]

DETIENNE, M. Dioniso a céu aberto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.        [ Links ]

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KOHUT, H. A restauração do self. Rio de Janeiro, Imago, 1988.        [ Links ]

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WARNKE, G. Gadamer: herméneutique, tradition et raison. Bruxelles, De Boeck Université, 1991.        [ Links ]

WINNICOTT, D. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1983.        [ Links ]

 

 

1 Este trabalho foi preparado tendo como base o material de um curso ministrado na Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP. A primeira aula deste mesmo curso foi publicada na revista Percurso, 11, em 1993, e pode ser consultada para maiores esclarecimentos ao projeto de pesquisa na sua globalidade.
2 Ao falar em 'sexual psicanalítico', e não em 'sexualidade' como Laplanche na frase acima transcrita, estou tentanto diferenciar este conceito do que seria um 'sexual biológico' - um dado da natureza - e do que seria a 'sexualidade' tal como tratada, por exemplo, por Foucault (História da sexualidade I: a vontade de saber, 1984). O sexual psicanalítico seria o que se constitui pelas e nas exclusões (o que se 'esconde' ou o que se 'desmente') impostas à criança pelos representantes do mundo adulto, eles mesmos cindidos.
3 Esta seria a posição que Laplanche atribui equivocadamente a Heidegger, mas que está realmente presente em concepções que sobrestimam as construções na posterioridade como as de Danto e Droysen (cf. Georgia Warnke, Gadamer: Hermeneutics, Tradition and Reason, 1987); no campo da psicanálise, Viderman (1990) está próximo a esta posição.
4 Estas noções foram trabalhadas em meu texto Fala e acontecimento em análise. Percurso (1993). Neste artigo defino o acontecimento como "uma ruptura na trama das representações e das rotinas" e, nesta medida, como a "figura paradigmática da alteridade"; quanto ao conceito de "transpassibilidade", emprestado a Maldiney (1991) refere-se à "passibilidade ao inesperado, ao surpreendente, ao impossível, ao inacreditável".
5 Os debates com Maurice Dayan, Pierre Fedida e J. Gagey foram transcritos em continuidade à Conferência Temporalité et traduction.
6 A questão dizia respeito exatamente à ausência na teorização laplancheana de qualquer possibilidade de uma existência pré-objetal (que nada tem a ver com um estágio anobjetal no sentido tradicional do termo); este modo de existência em que sujeito e objeto não estão perfeitamente diferenciados e em que o 'outro' é mundo circundante e não objeto, pode ser ilustrado com as formulações de Ferenczi e Winnicott e outros autores do grupo independente da escola britânica de psicanálise. Enfim, o que Loparic questionava era, creio eu, o estatuto do outro que, segundo Laplanche, é sempre um outro já objetivado. Foi diante deste questionamento que o psicanalista francês 'confessou' seu positivismo, no que estava sendo absolutamente sincero.
7 Ver, a propósito Kohut (1988), Winnicott (1983) e Bollas (1994).
8 As aspas simples em parte ou partes decorre, novamente, do fato de que estes termos, e infelizmente não disponho de outros, sugerem uma existência objetivada do outro que é exatamente o que estou tentando refutar.